Abril/2018 - Maria Bethânia e Zeca Pagodinho farão turnê juntos - Foto: Leo Martins / O Globo |
—
Eu disse a ele (Caetano): “Vou fazer um show com Zeca (Pagodinho), e é um encontro que me
comove. Há anos não lhe peço nada. Mas deu vontade de lhe pedir”.
—
Ele fez um samba de roda misturado, chique, com uma letra sofisticada, mas
muito clara.
[2018, Maria Bethânia]
Letra e música: Caetano Veloso
No alto brilha um risco raro
Que passa do mal ao bem
Por cima formando um aro
Por baixo um trilho de trem
De Guadalupe ao Amparo
De Xerém a Santo Amaro
De Santo Amaro a Xerém
O que passa é mais que claro
É todo mundo e é ninguém
Do generoso ao avaro
De Gaza a Jerusalém
Do bem barato ao bem caro
De Xerém a Santo Amaro
De Santo Amaro a Xerém
Aí amor amor amaro
Aí cheirinho de Xerém
Ai amor — paro
Ai amor — vem
Com você nada comparo
Aquele seu vai-e-vem
Quando eu todo me descaro
Do Leblon a Buranhém
Desculpe o meu despreparo
De Xerém a Santo Amaro
De Santo Amaro a Xerém
Por essa luz eu disparo
Sem repetir nhenhenhém
O Brasil é que é meu faro
Levaremos tudo além
É no samba que eu preparo
De Xerém a Santo Amaro
De Santo Amaro a Xerém
Aí amor amor amaro
Aí cheirinho de Xerém
Ai amor — paro
Ai amor — vem
Aí amor amor amaro
Aí cheirinho de Xerém
Ai amor — paro
Ai amor — vem
Por essa luz eu disparo
Sem repetir nhenhenhém
O Brasil é que é meu faro
Levaremos tudo além
É no samba que eu preparo
De Xerém a Santo Amaro
De Santo Amaro a Xerém
A PRIMEIRA PARCERIA
A GENTE NUNCA ESQUECE
Durante
uma entrevista esta semana para anúncio de sua nova turnê, o cantor Zeca
Pagodinho revisitou a origem de seu interesse pela música:
—
Em vez de soltar pipa, jogar bola de gude, eu ficava ali ouvindo os coroas. Tinha
vizinho que tocava cavaquinho, bandolim, minha tia cantava... Por isso, eu
conheço valsas que têm gente da antiga que não conhece. Tenho boa memória para
música.
Quer
dizer, tinha. Agora não tenho mais.
No
que foi carinhosamente interpelado por Maria Bethânia:
—
Ainda tem. Quando a música te toca, você pega. O samba de Caetano (“Amaro
Xerém”) cantei uma vez e você cantou imediatamente. Impressionante!
—
E em Xerém todo mundo já tá cantando! — comemorou Zeca.
A dupla nunca tinha feito qualquer parceria, seja em gravações no estúdio ou em shows, antes de “De Santo Amaro a Xerém”, turnê que estreia hoje, no Recife, e passa por outras cinco capitais — a estreia no Rio será no próximo dia 21, no Km de Vantagens Hall, na Barra.
O
encontro nos palcos será aberto com “Amaro Xerém”, o samba assinada por Caetano
Veloso (confira letra ao lado), e contará com mais 33 músicas (algumas
inéditas), num apanhado que sintetiza as trajetórias dos dois.
No
show, eles se alternam entre momentos em dupla ou cantando sozinhos. Mas a
banda, uma mescla de músicos que costumam tocar com um ou com o outro, inclui
os violões de Jaime Alem e Paulão Sete Cordas, diretores musicais de “De Santo
Amaro a Xerém”.
A
parceria, assim como o repertório, teve a informalidade e o carinho mútuo como
tônica.
—
Almoçamos, falamos de repertório livremente, das coisas de que gostávamos de
ouvir, cantamos uns pedacinhos e começamos a definir as linhas do show —
lembrou Bethânia.
