RODA VIVA - O Brasil passa por aqui
Brasil
Caetano considera que ser brasileiro "não é um acaso
indiferente" e discute questões sociais do país, a arte, a imprensa e a
paternidade, entre outros temas
[Programa
gravado não permitindo a participação dos telespectadores]
Matinas Suzuki: Boa noite! O Roda Viva está completando dez anos e cerca de 500 programas. Para abrir a série de entrevistas especiais que comemoram essa década do Roda Viva, nós convidamos um dos mais importantes artistas brasileiros, Caetano Veloso.
[Vídeo
com imagens da carreira de Caetano]
[Comentarista
Valéria Grillo]:
Encontrar a virtude da preguiça requer tempo. Paciência para assistir ao
horizonte refletir um sem-número de cores e nomes. Ser Caetano é algo para um
Pessoa, um Caymmi, um Drummond ou um João da bossa de escrever. Diriam, talvez,
um espírito musical eternizando esquinas, linhas, ritmos, linguagem, versos. O
ser Caetano já foi Lamartine Babo em Tabu
e Gregório de Mattos em Os
sermões. Mas o fascínio por um mundo de fotogramas resultou em um
exercício atrás da câmera, o Cinema
falado. Ser Caetano talvez desse um filme, e com ele mesmo
cantando, como já se ouviu em O
quatrilho; Índia, a
filha do Sol; Tieta.
São 50 e poucos anos experimentando levar idéias de Salvador a Nova Iorque,
passando pelo Rio, Buenos Aires, Roma, Madri e Montreux. Uma celebração acesa
em olhos que enxergam um Brasil trágico, utópico e fantástico. Dos quase mil
dias de exílio à “ferveção” da praça Castro Alves [em Salvador, onde os trios
elétricos do carnaval terminam seu trajeto], Caetano Veloso provoca estranheza,
luz, tristeza e um rebolado de meia-lua inteira. Do rock ao samba. As métricas
são estações dessa preguiça virtuosa, quase filosófica, silenciosa, divertida,
bacante, superbacana. Um exibicionismo pretensioso, teatral, lúcido, de chamar
música, cinema e poesia – qualquer uma dessas artes – de gostosa.
Matinas
Suzuki:
Para entrevistar o Caetano Veloso, esta noite, nós convidamos o cineasta Cacá
Diegues, que é diretor do filme Tieta do
agreste, que está em circuito nacional; o economista Eduardo
Giannetti da Fonseca; Cesare de Florio La Rocca, presidente do Projeto Axé; o
jornalista Marcos Augusto Gonçalves, editor do [caderno] Domingo da Folha de S. Paulo; Hubert Aranha,
do Casseta e Planeta
[programa humorístico exibido semanalmente pela Rede Globo], e o psicanalista
Luiz Tenório Oliveira Lima. O Roda
Viva é transmitido em rede nacional com 150 outras emissoras de
21 estados brasileiros. Nós lamentamos muito, mas esta noite você não poderá
enviar as suas perguntas para o Caetano Veloso, porque este programa foi
gravado. Boa noite, Caetano!
Caetano
Veloso:
Boa noite!
Matinas
Suzuki:
Depois de dez anos, o Roda
Viva conseguiu te trazer! [risos]
Caetano
Veloso:
Finalmente, mas eu consegui chegar aqui!
Matinas
Suzuki:
Exato.
Caetano
Veloso:
Eu tinha vontade de fazer, mas não tinha calhado... Agora deu!
Matinas
Suzuki:
Caetano, pegando esse gancho dos dez anos do Roda Viva... Quando o Roda Viva começou, em 1986, a
gente tinha saído do que se chamava abertura política - um processo de abertura
- e iniciava uma nova fase que vem sendo chamada - ou ficou conhecida - como
uma fase de consolidação da democracia no Brasil. Nós passamos pelo governo
[José] Sarney, pelo governo [Fernando] Collor, pelo governo Itamar [Franco] e
chegamos no governo Fernando Henrique [sociólogo, um dos fundadores do PSDB
(Partido da Social Democracia Brasileira), foi ministro da Fazenda e presidente
do Brasil por dois mandatos consecutivos, de 1995 a 2002]. Que visão você tem
do Brasil nesses últimos dez anos? Como você vê o Brasil nesse percurso?
Evidentemente com muitas mudanças, mas...
Caetano
Veloso:
O que posso lhe dizer? O Brasil, quanto mais a gente aprende sobre ele, mais a
gente vê que é um país que não conseguiu nunca se transformar numa sociedade
saudável, que apresentasse o mínimo de justiça social. E tampouco se mostrou um
país capaz de gerar grande riqueza material. Por outro lado, é um país de
originalidade enorme! Então, a gente fica com essa ilha suspensa aqui no
hemisfério sul, falando português, num espaço imenso da América e sem saber se
tem ou não tem direito de ter esperanças. De modo que esses acontecimentos mais
recentes, já me pegaram [como] um homem mais maduro, então já os coloco numa
perspectiva maior, tanto na história, quanto na história da minha vida.
Matinas
Suzuki:
Falando nessa criatividade imensa que tem o Brasil, você como um dos artistas
mais importantes das últimas décadas do Brasil e um artista que cada vez mais é
conhecido internacionalmente, participa de um projeto que é o filme Tieta do agreste, que é dirigido
pelo Cacá [Diegues]. E você participa fazendo uma belíssima trilha sonora, ao
lado de Gal Costa, ao lado do Cacá, com participações de Jorge Amado
[(1912-2001), escritor baiano que celebrizou, no país e no mundo, personagens
típicas da Bahia em obras como Gabriela,
cravo e canela, de 1958, e Tieta do
agreste, de 1977], com participações de João Ubaldo [Ribeiro,
(1941-) membro da Academia Brasileira de Letras, é jornalista, escritor e
roteirista de cinema. É autor de obras como O
sorriso do lagarto e Viva o
povo brasileiro], enfim... Todo um lado criativo muito forte do
Brasil está nesse projeto. Você acha que isso é um sinal de mudança? Estamos
caminhando para criar condições, no Brasil, para que se realizem projetos desse
porte, envolvendo artistas importantes, essa coisa toda?
Caetano
Veloso:
Sem dúvida! Isso aí é uma coisa que, desde que o Cacá me falou que Sônia Braga
tinha proposto a ele fazer Tieta para
o cinema...
Matinas
Suzuki:
Aliás, me esqueci de mencionar Sônia Braga aqui também!
Caetano
Veloso:
É mas... A gente se esqueceu de mencionar também o Joaquim Moreira de Barros,
que fez a trilha comigo, que arranjou a trilha... Fez as orquestrações e
arranjos dos temas... Mas, enfim... Quando o Cacá me disse que Sônia tinha
proposto isso a ele, já senti ali o tipo da coisa que me atrai... Porque são
forças afirmativas do modo de ser cultural brasileiro, que não é
necessariamente mau, pelo Brasil não ser uma economia ostensivamente vitoriosa,
nem mesmo uma sociedade consideravelmente justa. Quer dizer, essas questões não
são... Você não pode julgar umas coisas pelas outras, né? Isso é um negócio
muito difícil. Mas fiquei atraído, porque isso é toda uma área, assim, do nosso
organismo que promete regeneração. Eu me senti atraído por esse negócio. Me
senti estimulado, envolvido...
Marcos
Augusto Gonçalves: Caetano, você dizia numas de suas canções: “Vejo uma
trilha clara para o meu Brasil, apesar da dor” [o entrevistador cita a música
"Nu com a minha música", do álbum Outras
palavras]. Você vê essa trilha clara ainda que, como diz o
[Gilberto] Gil [na música "Parabolicamará"], “de jangada leva uma
eternidade, de saveiro leva uma encarnação”? [risos]
Caetano
Veloso:
Pois é, rapaz! Isso aí é uma canção que fiz nos anos 1970, né? Eu estava no
interior de São Paulo, viajando de ônibus de cidade em cidade. E as cidades de
São Paulo são muito – para os olhos de um brasileiro comum – opulentas. São
muitas. E com universidades e tal. Então eu, de uma certa forma, me senti à
vontade para deixar um verso, uma linha dessas, aparecer no meio de uma canção.
Mas ali também eu dizia que era um segredo meu que não carecia de ser seguido
por ninguém, que era uma vertigem visionária que não carecia de seguidor, né? A
estrofe se concluía assim, depois de dizer que eu via uma trilha clara para o
Brasil apesar da dor. Mas o fato é que vejo. É uma trilha que o Brasil talvez
nunca trilhe [risos]. Eu estava tentando evitar isso, mas as palavras...
Estou... Acabei de fazer um show e também estou, além de cansado, um pouquinho
resfriado. Então estou um pouco com a energia baixa! Então as palavras demoram
a aparecer. Mas... O Brasil poderá ou não seguir essa trilha, mas para mim é
absolutamente inegável que ela existe e é dele.
Eduardo
Giannetti da Fonseca: Caetano, acho que tem uma trilha. Eu queria arriscar
uma generalização... Eu te ouço desde 1978, encontrei realmente o seu trabalho
em 78, quando saiu o LP Muito.
