CLAUDIO LEAL, 35, é jornalista
RODRIGO SOMBRA, 30 anos,
jornalista e fotógrafo
Aos
74 anos, os compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil refletem sobre cultura e
política nos 50 anos do tropicalismo, o movimento que, em sua vertente musical,
aglutinou Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Torquato Neto, Rogério
Duarte, Capinan, Júlio Medaglia e Rogério Duprat.
"Tropicália
ou Panis et Circensis", disco que reunia esses artistas, saiu em 1968. Já
no ano anterior, contudo, Caetano e Gil haviam se destacado no Festival da
Música da Record, com "Alegria, Alegria" e "Domingo no
Parque", respectivamente.
Naquele
mesmo 1967, a pulsação tropicalista se fizera sentir também no teatro (na
montagem de "O Rei da Vela" pelo Oficina), no cinema ("Terra em
Transe", de Glauber Rocha) e nas artes visuais (pelas mãos de Hélio Oiticica,
com a obra "Tropicália", exposta no Rio de Janeiro em abril).
Em
entrevistas concedidas de forma independente à Folha, Caetano e Gil
discutem o legado vanguardista do movimento, o avanço do conservadorismo no
mundo e os equívocos da esquerda.
Caetano
respondeu às perguntas por e-mail, em meio a agenda de shows com a cantora
Teresa Cristina. Distante do ânimo celebratório, afirma que seus "projetos e sonhos [para o Brasil] são
de grandeza", o que motiva desconfiança em relação ao governo Temer: "Esses ajustes dos golpistas que
prometem pouco a poucos e a prazo longuíssimo não sugerem nada disso.
Principalmente quando parecem prometer somente aos poucos que já têm
relativamente muito". O
compositor comenta ainda o desejo de voltar a fazer cinema e a dessintonia
entre velhice e liberdade.
Gil conversou com a reportagem em seu apartamento
em Salvador. Pouco antes, participara de um show comemorativo dos 50 anos do
tropicalismo, no Pelourinho.
FOLHA DE S.PAULO
Ilustríssima
09/04/2017
CLAUDIO LEAL
RODRIGO SOMBRA
Fotos: RODRIGO SOMBRA
'O Brasil é desafinado, tem as sílabas tônicas fora dos tempos fortes',
afirma Caetano Veloso
Caetano Veloso em sua casa no Rio – Foto: Rodrigo Sombra/Folhapress |
Folha - Em outro momento comemorativo,
nos anos 1990, você demonstrou desconforto com a celebração da tropicália e
disse "a luta continua". Cinquenta anos depois da eclosão do
movimento, o que move seu ânimo anticelebratório?
Caetano Veloso - A impressão que me ficou desse episódio (de que
não lembro claramente) foi que "a luta continua" era uma maneira
alternativa de celebrar, não representava propriamente desconforto com o fato
de haver a celebração.
Eu me sinto hoje mais anticelebratório
do que então, eu acho. Toda a turnê com Gil [2015/2016] foi de celebração.
Gostei imensamente dos shows, mas cada projeto novo de celebração me dá
preguiça.
O Carnaval da Bahia tinha [neste ano] o
tropicalismo como tema. Não topei nada. Mas na sexta-feira, quando Gil e Moreno
[filho de Caetano] foram cantar no Pelourinho, decidi ir, quis ir, fiquei
contente de ter ido.
O imaginário tropicalista tinha na obra de Oswald de Andrade (1890-1954)
uma âncora. Por que Mário de Andrade (1893-1945), também da linha de frente do
modernismo, não foi mobilizado pelo movimento?
Eu ouvia falar em Mário de Andrade desde o colégio.
Um colega do clássico [ensino médio], Wanderlino Nogueira Neto, me disse lá por
1962 que havia uma figura mais interessante na Semana de Arte Moderna, Oswald
de Andrade, mais anárquico e provocativo.
Eu era menos organizado do que hoje em dia e nem
sequer tinha lido nada de Mário. Lia trechos que apareciam na escola. De
Oswald, nada.
