Caetano Veloso falou sobre o legado do tropicalismo em dezembro de 2015, em uma entrevista para o documentário “Tropicália – Revolution in Sound”, da BBC, que também teve participações de Gilberto Gil e do cantor e compositor norte-americano David Byrne.
Singer
and World Service journalist Mônica Vasconcelos meets the key artists and
contemporary champions of Tropicalia, from Caetano Veloso and Gilberto Gil to
Marcos Valle and Talking Heads’ David Byrne, and explores the movement's
enduring musical and political force.
Producer:
Simon Hollis.
A
Brook Lapping Production for BBC Radio 4.
Seis perguntas para Caetano Veloso
Cantor fala à BBC Brasil sobre Tropicália, suas
músicas preferidas e feminismo.
04/05/2016
'Funk carioca e sertanejo universitário são a nova Tropicália', diz
Caetano Veloso
Para compositor, que se apresenta com Gilberto Gil
em Londres nesta quarta-feira, espírito de movimento sobrevive na forma de
'surpresas que revelam força da música popular brasileira e o imenso potencial
do Brasil'.
Mônica Vasconcelos
Da BBC Brasil em Londres
Quase cinco décadas após o surgimento do
Tropicalismo, seu espírito revolucionário ainda sobrevive na música, na forma
de 'surpresas que revelam a força da música popular brasileira e o imenso
potencial do Brasil'. A avaliação vem de nada menos do que Caetano Veloso, um dos cabeças do
movimento dos anos 60.
São quase nove horas da noite. Ainda sem tomar café
da manhã, Caetano, de 73 anos, ele não titubeia ao ser questionado sobre o que
seria hoje uma Tropicália ainda inexplorada. "O funk carioca, o sertanejo universitário e os restos da axé
music", ele diz.
"Ontem fui ver um show da (funkeira) Anitta. Ela é muito boa, muito
afinada", disse. "O funk no Brasil hoje é uma coisa totalmente
brasileira. E as letras, que às vezes são muito obscenas, ou ligadas ao
narcotráfico e à bandidagem, ficaram cada vez mais criativas. Os efeitos
sonoros também", acrescentou.
Os comentários de Caetano Veloso foram feitos em
dezembro (2015), durante uma entrevista à BBC para o documentário Tropicália –
Revolution in Sound, que teve também a participação de Gilberto Gil e do pop star americano David Byrne.
Partes da entrevista, feita em inglês e em
português, são agora publicadas após a transmissão do programa, que foi ao ar
pela BBC Radio 4 e pelo Serviço Mundial da BBC, e aproveitando a volta de
Caetano a Londres para reapresentar nesta quarta-feira, com Gilberto Gil, o
show da turnê "Dois Amigos, Um Século de Música", que a dupla já
havia trazido à capital britânica no ano passado.
Nova Tropicália
No final da década de 1960, Caetano Veloso e
Gilberto Gil lideraram o movimento Tropicalista – também conhecido como
Tropicália - na música brasileira. A ideia era fundir influências estrangeiras
(como o rock, por exemplo) à música brasileira em busca de algo novo.
"Queríamos usar tudo o que tínhamos aprendido,
de onde quer que tivesse vindo. Porque essas coisas eram nossas, faziam parte
da nossa vida desde a nossa infância. Nós queríamos um outro tipo de
nacionalismo. Queríamos ter a coragem suficiente de afirmar quem nós realmente éramos.
Por isso, antes mesmo de ir para a Inglaterra, escrevi letras em inglês –
inglês ruim."
Presos pela ditadura militar em 1969, os dois
receberam ordens de deixar o país. Seguiram para Londres e, quando retornaram
ao Brasil, em 1971, o movimento tinha terminado. Mas para Caetano, deixou
marcas sentidas até hoje.
"Ela teve consequências e são irreversíveis.
Mas recentemente, tenho sentido uma coisa muito forte quando toco (a canção)
Tropicália nesses shows que estou fazendo com o Gil. É como se a música falasse
sobre o que está acontecendo, sobre o Brasil como ele realmente é. É uma
experiência nova, que transformou essa turnê que estou fazendo com o Gil em
algo muito maior."
Entre os paralelos do Brasil de hoje com o da
década de 1960, há a polarização de opiniões e a instabilidade política. No
entanto, a música parece já não despertar as mesmas paixões - ou mesmo brigas -
como fazia na época dos festivais, onde os tropicalistas despontaram com suas
guitarras elétricas. A música deixou de ser importante?