E, de lá para cá, estou acompanhando com muita intensidade. Gosto muito do seu
trabalho! E identifico uma trilha que aparece no seu trabalho, que eu gostaria
de arriscar aqui e ouvir o que você pensa disso. Acho que, de um lado, você
defende a conquista de uma ordem civilizada no Brasil. No trânsito, na
política, na economia que a nossa convivência pública seja bem ordenada e seja
civilizada. Isso é muito presente, é muito forte, é muito contínuo. De outro
lado, você também defende o nosso coração iorubá [de origem africana], a nossa
alegria de viver, a nossa espontaneidade. Essa alegria espontânea que brota do
fundo do fundo da nossa alma brasileira. E acho que a grande utopia que você
coloca para todo nós é combinar essas duas coisas. Conquistar a civilização,
mas não perder o que nós temos de melhor, que é essa grande alegria, essa
grande espontaneidade, essa alma iorubá, selvagem, índia que está em todos nós.
Acho o seguinte, Caetano: será que essas duas coisas podem ser combinadas? Será
que alguém vai conseguir juntar uma coisa sem perder a outra? Temo que a
civilização entristeça a alma humana. [risos] E nenhum povo conseguiu escapar
disso! E nós, no Brasil, resistimos muito a isso. Acho que a grande utopia, os
"trópicos utópicos" que vejo em você é exatamente na busca dessa
fusão. Você refaz essa fusão na sua arte e eu acho que, na arte, a equação se
fecha. Na vida prática, não vejo como fechar essas duas coisas e acho que, à
medida que o Brasil se civiliza, infelizmente nós vamos perder, aos poucos,
essa alegria, essa vitalidade emocional, essa coisa fantástica que ainda está
viva.
Caetano
Veloso:
Bom, isso aí...
[risos]
Eduardo
Giannetti da Fonseca: Desculpa, é uma pergunta pesada, mas me preparei muito
tempo para fazer! [risos]
Caetano
Veloso:
A sua pergunta, para mim, não precisa de resposta! Não precisa de resposta.
Gostei imensamente do modo como você formulou. E acho que ela, de uma certa
forma, abrange – posso dizer mesmo – a totalidade dos meus interesses. [risos]
Pelo menos dos meus interesses que podem ser tornados, ou precisam ser,
tornados públicos. Acho que você tocou num ponto que é fundamental! Mas a minha
ambição talvez seja ligeiramente maior do que a própria questão da fusão,
entendeu? A minha ambição seria a de tomar posse da civilização, porque acho
que há dados universais ligados à convivência social. E acho que são dados
definitivos e que esses dados devem ser compartilhados por todos os seres
humanos, que devem se colocar na posição de poder compartilhá-los. Agora,
quando você lê esse livro, Trust, daquele
americano [Francis] Fukuyama [ver entrevista com Fukuyma no Roda Viva], em que ele diz que
os Estados Unidos, ao invés de serem vistos como um país onde, abstratamente,
os direitos universais se procuraram implantar, devem voltar a ser vistos como
um país que tem uma determinada cultura e que é justamente por ter esse tipo de
cultura, que ele foi um país capaz de desenvolver tão bem as garantias das
liberdades, do respeito ao ser humano etc. E, no entanto, penso que...
Naturalmente, aquele livro tem uma porção de coisas que são suspeitas. Eu o
citei porque, de uma certa forma, ele é um oposto simétrico de algo que está na
sua pergunta e que eu gostaria que estivesse no modo como estou respondendo!
[risos] Na verdade, a minha ambição seria de fazer com que uma cultura como a
nossa, que está – sob todos os pontos de vista – como que jogada fora da área
de dominação, das vantagens da civilização moderna, porque está no hemisfério
sul, porque é mestiça, porque fala português, não apenas uma língua latina do
sul da Europa, mas justamente o português, a menos prestigiada de todas elas,
entendeu? Enfim... Um país pobre e, sobretudo, injusto socialmente. Então,
todas essas desvantagens, de uma certa forma, deveriam criar em nós uma mera
depressão em relação à perspectiva histórica, em relação a prospecções. E, no
entanto, a gente tem alguma coisa de alegria e de entendimento da vida, alguma
riqueza no modo de ser, que é perceptível, inclusive, para os estrangeiros, que
diversas vezes se manifestam a respeito do que eles percebem de interessante,
de sugestivo no modo de ser do Brasil e dos brasileiros. E isso, que é um dado
cultural, que não é... Como é que vou dizer? Não é um valor universal,
abstrato. É um dado cultural, qualitativo do nosso modo de ser, que é do que
você está falando. O que desejo não é que isso seja possivelmente fundido com o
que você e nós chamamos de civilização. Acho que o que desejo mesmo é que esse
nosso modo de ser tome conta, tome em suas mãos os dados abstratos, universais
da civilização e faça deles algo que não tenham feito ainda, entendeu? Então, é
uma ambição grande demais. Naturalmente, faço muitos papéis ridículos por causa
disso. Mas por outro lado... [risos]
Eduardo
Giannetti da Fonseca: Discordo! [risos]
Caetano
Veloso:
Mas é verdade, faço! Faço outros papéis ridículos por outras razões. Mas, por
isso, muitas vezes, sem dúvida. Mas o fato é que minha ambição... Uma vez,
escrevi um negócio para falar lá no Rio [de Janeiro], uma coisa que me pediram
para escrever sobre o terceiro milênio... Foram o Antônio Cícero e o Wally
Salomão que me pediram para escrever. E falei lá no Museu de Arte Moderna, li o
texto que tinha escrito, era um pouco longo, mas, enfim, eu o li todo! [risos] E ali eu dizia que há quem diga que, em 64, se
não houvesse o golpe militar, o Brasil talvez tivesse tendido para o socialismo
ou chegado a um esboço de uma sociedade comunista enfim... E que era uma coisa
que foi desejada por muita gente da geração daquele período e que foi frustrado
pelo modo como a história se deu, mas na verdade não era algo latente de fato,
não era algo que nós estávamos prontos para fazer. E eu me perguntava na
altura, mas hoje me pergunto com muito mais veemência, se era, afinal de
contas, um fato desejável. Todo mundo se pergunta. Quando a gente via o que
acontecia nos países socialistas, a gente se perguntava isso, mesmo em Cuba,
cuja revolução me atraiu muito, me entusiasmou muito. Mas os resultados...
Muitas vezes tive uma brutal rejeição àquele negócio. Na verdade, nunca fui a
um país comunista – nem mesmo Cuba – e, no fundo, por causa de uma natural
dificuldade de aceitar a idéia de que um país possa ter um jornal só e de que
esse jornal pertença ao governo. Isso é uma coisa, para mim, intolerável.
Eduardo
Giannetti da Fonseca: O coletivo fica muito sufocado. O coletivo acaba...
Caetano
Veloso:
Terrível! E, sobretudo, a idéia que havia em torno de uma questão que, para mim
é central, que é questão da homossexualidade. Isso, nesses países, sempre
aparecia muito mal posto. E eu me sentia pessoalmente muito mal diante da
realidade desses países...
Matinas
Suzuki:
Caetano...
Caetano
Veloso: Estou
respondendo longamente demais, né?
Matinas
Suzuki:
Não! Termina, termina!
Caetano
Veloso:
Vou terminar. Então, nesse texto que escrevi sobre o negócio do terceiro
milênio, dizia assim: se nós tivéssemos talvez chegado ao socialismo, na
verdade não interessaria tanto saber o que o socialismo faria de nós, mas o que
o Brasil faria do socialismo. Entendeu? E o socialismo não é outra coisa senão
uma das formas como essa visão de direitos para todos – uma visão abstrata
de direitos para todos os seres humanos – é compreendida. O socialismo está
nessa discussão, continua nessa discussão. Não é porque os países do leste e o
chamado socialismo real caiu que esse tema desapareceu das discussões. Mas,
enfim, minha pergunta é esta: o que nós podemos fazer com essas coisas?
Porque...
Matinas
Suzuki:
Caetano, antes de passar ali para o Cacá, queria te perguntar, já que você
tocou na questão do homossexualismo, nós temos aí um projeto encaminhado pela
deputada Marta Suplicy [ver entrevista com Marta Suplicy no Roda Viva] que, entre outras
coisas, prevê a possibilidade de união matrimonial entre pessoas do mesmo sexo
no Brasil.
Caetano
Veloso:
Sou a favor.
Matinas
Suzuki:
Você tem uma opinião sobre isso?
Caetano
Veloso:
Tenho uma opinião muito simples e nítida: sou a favor, quer dizer, mesmo que
não seja matrimonial. Acho que o que ela pretende é que haja esses
direitos, como são os direitos de concumbinato... Sou a favor, claro!
Cacá
Diegues:
Eu queria insistir um pouquinho nessa trilha aí, do Brasil, porque adoro ouvir
você falar sobre o Brasil, acho o máximo! Eu estava, inclusive, nessa
conferência que você deu lá no Museu de Arte Moderna. E a minha sensação – vou
arriscar uma outra teoria–, a minha impressão das suas idéias, da sua poesia,
do seu trabalho, do seu pensamento é que você está muito menos preocupado com
uma idéia de nação enquanto uma coisa institucionalizada, uma forma
institucional da vida social comum de um território, de um povo dentro do
território, mas muito mais interessado na possibilidade de este povo, da
invenção de um povo para esse território. Eu diria até que você está
interessado na invenção de um povo alternativo diante do que acontece no mundo
todo. Eu queria só que você confirmasse ou não.