A Semana era uma dessas coisas de São Paulo que
pareciam não contar, não existir ou não fazer parte do que importava no Brasil.
Oswald mesmo só chegou até mim na montagem d'
"O Rei da Vela" pelo Oficina em 1967. Comentei com Augusto [de
Campos] quão impressionado tinha ficado com a peça. Ele me disse que era uma
das coisas menos importantes do Oswald e me passou obras do próprio: "Pau
Brasil", os manifestos, o "[Memórias Sentimentais de João] Miramar",
tudo. Foi uma revelação.
Oswald parecia sintetizar o turbilhão que vinha me
passando pela cabeça desde 1966, desde "Terra em Transe" [de 1967].
Li e reli "Miramar" e "Serafim Ponte Grande", mas continuei
sem aguentar "Macunaíma".
Hoje, o que mais penso é em como a homofobia de
Oswald não me causou repulsa (nem a Zé Celso), enquanto tudo que há de veado em
Mário nunca me atraiu.
Sua geração contracultural ficou marcada por conquistas no campo dos
direitos civis e das liberdades individuais. Como você percebe a virada
conservadora em vários países, de Trump a Temer?
Era natural. Esperava por ela. Mas a realidade
sempre surpreende. Muitas vezes, voltam à minha memória as palavras de Rogério
Duarte [músico e artista gráfico responsável pela identidade visual da
tropicália] quando Jânio [Quadros] venceu a eleição para a Prefeitura de São
Paulo contra um Fernando Henrique favorito, em 1985. "Eu gostei. Gosto do que acontece." Era um
nietzscheanismo que me fascinava.
Quando olho para as figuras de Temer, parecendo
saído de 1953 –e, como disse a "Economist" num artigo favorável a
ele, com o gestual de um mágico de palco–, e de Trump (um pop retrógrado), me
lembro do "gosto do que acontece".
Mais prosaicamente, às vezes torço para que os ajustes
do governo Temerdeem certo, só porque não gosto de ver o Brasil não funcionar.
Mas meus projetos e sonhos são de grandeza, de ver brotar no Brasil uma força
que libere a criatividade de todos os homens e mulheres que nasceram falando
português na América e desenhe uma ordem social que ilumine o mundo.
Esses ajustes dos golpistas que prometem pouco a
poucos e a prazo longuíssimo não sugerem nada disso. Principalmente quando
parecem prometer somente aos poucos que já têm relativamente muito.
O Brasil é meio desafinado, tem o ritmo frouxo e as
sílabas tônicas fora dos tempos fortes. A PF explode um escândalo que nos leva
a crer que só comemos carne podre e os estrangeiros a fugirem de nós, no dia em
que faz três anos que a Lava Jato alimenta devaneios de puritanismo. Os nordestinos
veneram Lula enquanto esboçam atração por Bolsonaro. Fernando Henrique é visto
no mundo de Renan e Jucá.
Todo esse namoro da esquerda com as pautas das
liberdades individuais soa estranho. Era o que nossa geração queria. Mas era
mais bonito e mais efetivo quando era tudo junto e misturado. A
compartimentação enche o saco.
Você já chamou o impeachment de Dilma Rousseff de "golpe em
câmera lenta". Como avalia o fortalecimento da direita? Onde a esquerda
errou?
Um golpe
paraguaio em câmera lenta. Dilma não tinha talento.
Gosto dela, mas seu governo foi ruim. O plano Dilmantega não ajudou o país em
nada. Podemos até dizer que a esquerda errou ao referendar tudo o que Lula
quisesse. Ele disse "Dilma"? Então Dilma. Mas isso é só um espirro. A
esquerda vem de séculos de erros: o esquema marxista de fatalidade histórica
com estágios definidos; as revoluções que deram sempre em autocracias; a
fantasia classe média de que a classe média é o inimigo.
Recentemente,
você se debruçou sobre a obra do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. O que
o atrai no pensamento dele?
