29 de abril de 2018
João Almeida Moreira
"Não pensávamos na figura que faríamos na história futura"
Caetano Veloso antecipa digressão por Portugal com
dueto com Salvador Sobral na final do Festival da Eurovisão. Uma entrevista a
propósito do movimento Tropicalismo.
Com um novo disco e uma digressão que irá passar
por Portugal, Caetano Veloso recorda um dos maiores mitos musicais do Brasil: o
tropicalismo. Que completou meio século de idade e ainda não perdeu a
atualidade enquanto mensagem social e política, nem deixou de provocar
influências no mundo da música daquele país.
Os espetáculos em Portugal
acontecem em julho e agosto e têm a particularidade de reunir em palco Caetano
e os filhos, Moreno, Zeca e Tom.
Passam 50 anos
e um jornal do outro lado do Atlântico faz duas páginas sobre um disco - e um
movimento. Na altura, sentiam-se a fazer história?
Queríamos urgentemente retomar o aspeto rebelde da
bossa nova e não continuar a imitar suas aparências estilísticas. Também
produzir uma arte que expressasse a violência da situação que vivíamos no
Brasil, conectando--nos com a onda contraculturas que, concomitantemente,
explodia no mundo. Acho que não pensávamos na figura que faríamos na história
futura.
Os media
brasileiros registaram o nascimento do tropicalismo no ano passado, a propósito
do festival de 1967. O DN assinala-o no momento da gravação do disco símbolo.
Que momento considera o original?
Também sou brasileiro: em 1967 cantei Alegria,
Alegria com uma banda de rock num festival de TV, gravei o meu primeiro álbum a
solo que contém essa canção, além de Tropicália, Eles, Superbacana, enfim,
canções que tipificam o movimento. Nesse mesmo ano assisti a O Rei da Vela,
peça do modernista Oswald de Andrade, na montagem do Teatro Oficina, que me
pareceu confirmar o que buscávamos e que já estava no meu disco. Decididamente
em 1967. Se há um momento preciso, este é o lançamento de Alegria, Alegria e de
Domingo no Parque, por Gil, no Festival da Canção, em São Paulo, creio que em
outubro daquele ano.
Os músicos do Tropicalismo: Jorge Benjor, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, Gal Costa (em cima), Sérgio Dias, Arnaldo Baptista | DR |
"Sem
Caetano, o tropicalismo não existiria", disse Gilberto Gil. Sente que foi,
de facto, o pilar do movimento?
Posso igualmente dizer que sem Gil o tropicalismo
não existiria. Foi ele quem começou a falar em olhar para os Beatles, responder
com alguma violência poética à violência que sofríamos, ouvir a banda de
pífaros de Caruaru, reouvir Luiz Gonzaga, etc. Eu já vinha tendo conversas com
Rogério Duarte sobre Edgar Morin e a mitologia de Holly-wood e ouvi de Bethânia
o conselho de ficar atento a Roberto Carlos e à vitalidade do pop ingénuo. Mas
quem falou em fazer algo como um movimento foi Gil. Acontece apenas que, uma
vez as coisas feitas, eu era sempre mais inclinado a articular argumentos e
explicações.
Não sente que a
música Tropicália está ainda muito atual?
Sinto. Quando a cantei com Gil, faz pouco mais de
um ano, achei que falava de coisas de agora. E no mês passado fui ver a
exposição de Tarsila do Amaral no MoMA de Nova Iorque e dei--me conta de que
essa canção se parece com a tela Abaporu - que é dos anos 1920 e foi o que
inspirou Oswald a escrever o Manifesto Antropófago. Tropicália, que nunca
sequer me pareceu uma canção bonita, surge-me agora como algo duradouro, algo
que responde às dificuldades com que o Brasil se depara e para as quais ainda
não encontrou os meios para as superar.
Como foi o
encontro de baianos, como Caetano e Gil, e a mais completa tradução de São
Paulo, a Rita Lee. Foram momentos loucos, de criação, de drogas, de festas,
como se imagina, ou nem tanto?
O encontro com os Mutantes foi crucial para nós. O
maestro Rogério Duprat pôs-nos em contacto com eles. Arnaldo era um pesquisador
e condutor inspirado e inquieto. Seu irmão Sérgio - ainda na adolescência - era
um génio da guitarra. Mas Rita sempre nos pareceu, a Gil e a mim, a figura com que
mais a gente sentia identificação e para quem prevíamos um futuro de êxitos, o
que veio a se cumprir. Não havia drogas nem festas, apenas frequentes encontros
em meu apartamento de São Paulo, para conversar, planear e comentar coisas.
Rita era uma menina extremamente bonita e era namorada de Arnaldo. A gente nem
dizia palavrão na frente dela.
O tropicalismo,
no papel, teve uma vida curta: ou acha que, por ser tão diverso e tão
inspirador, ainda vive sob a capa de outros géneros? Se sim, quais: o funk carioca?