Caetano
Veloso:
Confirmo! Acho que é isso mesmo. [risos] Mais ou menos é que eu estava dizendo
a ele, no fundo.
Cacá
Diegues:
Que estava um pouco na sua conferência também.
Caetano Veloso: Imagino isso
mesmo. Acho que a gente tem quase que um dever histórico de afirmar
coletivamente isso que você me pede para afirmar aqui. Acho que essas
características que descrevi que são fatais: somos um país imenso, de dimensões
continentais, no hemisfério sul, falando português, com a população
marcadamente mestiça, isso é um dever de originalidade histórica do qual a
gente não pode fugir. Mesmo que a gente não faça nada, que venha a ser apenas
um país que sumiu, que a língua portuguesa desapareça diante do inglês, do
computador... Porque o inglês já domina o mundo, e mais ainda através do
computador, que é um novo inglês...
Cacá
Diegues:
E uma outra coisa que acho também importante, sobre o aspecto do seu pensamento
sobre o Brasil, é o exercício da vontade sobre essa realidade. Você não se
deixa submeter pela fatalidade dos fatos históricos. Vejo nas suas entrevistas
você dizer “quero que o Brasil seja isso!”, “quero que o Brasil seja aquilo”.
Nunca é uma análise inconseqüente de fatos históricos, mas um desejo de
transformação.
Caetano
Veloso:
Mas há um fatalismo muito grande nisso. Quando digo “eu quero”, é porque acho
que sou condenado a querer exatamente isso!
[risos]
Matinas
Suzuki:
Isso tem a ver um pouco, Caetano, com a sua indignação, às vezes, com o país,
com uma idéia, ou com a imprensa, ou com uma coisa? Porque, na verdade, você
poderia, hoje, ser um artista totalmente em paz com o mundo: sua obra é
inquestionável, a sua importância é uma... Enfim... Tudo que poderia ser a
imagem tradicional ou um lugar comum de um artista, são águas que caminharam na
direção do seu leito. No entanto, você se recusa a se manter nesse papel só, de
ser artista ser bem-sucedido, essa coisa toda e, de vez em quando, parece que
você “passa um pito” na nação. Você cobra da nação, você cobra das pessoas,
você cobra das idéias, da imprensa e com uma veemência muito grande.
Caetano
Veloso:
É, muitas vezes faço isso. Uma vez um jornalista no Rio disse assim: “Mas o
Caetano não se contenta em ser um compositor reconhecido, um cantor de sucesso.
Ele quer também reescrever todos os segundos cadernos da imprensa brasileira!”
E um amigo meu me disse assim: “Mas, justamente! Você deveria fazer”. Falei
assim: “Não faço, porque eu não tenho tempo” [risos]. Mas isso é uma piada, né?
Na verdade, naturalmente, não tenho condições de fazer isso e não faço planos
de ser essa pessoa que você descreveu. Faço até um esforço no sentido de me
apaziguar mais e me sinto mais apaziguado. Mas eu não resisto! De vez em quando
eu vejo que sou eu mesmo que tenho que dizer algumas coisas. Alguma coisa
também herdei do Glauber [Rocha]. Ele gostava de dizer coisas que se
destinassem a resolver a questão do Brasil como um todo e que reorientassem o
país através da palavra dele. Herdei isso um pouco dele também, embora eu seja
totalmente diferente dele. Acontece que tenho uma... Percebo que isso é um
elemento a mais, entre várias coisas. Há muitas forças em embate e a gente tem
que fazer pesar algumas coisas. Então, de vez em quando, eu tenho que dar
aquela espetada, aquela alfinetada porque senão o pessoal perde a noção de
algumas coisas que eu, por acaso, na posição em que estou, posso ver melhor. Às
vezes, há uma onda que está totalmente por fora. Então vou veementemente
[contra]... parece que sou inimigo daqueles grupos ou daquelas instituições ou
daquelas posições. Mas é uma inimizade estratégica, entendeu? Tenho consciência
disso!
Luiz
Tenório Oliveira Lima: Caetano, em relação ainda a esse assunto, você, como
artista... O seu trabalho já é uma intervenção no plano estético, pensando a
questão do Brasil e a questão da tradição. A esse propósito, há uma coisa que
sei que o irrita muito e que é um mal entendido que existe em relação ao Tropicalismo,
que é uma leitura que algumas pessoas fazem – às vezes até críticos –, uma
leitura paródica do trabalho criativo, estético, do período tropicalista.
Justamente como você disse, o trabalho, segundo o meu ponto de vista, implica
uma transformação e uma reinterpretação da tradição, da própria tradição na
música popular. Isso é reinterpretado e, de certo modo, atualizado com uma
intervenção bastante radical naquele momento que gerou, digamos, a repercussão
que todos nós sabemos. Há uma tendência, muitas vezes, que é essa de ver isso,
como uma forma paródica como no caso, por exemplo, de quando você interpreta a
canção de Vicente Celestino [refere-se à canção “Coração materno” que Caetano
Veloso gravou em seu disco Tropicália
ou panis et circenses], que muitas pessoas tomam aquilo como sendo
paródica, e a intervenção é pungente, é belíssima e é uma recuperação dessa
tradição lírica e impostada do período anterior. Gostaria de que você falasse
sobre isso porque eu sei que esse tipo de leitura às vezes até lhe irrita.
Caetano
Veloso:
Irrita, porque a impressão que me dá é de que pára na paródia. Porque esse
processo tem um momento dele que é paródico, mas ele vai além da paródia. E
chega até isso que você falou e pretende ir até além disso, mas então quando a
instância paródica é considerada a instância final, fico irritado, porque fico
frustrado. Às vezes, não tanto nas opiniões que procuram dizer isso, mas nas
criações mesmo que se suponham tributárias dessa atitude tropicalista,
entendeu? Às vezes, eu via coisas que eram feitas ostensivamente para parecer
paródicas, para parecer uma visão paródica do que nós tivéssemos de pouco menos
respeitável culturalmente e, assim, o autor se poria acima daquelas coisas que
estavam sendo ali parodiadas. E isso me desagradava muito. Sobretudo logo
depois, no pós-Tropicalismo imediato.
Marcos
Augusto Gonçalves: Quero fazer uma pergunta ainda ligada ao Tropicalismo.
Não sei se você acha isso. Tenho a impressão de que você e outros artistas da
sua geração, como o Hélio Oiticica, por exemplo, se encarregaram de terminar o
ciclo modernista, num Brasil em que o Modernismo não pode viver, por causa da
comunicação de massa, etc. Eu acho que vocês conseguiram impedir que o
Modernismo fosse desaguar nessa praia miúda do nacionalismo, do nacional
popular, onde poderia ter desaguado. Numa praia, digamos,
"submarioandradina" [referência a um dos ícones do Modernismo, Mário
de Andrade]. E acho que vocês conseguiram manter a riqueza experimental do
Modernismo exatamente nesse momento do Tropicalismo, de uma maneira enfática.
Você tinha essa visão? Você tem essa visão? Como é que você relaciona o seu
trabalho com o trabalho de música popular - mas que, evidentemente, transcende
a música popular. Como você o relaciona com o Modernismo brasileiro que vem de
uma tradição, digamos, mais tida como culta... Que vem ligada à literatura.
Embora no Brasil isso tudo...
Caetano
Veloso:
Fui obrigado, no momento mesmo do Tropicalismo, a pensar um pouco essas coisas,
porque justamente quando lancei “Alegria, alegria” e o [Gilberto] Gil lançou
“Domingo no parque” [ambas de 1967], o Augusto de Campos - o poeta - tinha
escrito um artigo sobre mim, sobre um trecho de uma entrevista minha e a minha
canção “Boa palavra”, um trecho de uma entrevista do Edu Lobo... Coisas que ele
achava que tinham sido bem formuladas. E ele tinha posto como título do artigo
dele “Boa palavra”. O Augusto de Campos, quando lancei “Alegria, alegria” e o
Gil “Domingo no parque”, me procurou e nós nos encontramos. E ele era um continuador
muito rigoroso de uma certa visão do Modernismo. Ele e o grupo dele, um grupo
de poesia concreta de São Paulo. Por outro lado, estreava em São Paulo a peça O rei da vela, de Oswald de
Andrade. Eu não conhecia o trabalho de Oswald de Andrade, não conhecia a obra
de Oswald de Andrade. Eu já tinha ouvido falar dele uma vez, por um colega meu,
no clássico [equivalente ao ensino médio], que é Wanderlino Nogueira Neto, que
hoje é do Ministério Público e que se referiu ao Oswald de Andrade dizendo que
eu gostaria, porque era muito anárquico e uma figura muito interessante,
iconoclasta e tal. Mas eu num... Eu me lembro de ouvi-lo falar. Mário de
Andrade, sim, porque Mário de Andrade os professores traziam mais, as pessoas
falavam mais de Mário de Andrade. O pessoal de música popular no Rio falava em
Mário de Andrade, mas Oswald, não. E, naturalmente, a gente conhecia algo de
Villa-Lobos e algo da pintura de Di Cavalcanti, de Portinari e tal. Mas o
Oswald não era muito conhecido. Mas estreou O rei da
vela e fui assistir! O meu disco ainda não estava pronto. As
gravações não estavam todas prontas, mas as canções estavam todas prontas. E,
quando vi O rei da vela,
tive um impacto incrível e comentei com o Augusto de Campos. Ele então me
disse: “nós temos um interesse enorme nesse poeta!”. Deu-me, então, o texto do
Haroldo [de Campos. (1929-2003) poeta brasileiro, fundou com seu irmão, Augusto
de Campos, e Décio Pignatari, o grupo poético Noigandres, que deu origem ao
movimento Concretista. "Transcriou" textos de autores consagrados da
literatura mundial como Homero, Dante, Goethe e Mallarmé e, ainda, publicou
ensaios de teoria literária] sobre o Oswald, me deu livros de poesia do
Oswald, me deu romance de Oswald, me deu texto de Décio Pignatari [escritor brasileiro
que desde os anos 1950 experimentava a linguagem de forma que, ao lado de
Augusto de Campos e Haroldo de Campos, fundou o movimento estético conhecido
como Concretismo. Além disso, traduziu obras de Dante Alighieri, Shakespeare e
Goethe] sobre Oswald. Então tive que me situar, naquele momento, diante dessas
duas grandes figuras do modernismo literário. Tive que pensar um pouco isso.