O GLOBO
Cultura
Crítica:
Maria Bethânia e Zeca Pagodinho aproximam cantos da Bahia e do Rio
'De Santo Amaro a Xerém', show que une os artistas,
estreou neste sábado em Recife
POR LEONARDO LICHOTE
08/04/2018
Maria Bethânia e Zeca Pagodinho na estreia do show 'De Santo Amaro a Xerém', em Recife - Foto: Daniela Nader / Divulgação |
A viagem proposta no nome do show que une Maria
Bethânia e Zeca Pagodinho, "De Santo Amaro a Xerém", não é uma
estrada reta. Na estreia do espetáculo em Recife, no Classic Hall, no sábado, a
dupla traçou um itinerário sinuoso em que ponto de partida e chegada dançam
livres, Bahia e Rio se aproximam e se afastam em umbigadas e bailados de salão,
num movimento de negociação gingada entre "paro" (rima com Santo
Amaro) e "vem" (rima com Xerém) — como sintetiza a letra de
"Amaro Xerém", música inédita de Caetano Veloso feita especialmente
para a ocasião. Enfim, o samba. Porque o que se revela no palco, acima de uma
investigação dos pontos de contato entre Bethânia e Zeca (Mangueira e Portela,
ou as canções que os formaram), é uma celebração ao samba, esse acontecimento
entranhado na alma dos dois artistas — e do Brasil.
A
abertura com "Amaro Xerém" lança luz nesse sentido (apesar do som
embolado, que prejudicou sobretudo Bethânia em diferentes momentos da noite).
Outra canção que assume essa função no roteiro é outra inédita, "De Santo
Amaro a Xerém", de Leandro Fregonesi. Em formato de refrão de samba de
roda, ela carrega o verso "o samba é do Brasil inteiro" — sentença
que se desdobra ao longo de todo o espetáculo, que atravessa diferentes
sotaques e latitudes do samba, tendo Rio e Bahia como lastro.
Se
"Amaro Xerém" conceitua com graça a união da dupla, e "Sonho
meu", na sequência, amplia os sentidos do diálogo na figura de Dona Ivone
Lara (referência para ambos, em lugares diferentes), é no momento seguinte que
a potência do encontro se revela inteira. Zeca torna carioca a malícia baiana
de "Você não está entendendo nada" — o show valeria apenas por vê-lo
cantar versos como "Eu quero tocar fogo nesse apartamento", "Eu
como, eu como, eu como, eu como, eu como/ Você" ou "E quero que você
venha comigo" ("Lá pra Xerém", improvisou ele). Em seguida,
Bethânia emenda "Cotidiano", pintando em tintas fortes a angústia da
canção, em contraste harmonioso com o que seu colega de palco acabara de fazer.
A aproximação desses cantos — o rigor pleno de leveza em Bethânia, a leveza
plena de rigor em Zeca — é a grande força do show.
MISTO DE MÚSICOS
Sob
o canto da dupla, a banda acompanho-os na mesma trilha sinuosa. Formada por um
misto de músicos que trabalham com Zeca e com Bethânia (cada um apresenta
"os seus"), com direção dividida entre Paulão Sete Cordas
("dele") e Jaime Alem ("dela"), a formação inclui, além dos
dois diretores (violões), Rômulo Gomes (baixo), Paulo Dafilin (violão e viola),
Marcelo Costa (bateria e percussão), Jaguara (percussão), Esguleba (percussão),
Paulo Galeto (cavaquinho) e Vitor Mota (sax e flauta). O batuque é o núcleo, atravessando
diferentes vertentes do samba, com a presença dos outros instrumentos — como a
viola que remete às variações rurais do gênero e a flauta que evoca a tradição
do choro.