Conheço
Eduardo há décadas. Gostei dele de cara. Ele tinha feito o trabalho sobre os
índios Araweté. Sou um apaixonado por "Tristes Trópicos", do
Lévi-Strauss, mas não sou da tribo dos antropólogos.
Ler
os livros de Viveiros de Castro agora (coisa que devo a outro Eduardo, o
Giannetti) foi uma experiência intensa. Eu tinha lido um texto dele, "Quem
Tem Cu Tem Medo" [refere-se a "O Medo dos Outros"], de onde até
tirei a frase "virar jaguar" para a letra de "O Império da
Lei". Achei eloquente, instigante e engraçado, mas não vi o tamanho do
engenho intelectual que é a cabeça de Eduardo.
Agora,
ao terminar de ler, de enfiada, "A Inconstância da Alma Selvagem"
[Cosac Naify], "Metafísicas Canibais" [idem] e "Há Mundo por
Vir?" [Cultura e Barbárie], fiquei assombrado com a inteligência dele, com
a enorme erudição que alimenta as referências, com a vivacidade de sua prosa e a
beleza dos argumentos.
O
mais lúcido seguidor das modas pós-estruturalistas (nunca ninguém me fez gostar
mais de Deleuze do que ele), Eduardo é também o "claro instante"
[expressão de Lévi-Strauss] em que o jogo vira. Continuo do lado de "O
Mundo desde o Fim", de Antonio Cicero, do "Self Awakened" de
Mangabeira [Unger], do Quarto Império de MD Magno [psicanalista], do amálgama
de José Bonifácio [o Patriarca da Independência] e do "Samba dos
Animais" de Jorge Mautner, mas tudo tem de passar pela experiência de ter
lido Viveiros.
Em 2017, seu
"Verdade Tropical" [misto de livro de memórias, autobiografia e
ensaio] faz 20 anos. Que aspectos da vida brasileira estimulariam novo esforço
ensaístico?
"Verdade
Tropical" mereceria alguma coisa ao chegar a essa idade. Eis uma
celebração que eu acolheria com ânimo. Mas, afora a ideia de que saísse uma
nova edição, por causa desse gancho –coisa em que a editora [Companhia das
Letras] nem parece ter pensado–, qualquer celebração relativa a isso, de minha
parte, teria que ser mais uma errata, uma série de correções ou revisão de
argumentos.
Por muito tempo, você se declarou ateu. Esse sentimento segue
inabalado?
Nunca foi propriamente um sentimento. Ou, pelo menos, só às vezes
aparece assim.
Foi reação contra a hipocrisia e respeito pela felicidade de ser.
Nunca fui ateu inteiramente: sempre faço o sinal da cruz quando o
avião vai decolar, mantenho as fotos da imagem de N. Senhora da Purificação que
minha mãe me deu para pôr em cada casa que tenho tido, acho fortes os
pensamentos de Mangabeira [Unger] sobre as grandes religiões serem esforços
humanos para encarar nossa condição mais efetivos e abrangentes do que as
filosofias. E crio superstições para aguentar o total descontrole do futuro.
Mas adoro o ateísmo. Detesto quando ele é tomado como proibido,
quando figuras públicas não podem se dizer ateias.
O
cinema ocupa um lugar relevante em suas conversas, ensaios e canções. Depois da
experiência de "O Cinema Falado" (1986), ainda pulsa o desejo de
filmar?
Sim.
É algo que fica recalcado. O desejo ainda pulsa e vai pulsar até o fim. Quando
sento na [sorveteria] Cubana, no alto do Elevador Lacerda, quando vejo moças
como Priscila Santiago [Miss Bahia 2013] nas ruas da Bahia, quando penso no
encontro com Marco Polo [ex-dono de uma barraca de coco na praia do Porto da
Barra] na minha volta de Londres –principalmente quando me lembro de imagens de
filmes que vi nas telas de tantos cinemas–, tenho nostalgia de uma vida
dedicada ao cinema.