"A música como parte da indústria do
entretenimento se transformou. O contexto mudou, com a internet e as novas
formas de se produzir e consumir música. É outra coisa, é uma nova era",
disse Caetano. "Mas vejo muita música sendo feita no Brasil e acho que ela
ainda é algo muito forte aqui."
Tomando como exemplo o funk carioca, o compositor
descreve a forma como o morro se apropriou de um estilo estrangeiro. Qualquer
semelhança com o ideário tropicalista não é pura coincidência…
"Eles começaram importando o Miami Bass para
as festas. Depois, começaram a compor suas próprias músicas. E colocaram uma
batida que vem da umbanda e do maculelê. Então funk no Brasil hoje é uma coisa
totalmente brasileira."
"Essas surpresas acontecem, como aconteceu com
o carnaval na Bahia. E como está acontecendo hoje com o sertanejo
universitário. É uma música vulgar e sentimental e você acha que é bobagem. Mas
eles são tão afinados. E o próprio fato de que a música do Centro-Oeste hoje
está presente na região costeira do país, isso é um fato cultural que revela
muito sobre o que o Brasil se tornou. Ou pode se tornar."
Missão do Brasil
Caetano Veloso defende há muito tempo a visão de
que o país - miscigenado, pobre, falando português e habitando um imenso país
no hemisfério sul, às margens do chamado "mundo civilizado" - poderia
ser capaz de absorver noções universais de civilização e mesclá-las com sua
própria essência cultural e espontaneidade para criar um modelo alternativo de
civilização para o mundo.
E apesar da crise atual, ele não perde de vista o
destino que vislumbra para o país.
"É o que realmente penso. Acho que temos uma
oportunidade que a história nos deu, que o destino nos deu. E temos de ser
capazes de realizar esse potencial. Essa é a ideia central, que dá base à
Tropicália. É uma situação estranha, única, cheia de desvantagens, e temos a
obrigação de transformar essas desvantagens em oportunidades", disse à
BBC.
"E não estou falando apenas da alegria. Estou
falando também do sofrimento, de tudo. A nossa experiência poderia ser útil
para nós e para o mundo. E nós poderíamos transformar essa nossa estranha
história em algo que poderia ser interessante para todos."
Olhando para o presente, no entanto, Caetano
expressou tristeza e preocupação com a situação política e econômica do país –
que já era difícil em dezembro último.
"A recessão, essa discussão sobre o
impeachment... uma coisa agrava a outra, é um ciclo vicioso. O presidente da
Câmara (Eduardo Cunha) é claramente um homem desonesto. E o governo não tem
força. A confusão é tão grande que, nesse momento, não temos ideia do que vai
acontecer."
O assessor de comunicação de Caetano disse à BBC
Brasil que o artista não quer fazer mais declarações sobre o processo de
impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Mas durante um show em Salvador
no dia 2 de abril, o cantor repetiu o coro da plateia, que gritava "não
vai ter golpe". E em participação no programa Altas Horas, da TV Globo, em
março, ele comparou manifestações pró-impeachment a atos de apoio ao golpe
militar de 1964.
Prisão e exílio
Para o documentário Tropicália – Revolution in
Sound, Caetano falou das memórias sobre a difícil experiência, em 1969, de ser
preso (com o amigo Gilberto Gil) - sem explicação.
"Fomos levados a um quartel (no Rio de
Janeiro) e ficamos presos (na primeira semana) em regime solitário. Fiquei um
pouco louco. (...) Comecei a achar que a vida era apenas aquilo. Que tudo o que
eu lembrava existia apenas na minha cabeça. Algumas pessoas são colocadas na
prisão e não ficam tão perturbadas mentalmente. Acho que sou muito narcisista
para aguentar uma situação como essa."
Ele disse que teve medo de ser morto.
"Numa ocasião, achei que iam me matar, sim.
Eles tinham nos levado para outro quartel, no norte do Rio. Lá eu não estava
sozinho, estava com outros presos. Um dia, um soldado jovem que cuidava da
porta começou a olhar para mim com uma expressão estranha. Ele devia ter uns
18, 19 anos. Ele olhava para mim e notei que estava chorando", contou.
"Eu ia perguntar o que estava acontecendo, mas
não tínhamos permissão de falar com eles. Então, chegaram três oficiais e
disseram para eu ir com eles. Estavam armados. Eu fui. Saímos do prédio e
seguimos por umas ruelas, no meio de umas casinhas. Eu andava e eles seguiam atrás
de mim. Num dado momento, disseram: 'Pare. Não olhe para trás'. Eu parei e
pensei, 'Vou morrer'. É difícil explicar o que você sente."