Já
sem a companhia de Bethânia, Zeca reafirma o samba como assunto central da
noite com a mítica "Eu sou o samba"; oferece "Verdade" à
Bethânia ("Descobri que te amo demais") e "Saudade louca" a
seu parceiro Arlindo Cruz ("Tô com saudade dele, que se Deus quiser vai
ficar bom e um dia vai estar aqui com a gente de novo"); e dá uma aula de
interpretação — algo que ele e ela fizeram várias vezes ao longo da noite — em
"Maneiras". À vontade em seu repertório, ele brinca:
—
Agora sim chegou o Zeca Pagodinho. Entrei aqui como Jessé, mas agora chegou o
Zeca — disse, para minutos depois, apontando para as taças em cima de sua
mesinha no palco, deixar claro que Zeca havia chegado. — Esse (vinho) é pra
garganta. Esse (cerveja) é pro calor. E esse aqui (água) é pra se acontecer
alguma coisa.
Depois
de saudar a Bahia ("Tá sempre comigo, eu tinha que ser baiano") com
"Samba pras moças" e seu sabor de Recôncavo, Zeca puxa
"Ogum". Bethânia volta ao palco e declama sobra a canção a
"Oração de São Jorge" — levando para outros terrenos dramáticos o
belo samba.
É
a vez de a Bethânia estar sozinha. E ela chega afirmando sua baianidade
legítima "Falsa baiana" (em base quase samba-reggae), de Geraldo
Pereira, mineiro crescido na Mangueira ("O samba é do Brasil
inteiro", como diz Fregonesi). A densidade de "Marginália II" ("Aqui
é o fim do mundo", repetido várias vezes) desagua na declamação de
"Estação derradeira" — o samba como a utopia possível de superação da
violência. O samba das grã-finas ("Pano legal") e a ascensão malandra
aos salões da alta sociedade ("Café soçaite") também aparecem —
ambas, assim como "Marginália II", extraídas do repertório do
clássico "Recital na Boite Barroco", da cantora. A urbanidade
enfumaçada de "Ronda" e "Negue" contrasta e dialoga com o
caráter interiorano de "Santo Amaro da Purificação" (outra inédita de
Fregonesi) e "Quixabeira" — caráter interiorano que está também, de
formas diferentes, na resistência de "Purificar o Subaé" e no
cosmopolitismo de "Reconvexo". Tudo samba, tudo Brasil.
PORTELA E MANGUEIRA
Em
seguida, Zeca e Bethânia se alternam em celebrações às suas escolas de coração,
Portela e Mangueira — o figurino de ambos pro show faz menção elegante às
agremiações, seja na saia verde dela ou na blusa azul clara dele. Nessa parte,
Bethânia apresenta a última inédita da noite, "A surdo 1", de Adriana
Calcanhotto, feita em homenagem à vitória da Mangueira no ano em que a escola
teve a baiana como enredo ("Acordei e era o dia mais feliz do ano",
diz um verso do samba novo).
A
dinâmica de pot-pourri de sambas-enredos faz o show perder força, mas o rumo é
reencontrado na reta final, quando os dois se juntam no palco de novo. É o
momento em que a intimidade entre eles — e entre eles e o samba — aparece de
forma mais evidente, num passeio por um repertório de memória afetiva: "E
daí", "Naquela mesa", "Chão de estrelas"... Zeca, que
passara o show chamando a colega de "rainha", solta um "Só tu,
Bethânia", referindo-se ao fato de cantar músicas que nunca havia cantado
"a não ser em casa". Ela passa boa parte do tempo em que Zeca canta
sorrindo pra ele, num fascínio sincero com seu senso rítmico, seu humor e sua
interpretação.
No
bis, os dois abraçados, Zeca improvisa, sobre o refrão de "Deixa a vida me
levar":
—
Deixa a Bethânia me levar!
—
Levo — ela responde, antes de os dois cantarem "O que é o que é"
(exemplo isolado de obviedade num roteiro muito bem amarrado) e saírem do palco
de braços dados.
Cotação: bom
No hay comentarios:
Publicar un comentario