Mas era meio às avessas, porque eu já tinha feito o que aquilo me deveria levar
a fazer. Mas, naturalmente, aquilo chegou até mim indiretamente também, né?
Enfim... Eu estava vivendo um tempo que já vinha depois daquilo.
Cesare
de Florio la Rocca: Caetano, certamente você deve estar se perguntando que
diabos está fazendo Cesare aqui, no meio de todas essas celebridades! Te
confesso que eu mesmo me perguntei isso quando recebi o convite da TV Cultura.
Mas, no fundo, encontrei um porquê. Talvez eu esteja aqui para cutucar o
Caetano menos conhecido. Talvez o Caetano e as crianças. Eu queria te dizer o
seguinte – e depois te perguntar: quando cheguei, quase 29 anos atrás, ao
Brasil, da Europa, nunca tendo vindo antes para a América Latina, me defrontei
com uma realidade que me comoveu profundamente: o lugar privilegiado que a
criança ocupava na cultura brasileira, do povo brasileiro. Na minha visão de
europeu, isso me apareceu como uma coisa extremamente bonita. Ao longo desses
29 anos devo, melancolicamente, dizer que esse lugar veio progressivamente
deteriorando. Hoje, a criança, de uma maneira geral, no Brasil, incomoda. Muito
mais se forem crianças das classes populares, muito mais se for criança que
teve que buscar na rua os meios para sobreviver ou um adolescente que teve que
incorporar formas de violência. O que é que você pensa disso?
Caetano
Veloso:
Bom, logo me tocou quando você, sendo italiano de nascença, falou em como lhe
impressionou o modo como a criança... O lugar que a criança ocupava na vida
brasileira ao chegar aqui. E me lembrei de um livro de um outro italiano, que é
Contardo Calligaris [psicanalista italiano radicado no Brasil], que também
confessa ter sofrido o mesmo impacto. E ele, justamente no capítulo em que
trata disso, põe - como ele é psicanalista e “afrancesado”, né, meio lacanizado
[refere-se ao psicanalista francês Jacques Lacan] – , de uma maneira muito
interessante, essa contradição profunda que é o lugar da criança no imaginário
brasileiro: como aparece a criança como um rei ao mesmo tempo em que é um país
onde as crianças que não têm meios de subsistência, são pior tratadas,
possivelmente, no mundo. Um dos países onde pior se trata as crianças pobres no
mundo. É um país onde mais ou menos sistematicamente se matam crianças. E
aquilo impressiona quando é posto assim, como uma manifestação de um
desequilíbrio psíquico coletivo muito significativo. Então, penso e acho
curioso, porque talvez fosse o caso de a gente dizer que ser civilizado é não
deixar a criança ocupar um lugar tão maravilhoso. É ser mais restrito com a
criança comum e isso é o preço de você não ser levado a matar crianças. Entendeu?
Mas não quero acreditar assim. Quero acreditar que essa disparidade tão absurda
queira dizer que nós temos muita dificuldade em organizar a nossa vida no mundo
como ele é hoje. São forças muito grandes que se movem e se dão dentro do
Brasil. Isso reflete como essas forças se movem e o Brasil, sendo o que é na
história do mundo, passa por essa turbulência brutal, mas seguindo uma trilha
que tem - ela própria - beleza. Por isso... Isso é o que me leva a achar
interessante, por exemplo, o que você faz na Bahia com o Projeto Axé, que é um
trabalho teimoso de não aceitação disso como uma fatalidade. E também de uma
desmistificação da grandeza desse mal porque quanto mais nós dizemos que “há um
mal imenso [enfatiza]!”, mais a gente se desincumbe de ter que resolvê-lo,
entendeu? “É um problema insolúvel, o problema da criança pobre no Brasil”. Não
é que seja insolúvel... Naturalmente, o problema da criança pobre no Brasil é
um problema dos pobres. Isso é um profundo problema da humanidade hoje. É um
profundo problema. Porque... A gente não sabe para onde o mundo poderá andar. A
gente não sabe para onde ele poderá andar. Se um cinismo elitista e eficiente
será absolutamente necessário, intransponível como ideologia, para ordenar a
vida prática, ou se haverá ainda algum lugar na organização das mentes, para a
idéia de inclusão da totalidade - ou pelo menos da maioria - dos seres humanos.
Se há ainda a possibilidade de se pensar em sociedades inclusivas, includentes.
Não excludentes. Porque a tendência atual é de ser muito excludente. O Brasil é
um país enorme no hemisfério sul onde quase tudo não funciona. Católico,
latino, na América, ou seja... Num ambiente onde ainda, até hoje, nada
propriamente funcionou bem, não é? Enfim... Hoje, até quando se fala em
Shakespeare parece que está se falando para dizer assim: “a língua inglesa é
mesmo a língua que tem que dominar!”. Então, é um modo de falar que você já
sente que estão todos lhe dizendo que você não tem nenhum buraquinho por onde
escapar. Agora, o meu desejo de não me submeter a isso e de tentar fazer com
que coisas como você faz na Bahia com o projeto Axé, possam funcionar... Quer
dizer, me interesso por coisas assim, porque acho que é uma teimosia, no
sentido de acreditar que há uma trilha bonita possível, que a gente não sabe
qual é, mas que é! Mesmo que a gente não a siga, nunca consiga atravessá-la,
ela existe e é nossa.
Hubert
Aranha:
Olha só, Caetano... Acho que você está na grande tradição dos polemistas
baianos. Ruy Barbosa, Glauber Rocha... Acho que o baiano tem essa... Alguns,
né? Você é baiano? [risos e sobreposição de vozes] Na Bahia é um dos poucos
lugares onde você fica uma semana e já fica [dizendo] “porque ,ah... Acho que é
um lugar... Não sei o quê...”. Então acho que é um lugar e, voltando o papo do
Tropicalismo, você falou que se encontrou com Augusto de Campos, você estava
falando de Oswald de Andrade com a peça O rei da
vela e, por acaso, estava lendo uns libros – saiu agora um livro do
Luis Carlos Maciel, saiu um livro de fotografias, também –... Então, acho que
está se discutindo o Tropicalismo outra vez, assim, com essa perspectiva.
Algumas pessoas estão colocando... E a impressão que me dá é a seguinte: é que
foi uma hora que se juntou a Bahia com São Paulo, embora tenha alguma coisa do
Rio de Janeiro, também. Mas acho que é uma coisa inédita, essas duas forças
culturais, financeiras e econômicas do Brasil [juntas]. Agora, a gente também
sente que não era um movimento, assim, “olha, hoje vamos sair de casa e vamos
falar disso”. Eram coisas que iam surgindo... Então, eu queria falar, já que
estamos falando de Brasil e tal, li hoje o meu calhamaço que a produção deu,
aliás...
Matinas
Suzuki:
Calhamaço?! “A grange pesquisa...” [risos]
Hubert
Aranha:
[risos] Pois é! Mas parei no ano de 1979, então só vou poder fazer perguntas
até essa data! [risos] Achei uma coisa muito bacana de um crítico que hoje está
meio por fora, mas que na época eu achava – tinha 22 anos – irritante, o [José
Ramos] Tinhorão [crítico de música popular, conhecido por elaborar ferrenhas
críticas à Tom Jobim e outros músicos da bossa nova. Foi entrevistado pelo Roda Viva em 2000], que era um
cara nacionalista ferrenho e tal. Mas acho que hoje a música brasileira voltou
a ter muita força, aconteceu um monte de coisas... E ele falava do Chico
Buarque, na sua Ópera do malandro,
e do Caetano, que lançava o Cinema
transcendental. Então ele fala dos dois discos. O título é o
seguinte: “Como seria bom se a música de Caetano e Chico Buarque
correspondessem à sua poesia”. A com crase, né? “À sua poesia”, então. Ele fala
assim! [risos] Ele fala do Chico, fala que tem um monte de maxixe, que tem
boleros, que tem foxtrot, que é
um absurdo, que tinham que tocar samba e tal. Aí ele fala do Cinema transcendental, né, que ele
diz que é legal, mas faz umas críticas, olha: “Na primeira faixa, por que
acrescentar 'pseudossons' modernos do baixo e dos teclados ao acompanhamento
básico que soa ao fundo, marcando o ritmo bonito de um triângulo bem
nordestino?”. Depois, ele diz: “Da mesma forma em "Beleza pura", por
que o coro de gosto internacional...?” Soul!