Na juventude, a leitura de Sartre teve peso grande em sua
formação. "As Palavras" (Nova Fronteira) repercutiu em sua visão de
mundo. Como se vê, hoje, em relação à busca de liberdade? Sente-se mais livre?
Achava "As Palavras" o melhor livro já escrito. Rogério
Duarte comentava que isso dava a dimensão da minha ignorância. A liberdade que
saltava dos textos de Sartre e Simone de Beauvoir ecoava em meu espírito.
Depois aprendi outras dificuldades. Agora, entrando na velhice, aprendo outras
limitações. Ninguém é mais livre com menos elasticidade e menos equilíbrio.
'Conceituação foi do Caetano, eu tive papel político', diz Gil sobre
tropicália
Gilberto Gil em sua casa, em Salvador – Foto: Rodrigo Sombra/Folhapress |
Você atribui a Caetano as formulações medulares do tropicalismo. Embora
não seja vocacionado para o ensaísmo, você manifestou um ideário de música
popular moderna, assumiu questões da negritude e do ambientalismo, embarcou em
projetos políticos de Estado. Tudo isto implica em conceituações...
Mas que são pós-tropicalistas. A rigor, são
pós-tropicalistas.
No caso da música moderna, não.
Quando me refiro a uma predominância da ação do
Caetano sobre todos nós outros na formulação da tropicália, eu me refiro àquele
instante, àquele momento em que nos juntamos para fazer aquilo que deu na
canção "Tropicália", que deu em "Miserere Nobis",
"Panis et Circencis", nas canções todas daquele trabalho, nas
migalhas sobre Copacabana.
Pouco antes, você organizou algumas reuniões de
músicos.
Eu tive um papel político, digamos assim, talvez
mais forte do que Caetano. Porque é da minha natureza. Estudei administração de
empresas, entrei na política depois, fui fazer gestão pública. Eu gosto dessa
coisa de gerenciamento de energias, de tendências, de disposições pessoais. Gosto
de estar ali juntando pessoas pra fazer isso, pra fazer aquilo. Mesmo meu
trabalho musical é caracterizado por isso. Minhas bandas foram formadas desse
jeito.
Mas o pensamento agudo, a conceituação tropicalista
foi do Caetano. Não teria havido tropicalismo sem ele. Certamente não teria.
Talvez não tivesse havido tropicalismo sem ele. Certamente não teria havido
tropicalismo comigo. (risos) Eu não teria chegado àquela inspiração sobre a
necessidade. Eu juntava os elementos aqui e ali. Eu vi a novidade da Banda de
Pífanos de Caruaru, discutia com ele a novidade dos Beatles, dos Stones, de Bob
Dylan.
A gente se apaixonou ao mesmo tempo por toda aquela
coisa da música pop do mundo. Descobrimos Os Mutantes juntos. Chamamos Tom Zé,
Capinan, Rogério Duprat, Rogério Duarte e Torquato Neto para colaborar.
Chamamos a Nara Leão. Nisso tudo, sem dúvida, eu tive um papel. Por causa dessa
agilidade, do gosto de conversar, de sentar para conversar com um, com outro,
para convencer.
"No papo eu me safo", como você escreveu no
"Pasquim".
No papo eu me safo. Uma coisa que Caetano, pelo
menos naquela época, ainda não era. Caetano veio a se tornar mais articulador
depois. Ali naquele tempo, ele era um artista. Ele vinha da grande admiração
pelo cinema, pela música, do ensaio crítico sobre o cinema, das inserções
ligeiras sobre teatro. Ele era um artista mesmo já.
E a coisa de buscar meios de realização do projeto
artístico dele era uma coisa que foi chegando, foi surgindo com o tempo. No meu
caso, foi o inverso. Eu era um realizador de coisas. Tinha sido programado para
realizar coisas, para gerir, para organizar, para aglutinar, para liderar no
sentido de grupos. E a veia artística, o gosto pela realização artística mais
profunda, foi chegando com o tempo.