O efeito não foi acidental, explicou. "Eles
sabiam o que estavam fazendo. Então disseram: 'Vire à direita e suba as escadas'.
Senti um certo alívio, mas ainda não tinha entendido. Quando subi as escadas,
pela porta, vi o que era: uma barbearia! Então, cortaram meu cabelo (estilo)
'Jimmi Hendrix Experience'. (Risos) Fiquei tão feliz!"
Depois de algumas semanas, Caetano e Gil foram
informados sobre as razões da prisão: uma denúncia, falsa, de que uma bandeira
brasileira teria sido rasgada durante um show da dupla. Seis meses após ter
sido presos, Caetano e Gil seguiram para Londres.
"Nosso empresário achou que Londres era a
melhor cidade para ficarmos - um lugar tranquilo, não tinha gente brigando nas
ruas. (...) Londres tinha música boa – ou pelo menos música interessante. Mas
eu achei um lugar triste e muito diferente. A Inglaterra às vezes parece um
outro planeta, ainda mais naquela época. Mas tem seu charme. Depois de um ano
em Londres, comecei a gostar da cidade."
A cidade ainda traz um pouco da tristeza que sentiu
no exílio, explicou. Mas às vezes traz também coisas boas.
"Quando estou lá, lembro das coisas boas. E
alguns dos costumes ingleses são muito importantes, por causa da longa tradição
de liberalismo (do país). Gosto disso e aprendi muito. Mas só gosto de morar no
Brasil."
O compositor toca anualmente na capital britânica,
sempre para casas lotadas. Vai ser assim no show Dois Amigos, no Barbican Hall.
Foi assim no ano passado, no Eventim Apollo. E também em 2014, quando levou ao
Barbican o show Abraçaço e tocou canções do álbum Cê, disco de rock ganhador de
um Grammy Latino.
Bom gosto
Fãs da Tropicália talvez tenham reconhecido,
naquele show em particular, o espírito provocador do movimento. Na ousadia de
trazer rock dos trópicos para a terra do rock.
No gestual invocado, petulante. E nas letras de
canções como Homem (do disco Cê), por exemplo:
"Não tenho inveja da maternidade, nem da
lactação / Não tenho inveja da adiposidade, nem da menstruação / Só tenho inveja da
longevidade e dos orgasmos múltiplos".
Falando sobre Tropicalismo à BBC em 2013, o
escritor e jornalista Ruy Castro disse que os tropicalistas "queriam
acabar com a aura de bom gosto que prevalecia no Brasil naquela época (os final
dos anos 60)".
Mas o que tem de errado com o bom gosto?
"Não tem nada de errado com o bom gosto em
si", explicou Caetano. "Mas quando ele é usado para impedir o avanço
das coisas, o bom gosto pode ser perigoso. Você elege o que é bom gosto e
interrompe a marcha das coisas."
"Mas tenho de dizer que, quando escrevi (a
canção) Homem, não estava pensando em provocar ou surpreender. Estava
expressando o que realmente penso a respeito dessas coisas. Claro que tinha
consciência de que algumas pessoas poderiam achar aquilo um pouco...
forte."
"Homem também faz um diálogo com as canções da
Rita Lee que falam sobre ser mulher. Tem uma que fala sobre menstruação, algo
que eu não invejo", diz o cantor aos risos.
A guerra contra a "opressão" do bom gosto
e o diálogo com Rita Lee já duram quase cinco décadas. Este teve início em 68,
quando Os Mutantes – banda integrada por Rita - gravaram com Caetano, Gilberto
Gil, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé o disco Tropicália ou Panis et Circencis,
que lançou o movimento Tropicalista, em 1968.
"Era estimulante" ele lembra.
"Estávamos sempre experimentando. Aqueles meninos, Arnaldo (Batista),
Sérgio (Dias) e Rita, eram incríveis. Eles são incríveis."
"Eles apareceram e, para mim, foi mesmo
chocante. Porque eles eram muito garotos! O Serginho (Dias) tinha o quê, 16
anos? Fiquei impressionado com o nível de proficiência. Dava esperança. E dá,
né? Você sente que São Paulo pode. E que São Paulo ter reunido essa energia
capitalista dá muita força ao possível projeto Brasil."
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