Ele sabia o que era soul,
ele não estava citando [...]... Ele falava “estragando o clima tão gostosamente
"caetano-baianista" da música”. Aí ele dizia assim: “Isso tudo é
desalentador, porque quando o Caetano, afinal, submete sua poesia tão
brasileira à forma musical adequada, resultam obras lindas como a toada moderna
“Trilhos urbanos”, a experiência “Araçá azul” e o maravilhoso xaxado-canção
“Cajuína”. Ele bota um pedaço de “Cajuína” e fala assim – olha, que
engraçado! –: “Que grande poeta para tão pequena compreensão de sua
responsabilidade ideológica perante os contemporâneos”. Então eu queria falar,
voltando à história do Tropicalismo, essa mistura que você começou a fazer
nessa época, desde cedo, no seu trabalho – você começou “bossanovista” –,
mas que você botou a banda Black Rio... Me lembro, eu fui nesse show... Aquelas
coisas todas e tal. Como você vê isso, hoje, no momento em que tem pessoas– por
exemplo, o Carlinhos Brown – fazendo MPB [Música Popular Brasileira], quando,
até dez anos atrás, 15 anos atrás – eu me lembro – só se falava de rock.
MPB era uma coisa que as pessoas diziam assim: “MPB é coisa de velho, não sei o
quê e tal”. Vejo a MPB... nunca saiu do gosto do público. Queria saber o que
você acha desse negócio de misturar, já que você está falando do Brasil em
relação aos outros lugares do mundo, por que você nunca se poupou de misturar a
sua música à outras músicas do mundo? Nunca teve grilo com isso?
Caetano
Veloso:
Logo no início do Tropicalismo, uma das primeiras coisas que nós pensamos foi
justamente de sair desse grilo, né? Esse grilo representava o que o Marquinhos
falou, que era uma ameaça de fazer a cultura brasileira estacionar em uma visão
errada do que tinha sido o Modernismo, ou seja, virar um mero nacionalismo
populista, entendeu? Isso é uma coisa que, evidentemente, nós percebemos e não
queríamos.
Hubert
Aranha:
Você acha que existia música brasileira pura?
Caetano
Veloso:
Não. E o Tinhorão representava justamente o defensor desse nacionalismo
populista que nós queríamos derrubar, para poder...
[sobreposição
de vozes]
Matinas
Suzuki:
Hoje você acha que o Tinhorão foi mais um mal ou mais um bem? [risos] Olhando
hoje...
Caetano
Veloso:
O Tinhorão é interessante. Li os livros dele, aqueles livros que ele publicou,
uns em Portugal, outros aqui... Li todos porque ele me interessa. Acho que deve
interessar. Acho que quem quer pensar coisa de música popular no Brasil tem que
enfrentar o Tinhorão porque ele é um grande arquivista, ele é um sujeito muito
organizado e ele pensou, com muita coerência, aquele negócio dele. E a questão
do nacionalismo, é uma questão que a gente tem que ver, rever, tem que passar
por ela toda hora. Eu acho. Agora, o Tinhorão tem o seguinte, ele... O fato é
que ele gostava mesmo de mim, mesmo dessas coisas que eu fazia. [risos] Ele
mais gostava do que não gostava. Tanto que essa própria crítica que você leu aí
um trecho, demonstra isso. E ele, um dia, me disse pessoalmente. Mas ele tem um
problema muito mais profundo: ele não gostava do Tom Jobim. É muito mais
profundo. Então não posso concordar com ele. Ele até... O Tropicalismo para
ele, afinal de contas, era mais palatável porque, naquela confusão, muitas
coisas que soavam populistas vinham de cambulhada [grande quantidade]. A bossa
nova, não. A bossa nova tinha sido um trabalho mais coerente, profundo, de
formas novas e polidas, refinadas, conseguidas...
Eduardo
Giannetti da Fonseca: Acho que isso retoma, Caetano, no plano estético,
aquela mesma tensão de que eu estava falando. Você trouxe para a música
brasileira um acabamento formal, uma sofisticação de ambiência, de arranjo que
é muito moderno, que é muito avançado. Mas a sua experiência como criador é
brasileira. Profundamente brasileira. E você juntou essas duas coisas. Na arte,
maravilhoso! O que volto a perguntar é na vida...
Caetano
Veloso:
Na prática, se isso é possível... Acho que sim, porque tenho uma visão da vida
de artista. E acho que a visão artística é boa para a vida, precisa ser usada e
que é pouco usada. Agora, também tem uma coisa de que a gente deve fazer
diferença. Acho que esse acabamento, esse tom civilizado quem trouxe foi a
bossa nova, quem realizou foi a bossa nova. [sobreposição de vozes concordando
com Caetano] O Tropicalismo se beneficiou disso.
Matinas
Suzuki:
Nós estamos com o nosso tempo estourado. E a gente volta daqui a pouquinho com
a segunda parte da entrevista com Caetano Veloso. Até já.
[intervalo]
Matinas
Suzuki:
Bem, nós voltamos com Roda
Viva, que está completando 10 anos e esta noite entrevista
Caetano Veloso. Infelizmente, você não poderá enviar suas perguntas para este
programa, porque ele foi gravado. Antes de mais nada, o Caetano está lançando,
pela Natasha Records, a trilha sonora do filme Tieta do Agreste, que está em circuito nacional,
dirigido por Cacá Diegues, que está aqui presente. Caetano, a propósito do Tieta, você fez um show com a Gal
Costa e esse show era uma grande homenagem ao cinema, praticamente só feito de
músicas que fizeram parte de trilha, ou foram citadas em filmes que você gosta
e canções que você gosta. Você tem planos de voltar a fazer cinema, já que esse
show foi uma grande homenagem ao cinema e você, pelo que soube, trabalhou
bastante com o Cacá nessa trilha, ficou muito envolvido com o filme?
Caetano
Veloso:
Fiquei muito! Porque gostei muito do filme, eu queria fazer a trilha
direitinho. Mas, desde as primeiras imagens que ele me mandou, fiquei muito
maravilhado com o filme e achei que ficou lindo no fim das contas. É um filme
que enche a gente de esperança. É um filme realmente regenerador, todo mundo
vai ver!
Matinas
Suzuki:
Mas você quer voltar a fazer cinema?
Caetano
Veloso:
Eu quero! Quer dizer, tenho desejo. Eu queria ser cineasta, né? Escrevia
críticas de cinema e pintava e queria dirigir filmes. Mas a música popular é
muito forte, terminou me arrebatando! E, aqui no Brasil, ela tem muita força,
ela arrasta todo mundo, né? Eu fui e me orgulho muito! Gosto muito de música
popular e sempre estaria ligado a ela. E sempre agradeceria ao que quer que eu
fizesse à música popular, porque ninguém – de todo mundo de quem a gente já
falou aqui e que a gente pode vir a falar ainda hoje – exerceu sobre a minha
mente uma ação tão importante quanto o João Gilberto. Mesmo que eu viesse a
virar um cirurgião [enfatiza] – entendeu? –, iria agradecer a João Gilberto.
[risos]
[...]: Cirurgião bossa
nova!
Caetano
Veloso:
Pois é, justamente! Não sei por que me ocorreu essa profissão, mas enfim... O
que quer que eu fizesse - se fosse escritor ou cineasta ou pintor - , sempre
iria dizer de público a minha dívida para com João Gilberto. E ele, para mim, é
o maior artista brasileiro e foi o que mais impacto causou em mim, mais
determinou o que eu iria fazer. Então, a música popular seria sempre uma
maravilha. Mas eu não me sentia à altura para trabalhar em música. Eu não
sentia que eu tivesse talento suficiente para trabalhar em música. Mas para o
cinema, sim, eu achava que tinha mais talento para cinema. Tenho vontade de
fazer filmes, tenho desejo, mas não sei se tenho coragem de armar planos!
Porque, depois, descobri, na prática, que para a vida prática do músico tenho
mais vocação do que para a vida prática do cineasta! [risos] É muito difícil
isso. O cineasta...
Eduardo
Giannetti da Fonseca: Caetano, falando sobre futuro, a gente sabe que você
está escrevendo um livro. O Luiz Schwarcz [dono da Companhia das Letras,
editora que publicou em 1997, o livro Verdades
tropicais, de Caetano] me disse que você tem 500 páginas
escritas...
Matinas
Suzuki:
Aliás, essa pergunta o Luiz Schwarcz gostaria de ouvir respondida no Roda Viva!
[risos]
Eduardo
Giannetti da Fonseca: O que está acontecendo?!
Caetano
Veloso:
O que está acontecendo só o Cacá Diegues pode explicar! Eu me misturei demais
com os cineastas e fiquei com muito menos tempo para fazer as coisas! [risos]
Não, acontece o seguinte: escrevi muito. Esse negócio de 500 páginas deve ser
uma conta do Luis Schwarcz, que fica nervoso e viu páginas demais. Não sei
contar, porque naquelas páginas do computador... Não tirei cópia para ver
quantas páginas de livro aquilo faria, mas ele fez um cálculo lá... Mas, mesmo
que fossem 500, não seriam todas utilizáveis em um livro, entendeu? É que
escrevo como falo, assim, meio demais, prolixamente. Mas o que aconteceu foi o
seguinte: topei escrever, porque um americano me propôs e fiquei muito
comovido, na verdade, com isso. Faço piada falando que foi a força do imperialismo!