A capacidade de aceitar criticamente e acompanhar
esteticamente o funk que se produziu nas favelas cariocas é algo que seria
impensável se não tivesse havido o tropicalismo. O mesmo serve para o axé do
carnaval baiano e até para o pop sertanejo do Centro-Oeste. Quanto à inspiração
sobre criadores, bem, quase todos da nossa geração (e Chico Buarque, também
nisso, na frente) souberam nadar nas águas que libertámos das velhas barragens.
O originalíssimo fusion dos mineiros dos anos 1970, os pioneiros do neo rock
vindos do Ceará um pouco depois e os roqueiros dos anos 1980 não teriam
encontrado o ambiente recetivo que encontraram. O próprio Raul Seixas, nosso
contemporâneo, tampouco acharia o lugar que achou no mercado e na crítica. Mas
nenhum deles é seguidor ou imitador do tropicalismo. Hoje, vejo traços de
aspetos profundos do tropicalismo na obra de um Thiago Amud, por exemplo.
A música hoje
já não é tanto um instrumento político como naquela época. Ou ainda é?
Discussões políticas estão na moda no Brasil agora.
Muitos artistas manifestam-se, inclusive com um grupo relevante de músicos
populares à direita. A maioria ainda tende para a esquerda, mas os da direita
têm sido mais vocais. Por enquanto tudo se passa em posts nas redes sociais, em
blogues e em entrevistas. Quem sabe de repente algumas canções saem daí?
A conjuntura
política - ditadura militar, guerra fria, Vietname - é o cenário, até
motivação, do tropicalismo. O Brasil e o mundo estão muito melhores hoje mas
ainda assim há Trump, há o assassínio de Marielle, há a prisão do primeiro
pobre eleito presidente. São dias sombrios para o país?
São dias bastante sombrios. Mas a reação ao
assassínio de Marielle mostra uma união da maioria da população brasileira.
Muitos dos jovens ingénuos que saem às ruas contra Lula e o PT, revoltam-se
contra o que aconteceu com Marielle. Em dois espetáculos recentes eu gritei
"Lula livre" e as plateias dividiram-se entre aplausos (imediatos) e
vaias (retardadas, mas duradouras); quando eu disse "Marielle vive" o
longo aplauso foi unânime.
Tropicalismo
faz 50 anos, mais atual do que nunca
Há 50 anos, um grupo multicolor de jovens
brasileiros cabeludos, excessivo, às vezes debochado, derrubou os muros que
separavam o luxo do lixo através do disco Tropicália ou Panis et Circencis, o
manifesto definitivo do tropicalismo, movimento que reuniu música pop e
concretismo, guitarra elétrica e berimbau, brega e psicadélico, muita criação e
nenhum preconceito.
"A tropicália rompeu com a separação radical
entre o erudito e o popular, representou a libertação de todas as
possibilidades na música brasileira", resumiu o poeta e compositor Antônio
Cícero. "Os tropicalistas buscavam uma cena que fosse um pouco mais
aberta, com menos preconceitos e mais liberdade de criação. Não existia uma
forma tropicalista de fazer música, existiam várias, do rock à música caipira,
da marcha ao baião", afirmou Carlos Calado, autor do livro Tropicalia - A
História de Uma Revolução Musical.
Quando nasce o tropicalismo? Muitos, incluindo
Caetano Veloso, talvez o seu expoente, consideram o 21 de outubro de 1967 (ler
entrevista à esquerda), quando meio Brasil parou para assistir na TV Record à
terceira edição do Festival de Música Popular Brasileira, um fenómeno de
popularidade na época, ao jeito do Festival da Canção português. Entre os
concorrentes, Edu Lobo, que venceria com a canção Ponteio, Chico Buarque, cuja
Roda Viva foi terceira classificada, Roberto Carlos, Elis Regina e outros
astros em embrião. Mas foram a segunda e a quarta classificadas, Domingo no
Parque, de Gilberto Gil, e Alegria, Alegria, de Caetano, que tiveram o
privilégio de lançar as bases para um movimento.
Em fevereiro de 1968, o crítico Nelson Motta
anunciava o nascimento nas páginas do jornal Última Hora: "Um grupo de
cineastas, jornalistas, músicos e intelectuais resolveu fundar um movimento
brasileiro mas com possibilidades de se transformar em escala mundial: o
tropicalismo. Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar,
sem preconceitos de ordem estática, sem cogitar cafonice ou mau gosto, apenas
vivendo a tropicalidade e o novo universo que ele encerra, ainda
desconhecido." E no rescaldo daquele texto, o poeta Torquato Neto, um dos
integrantes de Tropicália ou Panis et Circensis lançou Tropicalismo para Principiantes,
um breviário do movimento. "Mas a moda não deve pegar e os ídolos
continuarão os mesmos, Beatles, Marylin, Che e Sinatra", lamentava-se.
O movimento, que transcendeu a música, terá
começado antes, defende o professor universitário Frederico Coelho, para quem
"[Hélio] Oiticica já o vinha construindo nas artes plásticas desde os anos
50". Depois, houve a conjuntura propícia nacional e internacional: "A
passagem da euforia desenvolvimentista no país para a ditadura militar e o
Vietname, a Guerra Fria, a arte diagnosticou a crise."
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