Eu diria que foram movimentos até inversos. Ele foi
chegando a se tornar mais profissional nesse sentido, e eu, que já era o mais
profissional, fui chegando a ser mais artista.
Quais eram as suas referências na poesia?
Não existiam! Meus poetas até ali eram os poetas clássicos.
Olavo Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias... Era o que os currículos escolares
nos ofereciam.
As modernidades todas só chegaram com Caetano. Foi
ele quem me fez ler João Cabral de Melo Neto. Evidentemente, Vinicius [de
Moraes] teve um papel enorme nisso. Aglutinava elementos de todo esse campo,
com sonetos clássicos e canções populares, com versos livres etc. Tanto para
Caetano quanto para mim, quanto para Chico [Buarque], quanto pra tanta gente,
Vinicius foi um portal, um momento de abertura. Mas eu só fui me interessar por
cinema moderno, por literatura moderna, por poesia moderna, por artes
plásticas, por pintura moderna, todas essas coisas... A minha modernidade
chegou com Caetano. Eu não tenho dúvida disso. Por isso que eu digo que, se ele
não tivesse aparecido e meu cruzamento tivesse sido com outras pessoas,
possivelmente eu não teria sido nada do que vim a ser.
E Guilherme Araújo [produtor musical] na equação
tropicalista? O designer Rogério Duarte dizia que ele comercializou a essência
do tropicalismo. Como você vê?
É uma justa acusação. (risos) Agora, se é uma
acusação que merece condenação, não acho que Guilherme deva ser condenado por
isso. Ao contrário, era natural que na era pop, dos fenômenos pop, da cultura
de massa, a gente quisesse fazer um movimento musical popular que não tivesse
capacidade extensional. O que Guilherme deu foi isso, foi a capacidade de
estender o movimento aos seus limites mínimos de alcance, de públicos.
Os
Beatles tiveram Brian Epstein.
Todos tiveram, todos eles. O fenômeno pop é isso:
são os meninos criadores ali, nos seus porões, nas suas garagens, nos seus
teatros, nos seus centros culturais, fazendo e criando coisas que vão alcançar
o público. E só podem alcançar o público através desses meios providenciados por
gente como Guilherme Araújo.
O próprio Rogério era apoiador da massificação. O
texto "Notas sobre o desenho industrial" trata disso.
Sim! Pois é! Mas aí durma-se com um barulho desses!
Como é que isso levava-o a uma condenação do trabalho do Guilherme? Nunca
conversei propriamente com Rogério sobre isso. Quando ele estava próximo a nós,
ele conversava sobre as coisas que importavam.
Num outro plano da contracultura, nos anos 1970,
você foi muito importante na defesa da descriminalização da maconha, depois da
sua prisão em Florianópolis. Foi um confronto que prefigurou um debate que até
hoje...
Está sendo feito.
No Rio, uma família já conseguiu autorização para o
cultivo em casa, por razões médicas. Houve grandes avanços?
Há uma adesão cada vez mais clara ao conceito da
descriminalização, à transposição da criminalidade para o problema da saúde
pública.
Quando eu passei a usar maconha, principalmente, e
ácido lisérgico – maconha eu nem considero droga, mas ácido lisérgico, sim, é
uma coisa criada em laboratório –, fui vivendo um diálogo natural com essas
manifestações, com os estados transformados de consciência, provocados por uma,
provocados pela outra.
As experiências de grande inspiração musical, de
intensificação da inspiração musical que a maconha me proporcionava... eu fui
entendendo a necessidade da defesa da benignidade dessas coisas, contra uma
manifestação pró-malignidade, que dava suporte a toda a repressão, a toda a
legislação restritiva, a toda a perseguição aos usuários. Eu fui percebendo, e
não era só eu, era tanta gente no mundo inteiro que se encaminhava nessa mesma
direção, fomos percebendo todos que era hora de dizer: isso aqui é mais
benignidade do que malignidade.