Os brasileiros tinham me pedido diversas vezes e eu não tinha aceito! Mas esse
americano me comoveu, porque ele não me conhecia. Ele leu o meu artigo sobre a
Carmen Miranda no New York
times. E ele é um editor da Knopf [Alfred A. Knopf, parte do Knopf Publishing
Group, fundado em 1915, em Nova Iorque e que publicou o livro de Caetano, Tropical truth: a story of music and revolution
in Brazil, em 2003] e, lendo esse artigo, ele me procurou. Ele
escreveu para o Ballroom [casa noturna do Rio de Janeiro], que era a casa onde
eu estava me apresentando, dizendo que queria falar comigo e tal... E ai foi
assim, comecei a falar com ele...
Eduardo
Giannetti da Fonseca: E é uma grande editora americana!
Caetano
Veloso:
Pois é! Ele gostou do artigo sobre a Carmen Miranda que saiu no New York Times, porque o New York Times tinha me
encomendado. Então, fiquei... E ele me disse assim: “Quero fazer um livro com
você. Acho esse artigo... Senti que tem um negócio aí, de uma história do que
aconteceu nos anos 1960 no Brasil, que ainda não foi contada para o mundo. Eu
não sabia que tinha essa força toda e, no seu artigo sobre a Carmen Miranda, eu
senti isso." E fiquei fascinado, queria escrever um livro! Achei que ali
tem um embrião de um livro!”. Aí fiquei... Disse para ele: “Falei com todo
mundo no Brasil que não vou escrever livro coisa nenhuma” e tal. Mas ele ficou
insistindo, [dizia] “vamos ficar nos falando”. Aí ficou insistindo e terminou
me convencendo! Então, fui escrever. Mas aí aconteceu que quando eu disse a ele
“então tá, vou tentar”, comecei a escrever e aí gostei de estar escrevendo e
até do que [enfatiza] estava escrevendo. Então fiquei animado e fui escrevendo.
Mas fiz o seguinte: todo esse tempo tenho escrito nas horas de descanso. Se eu
tiver, assim, 20 dias de férias, sem show, sem gravação, passo esses 20 dias
escrevendo. E, enquanto tenho show; saio do show, chego no hotel e vou
escrever. Quando eu estava em Nova Iorque mixando a música de Tieta com Cacá [Diegues] e com o
Jaquinho [Jaques Morelenbaum, arranjador e produtor do disco], eu saía do
estúdio, chegava ao hotel e ia escrever. Voltava, dormia um pouquinho, acordava
de manhã, escrevia, ia para o estúdio e voltava... Enfim, nas horas que eram
para o descanso,eu ficava escrevendo. Eu achava que escrever é descansar.
Depois, no fim da mixagem de Tieta,
voltei para o Rio, me senti exaurido, me senti tão cansado... E achei tão
estranho. Falei: “Paulinha [Paula Lavigne, atriz e produtora cultural que
foi casada com Caetano Veloso de 1986 a 2005], sabe o que acontece? Eu cheguei
aqui e agora vou fechar o livro, já está tudo ali. 99 porcento está escrito.
Falta escrever um pedacinho e olhar tudo, dar uma fechada para ver que forma o
livro vai ter, finalmente”. E isso não consegui mais fazer, porque fiquei exausto.
E o que mais me cansava era pensar que eu ia para a frente do computador! Eu
dizia assim: “em ligar o computador me dá um cansaço terrível!”. É porque eu
estava trocando, pensando que escrever era descansar. Você deve saber que isso
é uma burrice total, né? Escrever não é descansar.
[risos]
Matinas
Suzuki:
Você, durante uma época, dizia que não gostava de trabalhar muito, que você
gostava de fazer shows, fazer disco e tal... Mas, nos últimos anos, você vem
trabalhando “para burro”, fazendo uma série de coisas. O que mudou na sua vida?
Caetano
Veloso:
Rapaz, muita coisa mudou em minha vida. Agora, nunca achei que se deve
trabalhar demais. No entanto, sempre trabalhei muito. Sempre trabalhei muito.
Tinha períodos maiores entre um show e outro... O que me fez trabalhar mais foi
o fato de a gente passar a fazer excursões internacionais. Isso se somou ao
Brasil. Então eu, agora mesmo, depois desses shows com Gal, tenho obrigação na
Europa, uma turnê de 50 dias. Vou ficar 50 dias entre ônibus, teatro, ônibus,
teatro, avião, teatro, ônibus, teatro... Vou ficar 50 dias na Europa entre
outubro e novembro.
Eduardo
Giannetti da Fonseca: Essa atividade atrapalha o seu trabalho criativo? Você
gostaria de ter mais espaço para poder se dedicar à criação?
Caetano
Veloso:
Rapaz, nunca atrapalhou, entendeu? Porque sempre compus e fiz as coisas, assim,
às vezes conversando com as pessoas, durante a excursão e no meio do pessoal.
Nunca precisei nem parar nem me retirar para fazer o que quer que fosse. Mesmo
escrever – como eu estava lhe contando –, eu misturei com as outras coisas.
Nunca parei para escrever. Me prometi que faria isso, mas não fiz e fui
escrevendo como quem está descansando enquanto escreve. [Foi] quando me senti
cansado que vi... Porque a coisa é a seguinte: tenho 54 anos. Acho que não dá.
Cacá
Diegues:
Deixe-me fazer uma pergunta de caráter pessoal... É o seguinte: a nossa geração
sempre se sentiu muito responsável pelo Brasil. Mas tem algumas pessoas na
nossa geração – como o Glauber [Rocha] e como você – que, mais do que
isso, parece que estão em permanente estado de vigília em relação a tudo que
acontece no Brasil. Quer dizer, você é uma pessoa... Eu estava vendo aqui...
Desde que esse programa começou, nós já lhe perguntamos sobre o futuro do
Brasil, o casamento de homossexuais, a vida das crianças, o livro que você está
escrevendo, que é um livro de pensamentos, suas polêmicas com a imprensa... E
você, profissionalmente, é um compositor. É um músico. Esse estado de vigília
permanente – que no fundo é a sua vocação, mas também é muito provocado pelas
pessoas que o admiram ou até que querem brigar com você – , isso é uma coisa
que você faz com naturalidade ou lhe cansa, de vez em quando? De vez em quando
você não quer ser mais o vigilante do Brasil, cansa um pouco?
Caetano
Veloso:
Eu me lembro de Tieta naquela cena
dentro do bar em que ela fala: “Por que é que eu tenho que ter opinião sobre
tudo? Vou deixar as coisas serem como são mesmo, e pronto!”. Adoro quando a
Sônia fala... Vem com uma verdade danada! E ela está danada da vida naquela
hora... Sinto assim, um pouco como ela naquele momento, às vezes. Mas reconheço
que é, como disse mais cedo, uma condenação. Eu gosto, é uma vocação!
Cacá
Diegues:
Você fica num estado de vigília permanente...
Caetano
Veloso:
Cacá também compartilha isso comigo. Ele compartilha.
Matinas
Suzuki:
Pegando um pouco essa reflexão toda, nosso atual presidente [Fernando Henrique
Cardoso] tomou posse citando você. E tem usado você como uma referência muito
respeitosa - e até muito bonita da parte dele - no sentido do reconhecimento do
poder por um grande artista. Mas outro dia eu ouvi um comentário que me ficou
na cabeça... Uma conversa [que dizia] “Mas o Caetano, se continuar nessa, corre
o risco de virar um poeta oficial, de virar um compositor oficial do país”.
Isto, de alguma maneira, passa pela sua cabeça? Como é que é você tem essa
relação com o Fernando Henrique? Como ela é para você?
Caetano
Veloso:
É muito boa. Eu não sinto problemas, não.
Matinas
Suzuki:
Dizem que ele te ouve muito, por exemplo. Pergunta coisas para você...
Caetano
Veloso:
Não é verdade. Não é verdade. Fernando Henrique é um sujeito muito desenvolvido
mentalmente. E, para os problemas que tem que resolver, ele está muito atento e
pensa e sabe uma porção de coisas que eu não sei. De economia, dos problemas em
termos de números... Não há a menor chance de ele precisar ouvir alguma coisa
de mim. [risos] Não existe! Tivemos encontros muito fortuitos – os poucos
que tivemos – e relativamente pouco significativos. Mas o que ficou, o que
causa comentários como esse a que você se referiu aí, foi o fato dele falar em
mim no dia da posse. Mas isso é perfeitamente natural, porque... Acho que um
cantor de música popular, todo mundo conhece, que é respeitado e, ao mesmo
tempo, embora discutido, é agradável e tal. O presidente da República vai se
empossar, fala aquele nome.... Acho que soa bem. Pega bem, é simpático! É o
tipo da atitude simpática para o público. E de uma maneira elegante. Não é
uma... Entendeu? Achei que era isso, não a utilização, assim... Achei que
coincidiu de ele ver aquele programa dos meus 50 anos enquanto estava
descansando para a posse, entre o dia da eleição e da posse e ele gostou
daquilo...