A malignidade dessas coisas está, exatamente, na
visão restritiva, na visão criminalizante, na visão punitiva que se tem do uso.
Essas coisas, no fundo, podem ser muito mais benéficas do que maléficas. E os
malefícios eventuais podem ser cada vez mais tratados no campo da saúde
pública, no campo da medicina. Isso tem avançado muito no mundo inteiro. A
assistência aos drogados em países como Holanda, Itália, mesmo nos Estados
Unidos, Alemanha etc., as liberações parciais em Portugal e em tantos lugares.
Essa atitude, que inspirava uma percepção da benignidade, só se fortaleceu de lá
para cá, em mim e em tanta gente.
O governo Temer é acusado pela esquerda de operar
um desmonte dos direitos sociais. Você percebe dessa forma?
De uma certa forma, uma tentativa. Os ideários são
conflitantes, são opostos.
O ideário mais livre, mais íntegro da esquerda é o
social. É a distribuição de renda, é a distribuição de oportunidades, é o
socialismo, enfim. Os meios para chegar até ele, sejam os da primeira revolução
de 1917, ou do leninismo depois, ou da social-democracia que herda a primeira
Revolução Russa.
Esse é o ideário que se contrapõe a esse outro
ideário que é o dos que acreditam unicamente na capacidade de intervenção
permanente do homem, na transformação da natureza, na criação de riquezas, sem
a preocupação da distribuição delas. É a acumulação. É o ideário do outro lado,
embora eles tenham que disfarçar com a questão da mínima distribuição de renda
aqui, porque têm que dar emprego, têm que manter os trabalhadores, manter as
domésticas fazendo o trabalho nas casas, precisam da mão de obra. Mas o grande
ideário daquilo que se convenciona chamar direita é a acumulação. Acumulação
para a distribuição aos donos do capital.
No Brasil, isso tem sido brutal?
Isso é brutal no mundo inteiro. Em alguns lugares,
eles conseguiram atenuar. Países escandinavos, nórdicos, na Alemanha, nos
Estados Unidos um pouco, na Europa em geral um pouco melhor, na América do Sul
um desastre. Essa ainda é a grande disputa. Não importa chamar de direita, de
esquerda, de socialismo ou de capitalismo.
É isto: a disputa entre a distribuição mais
generosa da riqueza produzida, de um lado, e a concentração mais concentrada da
riqueza, por um outro lado.
Em meados dos anos 80, o tropicalista Rogério
Duarte dizia que a Bahia resistia como o último reduto do tropicalismo. Ele percebia
a Bahia como lugar onde as formas sociais estariam dotadas de mais vitalidade,
marcadas por uma vocação mais telúrica, capaz de fazer frente à integração
modernizadora da sociedade de consumo. Você também chegou a pensar assim?
Eu também acho. Ainda acho que a Bahia representa,
no Brasil, uma das formas mais vibrantes dessa resistência. O jeito como as
classes sociais, as raças, os credos religiosos interagem na Bahia ainda é
promissor, ainda me dá esperança [começa a chorar]. Me comove muitíssimo. Eu
não resisto às lágrimas quando vejo a Bahia...
Você deseja ficar mais por aqui?
Quero, quero. Flora também quer. A gente vai vir
mais pra cá.
Você sempre atentou para a dispersão da diáspora
negra na música, incorporou o reggae, a soul music e outros ritmos de matriz
africana. Como percebe a ascensão do hip hop na cultura brasileira?
Acompanho de longe. Taí, é o último segmento ao
qual não pude aderir! (risos) A minha agilidade intelectiva não chega até lá.
Com a idade também, a questão da memória... memorizar aqueles longos discursos
poéticos que os rappers fazem é impossível pra mim. As crianças aprendem num
instante. Meus netos sabem essas músicas todas, conseguem decorar aquilo. Esse
é o segmento pós-Gil. Meu único rap foi o "Rep" do disco "O Sol
de Oslo" (1998). Um rapzinho modesto, não tão prolixo quanto o hip hop de
hoje em dia, mas foi até onde eu pude ir. Agora não, agora quero ficar com as
minhas canções, entrar para o hall dos cançonetistas.
Você foi pioneiro na celebração da cultura digital na
música e atuou diretamente para intensificar as suas possibilidades enquanto
esteve à frente do Ministério da Cultura (MinC). Como avalia o sentimento
distópico face às tecnologias da informação, hoje? Como percebe o momento em
que as tecnologias servem a mecanismos de controle que remontam aos regimes
totalitários, como a vigilância generalizada, as guerras com drones? Como vê
esse encolhimento do horizonte utópico ligado às tecnologias digitais?
Fora isso, a apropriação violenta que o mundo
empresarial fez... o surgimento das grandes companhias que distribuem dados e
acumulam capacidade de controle. E tendem a se associar a todo esse outro campo
do controle mais policial do sistema.
Há dez anos, a gente pensava ser possível um
passeio libertário nos jardins da cibernética. O trabalho do MinC na
articulação internacional com os movimentos do software livre, o Creative
Commons, a convenção da diversidade cultural na Unesco, as iniciativas da
comissão internacional de propriedade intelectual, em Genebra, e as grandes
batalhas do direito autoral. E essa batalha atual, no sentido de que o espaço
público seja reconhecido na internet.
Uma série de empresas e instituições ligadas à
exploração dos meios digitais querem negar aos autores a dimensão pública da
internet. Como se a internet não fosse um espaço público, mas privado. Agora
mesmo, tivemos uma vitória numa disputa entre a Oi e o Ecad. A Oi –com o
suporte de Google, Rede Globo e de uma série de outros grandes interessados na
questão intelectual–, de um lado, argumentando que o espaço da internet não é
público; ou seja, que ali o direito autoral não pode prevalecer em benefício do
autor. Do outro lado, estava o Ecad. Finalmente, o Superior Tribunal de Justiça
deu ganho de causa ao Ecad.
Estabeleceu-se,
nesse primeiro momento, uma jurisprudência no sentido da admissão da internet
–do Skype, do download, da reprodução de música na internet– como espaço
público, uma coisa que as grandes corporações já estavam querendo abolir. Isso
já estava no próprio cerne do ideário do MinC quando eu fui pra lá, e depois
com Juca Ferreira também. Tivemos uma articulação internacional importante
nesse sentido, que agora arrefece um pouco por causa dessa onda conservadora.
O MinC chegou a ser desfeito e, depois, recriado.
Chegou a ser desmontado, e alguns projetos como o
dos Pontos de Cultura, importantes no sentido de empoderamento das comunidades,
dos pequenos coletivos, tinham caído por terra. Espero que voltem. Enquanto
noutros países como a Itália, alguma coisa nos EUA e o Japão, caminhou-se para
adotar uma forma mais coletiva de ver a gestão pública desses meios, houve um
retrocesso aqui. Lá, as coisas tentando caminhar um pouco mais rápido. Aqui, as
coisas sendo travadas.
O que vem no novo disco?
Eu fiz várias canções. Tem uma nova pra Flora.
Algumas já foram citadas na imprensa, como "Os Quatro Pedacinhos",
música que eu fiz para a minha médica [a cardiologista Roberta Saretta, da
equipe do hospital Sírio-Libanês, em São Paulo]. A música que eu fiz com o Bem
[Gil] para o meu neto, que chama-se "Sereno". Tem uma canção sobre o
momento, a tal vil situação. Tem um verso que fala disso.
O que você vem pensando nesses dias baianos?
Eu canto "Cores Vivas". Toda vez que
acordo, eu sento ali e canto: "O sol benfeitor dessa região". Esse
verão foi tão generoso nesse sentido. Foi ensolarado, não choveu. Foi sol, sol,
sol. Então, eu fico aqui pensando nisso, em "quantos verões verão nossos
olhares fãs/fãs desses céus tão azuis."
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