[...]: Você foi convidado
para cantar na posse e preferiu não ir?
Caetano
Veloso:
Acho que me convidaram, é... Acho que me convidaram. Não quis ir para cantar na
posse, não. Acho que alguém... Quem organizou a festa me convidou, mas isso eu
não queria, não. Até ir para Brasília... Na altura não dava. Sair no verão,
acho, de Salvador, não quero. Então não queria. Mas não tenho medo de virar
cantor oficial, compositor oficial... [risos] Isso é tão... Não sinto nenhuma
probabilidade. Outro dia em que eu estive com o Fernando Henrique – foi no
dia do lançamento de Tieta
aqui no Banco Real – e a única coisa que ele fazia era gozar da minha roupa
porque eu estava de colete! E ele ficou me gozando o tempo todo, dizendo: “Poxa
vida, se eu soubesse, eu também tinha botado um colete!”, e me sacaneando
porque a minha gravata... Dizia que eu não sabia dar o nó direito, porque
ficava caindo, descendo e tal, o nó. Mexendo comigo por causa disso. Quando fui
lançar... O que era mesmo?... Fina
estampa [1994]! Aí eu ia fazer o Fina
estampa no Rio, no Canecão [uma das principais casas de shows do
Rio de Janeiro]. Eu ia fazer dois meses. Então eu precisava de publicidade,
porque a gente tinha apostado em fazer dois meses e era uma montagem
dispendiosa, com uma orquestra grande [enfatiza]... Um show que eu adorava
fazer, porque era muito bem acabado, uma coisa maravilhosa, com arranjos de
Jacques Morelenbaum, mas tinha uma orquestra grande, era um show que
precisava... A gente não podia arcar com a possibilidade do Canecão não estar
cheio. Então eu dei entrevistas e recebi todos os jornalistas para fazer publicidade,
para falar naquilo, para poder ajudar. Fui orientado nesse sentido pela
produção do espetáculo e achei que estivesse tudo certo. Dei várias
entrevistas... Uma para o Fantástico
[programa exibido aos domingos pela Rede Globo desde 1973], outra para a
[revista] Isto É... Pra
quem ia chegando, eu ia falando. Para eu lhe dizer, falei sobre algumas coisas
– estou usando esses dois veículos, eu falei para vários, mas esses dois foram
muito nitidamente significativos –, falei, inclusive, sobre Fernando Henrique,
sobre Antônio Carlos Magalhães [(1927-2007) empresário e político com
influência muito grande na Bahia, mas também em nível nacional, marcado pela
pecha de usar métodos coronelistas na aquisição e condução do poder. Figura de
sustenção do regime militar, após seu término continua no poder; em virtude de
haver apoiado a candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, continuou
influente junto aos sucessivos governos federais até sua morte] e sobre
diversas coisas e... Literalmente tudo que eu falei de negativo, falei a mesma
coisa para os dois veículos. A mesma coisa com a mesma complexidade.
Basicamente a mesma coisa, tudo que eu falei que soasse contra Fernando
Henrique e contra Antônio Carlos Magalhães, saiu só isso na Isto É. E tudo que falei que
parecesse a favor, saiu só isso no Fantástico.
[risos] Então, na mesma semana, você me via no Fantástico dizendo que o Antônio Carlos Magalhães era
maravilhoso e que tinha muita coisa a agradecer, que os baianos todos tínhamos
que agradecer a ele a maravilha que era a restauração do Pelourinho [bairro
residencial localizado no centro histórico de Salvador onde, durante o período
colonial brasileiro, os escravos eram castigados. Durante os anos 1960 ficou
extremamente degradado, contudo se tornou parte do Patrimônio Histórico da
Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)
nos anos 1980 e, ao ser revitalizado na década de 1990, tornou-se um dos
principais pontos turísticos da cidade e seu principal centro cultural]... E na
Isto É, na capa da Isto É, eu estava dizendo assim: “O
Fernando Henrique é o culpado da chacina no Pará”, dos sem-terra [conhecido
como massacre de Eldorado dos Carajás, a chacina aconteceu no dia 17 de abril
de 1996, quando 19 trabalhadores rurais foram mortos pela polícia do estado do
Pará]... Tudo isso, mais ou menos, eu disse. Mas era uma coisa completa. E
saiu... O que eu dizia de ruim saiu na Isto É.
O que eu dizia de bom saiu no Fantástico.
Então, quero dizer, houve isso por exemplo. Na Isto É, saiu na capa uma fotografia minha e eu falando
mal de Fernando Henrique, assim, de uma maneira sem... Grande, escrito como
chamado de capa, dizendo que ele era responsável pelas mortes dos sem-terra.
Marcos
Augusto Gonçalves: Deixe-me fazer uma pergunta ligada à questão do establishment... Porque é o
seguinte: você foi vaiado por estudantes, você sempre teve a sua... Na minha
juventude, gostar de Caetano Veloso era uma atitude. Não era uma conseqüência
natural do gosto, como é hoje. Era uma atitude. A sua vida era muito ligada a
atitudes. Eu me lembro de você cantando de batom, enfim, tomando atitudes muito
marcantes mesmo em relação a comportamento. Tudo isso para fazer uma pergunta
prosaica, que é a seguinte: você abriu as portas da sua casa para a revista Caras. Quando vi aquilo – pode
parecer uma coisa extremamente ingênua, isso [risos] –, a minha reação, não só
a minha, porque pude checar esse meu espanto com outras pessoas [que
questionaram]: "Mas por que que o Caetano, uma pessoa que fez tanta coisa,
faz um negócio tão 'careta' desses como posar para a revista Caras?" Não que eu tenha nada
contra a revista Caras.
[...]: Não tive coragem
de comprar, viu?
Hubert
Aranha:
Senti a maior inveja, achei a casa maravilhosa!
[risos]
[sobreposição
de vozes]
Hubert Aranha: Sou fã de Caras. Acho que é uma revista que
mostra muita coisa do Brasil, especialmente as casas como a do Caetano!
Caetano
Veloso:
Mas o que você quer saber?
[risos]
Marcos
Augusto Gonçalves: Quero saber o seguinte: se isso é um sinal de um... Do
tempo? Do quê? Porque me parece uma atitude muito...
Caetano
Veloso:
Bom, quando comecei a trabalhar não existia a revista Caras. Não existia propriamente
nada que fosse correspondente. Mas eu aparecia na revista Intervalo, na revista Fatos e Fotos, na revista Manchete... Eram as revistas que
havia.
[...]: No Chacrinha...
Marcos
Augusto Gonçalves: O Chacrinha tinha um intuito... Era diferente. Não era
a mesma coisa.
Caetano
Veloso:
Tudo é diferente. Não havia revista Caras,
já começa por aí.
Marcos
Augusto Gonçalves: Minha pergunta foi no sentido... Porque cansei de te
ver em outras revistas. Mas o que significa de establishment, entendeu? A revista é onde aparecem os
ricos com suas casas maravilhosas!
Caetano
Veloso:
É. Nunca tive muito interesse na revista Caras.
Não tinha interesse nem de aparecer na revista Caras ou de ficar olhando a revista Caras, não. Sinceramente, não
tinha. As pessoas que me procuraram para fazer a reportagem eram muito gentis,
muito simpáticas e terminaram me convencendo. E fiz, mas não havia nada de mal.
Dou entrevistas, leio as coisas que disse totalmente deturpadas, leio
imbecilidades incríveis nos jornais e nas revistas, entendeu? Eu não tinha uma
razão... Aquelas moças, simpaticíssimas, um amor... O fotógrafo é uma maravilha
de pessoa. Então, um sujeito maravilhoso [disse]: “Vamos fazer umas
fotografias?” Fiz. Paulinha achava legal. “Tá bom, eu faço”. Já tinha... Então,
não tive uma razão especial para fazer aquilo. Mas também não encontrei nenhuma
razão especial para não fazer aquilo. Por exemplo, tem uns sete anos que não
dou entrevista à revista Veja.
Não falo. Não falo, porque achei que eles passaram demais do limite do
absolutamente suportável comigo. No entanto, a revista Veja é uma revista que apareceu
justamente no mesmo período em que comecei a aparecer publicamente, 1967. Ela é
minha companheira de viagem. E não pense que tenho dela apenas uma opinião
negativa. Não! Acho que... Naturalmente, é chato que a revista seja imitação da
Time, que a Isto É seja imitação da Newsweek, que é uma imitação da Time nos Estados Unidos... Tudo
isso é chato, podia ser uma coisa totalmente diferente... Como parar de fumar
agora. O presidente manda parar de fumar somente porque os americanos
proibiram. Acho chato. Por que nunca ninguém no Brasil pensou isso antes?
Entendeu? Acho mais interessante, no Brasil, você poder tomar ayahuasca [chá de origem indígena,
produzido a partir de um cipó e um arbusto amazônicos. No Brasil, o uso ritual
é uma prática legal e se divide em três troncos principais: o Santo Daime, a
Barquinha e a União do Vegetal] e que não seja considerado droga, que não
seja proibido. Isso é um fato que só tem no Brasil e é curiosíssimo. Isso me
interessa mais do que o negócio de proibir cigarro depois que os americanos proibiram.
Isso é chato! Isso é uma coisa de falta de imaginação, falta de liberdade, de
iniciativa. Nunca vejo aqui ter uma coisa pela primeira vez! Deveriam liberar a
maconha antes aqui ao invés de proibir o cigarro depois dos Estados Unidos,
entendeu? Acho que aqui deveria ser... Droga deveria ser livre! Livre e
desencorajada. Porque você acaba com o valor que isso tem para o tráfico, com
essa economia paralela e acaba com esse moralismo imbecil. Isso não acontece
nos Estados Unidos, porque não está... Eleitoralmente, é impossível nos Estados
Unidos e na Inglaterra. Esses países não aguentariam sequer a idéia de um
senador chegar lá no plenário e dizer: “Eventualmente, acho que se deveria
descriminalizar a maconha”. Ou descriminar, como se diz hoje no Brasil.
Descriminar [enfatiza o “e”]. Enfim, nos Estados Unidos não pode. Ninguém fala
isso! [sobreposição de vozes] Mas aqui se pode fazer, podia ser...
Marcos
Augusto Gonçalves: A Holanda consegue fazer isso.
[sobreposição
de vozes]
Caetano
Veloso:
É! A Holanda, a Espanha também fez. Não gosto de droga! Não tomo droga, não
gosto nem de chocolate! Nem como chocolate. Não tomo café. Não fumo mais, há
muitos anos que não fumo e bebo rarissimamente. Bebia, Tenório sabe disso, mas
depois parei. Bebo muito raramente. Não gosto de beber todos os dias. Acho que
ninguém deveria beber todo dia! Não sei por que na TV aparece “o fumo faz mal à
saúde”, mas não aparece “o álcool faz mal à saúde”. A única explicação... Os
americanos, na verdade, ficaram envergonhados por causa da lei seca. Não
quiseram fazer com a bebida, porque ia pegar mal. Mas é o mesmo velho
puritanismo. Eles fazem com o cigarro, porque aí satisfaz o que eles desejam, o
que eles precisam fazer, mas não entram no ridículo da bebida, que já passou.
Então vão pelo cigarro que é outro caminho. É só a razão que vejo para não
dizer isso da bebida, porque essa idéia de que você fuma e faz o outro fumar,
mas que a bebida não atrapalha o vizinho, é uma idéia idiota! Porque uma pessoa
bêbada atrapalha muito a gente. Uma pessoa bêbada ao volante mata [enfatiza] as
pessoas. Uma pessoa bêbada fora do volante pode acabar com a nossa conversa
aqui, pode estragar a nossa vida, pode chatear a nossa noite, pode acabar com o
seu casamento, a sua felicidade. Não é bom, não, entendeu? Então, por que que
não bota da bebida? Então que o Brasil inventasse de colocar da bebida. Queria
alguma coisa assim, feita livremente. Libera a maconha, faz propaganda contra a
bebida! Queria alguma coisa diferente. Até o Antonio Callado escreve um
texto... Adoro ler o Antonio Callado, mas um dia ele escreve: “Não, a bebida
está na tradição, mas a maconha, não. Droga é droga, a bebida é bebida”. Isso é
burrice. Embora ele seja maravilhoso.
Cesare
de Florio la Rocca: Eu queria tentar uma... ter a ousadia de tentar uma
síntese para o desafio da primeira pergunta do Giannetti. Acho que a síntese
poderia passar, certamente, por duas vertentes: a criança e a arte. A arte, a
beleza, a estética, ou seja, aquilo que você en
passant estava dizendo antes, que a visão que o artista tem da vida
é uma visão real, e não apenas ideal. No meu trabalho estou verificando isso
cada vez mais fortemente. Crianças expulsas da escola porque não aprendem a
ler, a escrever, porque não querem ficar, porque não gostam. Em contato com a
beleza, com a arte, com a cultura, se educam fantasticamente. Onde está a
burrice: na criança que não aprende ou na escola que não sabe ensinar? E a
minha percepção é que arte, estética, cultura, não são instrumentos de
educação. Elas são educação por si. O que você pensa?
Caetano
Veloso:
Bom, eu gosto. Concordo, sobretudo, com a conclusão do seu raciocínio [risos].
No meio do caminho, quando você perguntou onde estava a burrice – se na
criança que não quer aprender ou na escola que não sabe ensinar –, tive vontade
de quase interromper você e dizer “está nos dois lugares”. A gente não pode
tentar separar isso. A burrice está em isso poder acontecer dos dois lados,
entendeu? Isso tem que ser superado por ambas as partes. Tem que começar de
alguns dos lados. Ou de alguém que não esteja em nenhum dos dois lados. Talvez
o artista. Ou talvez quem goste de arte [risos], que jogue uma outra coisa e
que saia por um outro caminho. Mas eu acho que a gente não pode, também,
esquecer das responsabilidades individuais de todos. Inclusive de cada pessoa.
E responsabilidade de cada pessoa vai crescendo na medida em que a pessoa vai
crescendo. Então, uma criança vai tendo cada vez mais responsabilidade. E as
crianças, hoje, devem mesmo ter mais responsabilidades do que tinham há muito
tempo atrás porque elas eram mais crianças do que são hoje. Elas não eram
expostas a tanto conhecimento da vida como são hoje, por causa da televisão, do
modo mesmo como a educação se desenvolveu. E também porque ela se desenvolve
com mais velocidade. Há uma série de coisas assim... E os homens, não por serem
pobres, estão... Como é que se diz?... Livres de responsabilidades. E, ainda,
por serem crianças pobres, não estão livres de responsabilidades. Acho que em
cada posto, em cada lugar em que alguém está, deve-se exigir dos indivíduos que
estão pertos de si, inclusive no caso em que for preciso punir mesmo, porque há
uma tendência meio doentia de parecer... Li no livro desse cara lá do Rio...
[tenta se lembrar] Um negócio sobre... Como é o nome do sujeito? Olavo de
Carvalho! Um negócio que era bom sobre isso, de que você substituir a
responsabilidade individual por uma responsabilidade social, que é sempre
superior às responsabilidades individuais, é doentio. Não gosto disso. Tenho
horror a ler aquelas senhoras fascistas de Copacabana que escrevem cartas para
o Jornal do Brasil
dizendo: “Ah, essas crianças precisam ser punidas, os adolescentes...”. São as
mulheres chatas, horrorosas que pensam que você deve botar a carrocinha de
cachorro para levar menino, entendeu? Detesto elas, porém não acho certo que
você pense: “A culpa é da sociedade”. E, se um menino de 17 anos mete uma faca
no seu peito, então você acha que está certo? Não está certo! E ele, como
indivíduo, tem responsabilidades morais sobre isso e deveria responder
legalmente também. Eu não vejo por que não.
Matinas
Suzuki:
Por falar em crianças, você vai ser pai mais uma vez.
Caetano
Veloso:
Mais uma vez! [risos] Está se tornando um hábito!
Matinas
Suzuki:
E o Chico [Buarque] virou avô!
Caetano
Veloso:
Pois é, que inveja!
[risos]
Matinas
Suzuki:
Como é que tem sido, para você, ser pai depois dos 50 anos?
Caetano
Veloso:
Tem sido bom também! Ser pai foi uma coisa... Quando o Moreno nasceu, foi uma
mudança muito radical em minha vida. Nada me mudou tanto. Nada foi tão novo
como informação para mim quanto isso. E é muito importante, porque foi uma
coisa boa. Houve coisas muito ruins na minha vida, que mudaram muito o rumo da
minha realidade pessoal. Mas nem uma coisa – nem das muito boas, nem das muito
ruins– foi mais capaz do que o nascimento de Moreno de mudar a minha
perspectiva, minha orientação, minha sensibilidade, tudo. Foi uma coisa muito
boa! E, depois de anos, quando Moreno já tinha 20 anos, nasceu o Zeca. Então
foi bom, foi uma confirmação dessa coisa que é incrível... Porque eu pensava,
até os 20 e poucos anos de idade... Eu e Dedé [Idelzuíte Gadelha, conhecida
como Dedé Veloso, é atriz e foi casada com Caetano Veloso de 1967 a 1983]
tínhamos decidido que não íamos ter filhos. Eu estava certo de que nunca ia ter
filho. Tinha uma decisão assim... sartriana, “não terei filhos!”. Inclusive
influenciado diretamente pelo próprio [Jean-Paul] Sartre [(1905-1980) filósofo
existencialista francês que foi um dos pensadores mais influentes do século XX
e, da mesma forma que a companheira Simone de Beauvoir, optou por não ter
filhos. No livro As
palavras, de 1964, afirmou: "Não há bom pai, é a regra; que
não se faça disso agravo aos homens e sim ao laço de paternidade que apodreceu.
Fazer filhos, não há coisa melhor; tê-los, que iniqüidade!"]. Mas depois
resolvi, me veio um desejo. Quando eu estava em Londres, quando começou a se
falar que ia se tornar possível voltar ao Brasil, comecei a ter vontade de ter
um filho, uma curiosidade... E, primeiro, Dedé não aceitou, depois a convenci e
Moreno nasceu. E eu que nem gostava de criança, detestava criança! Olha aí,
você não sabia disso! Eu não gostava de criança! Achava criança um negócio
chato.
Cesare
de Florio la Rocca: Eu também! [risos]
Caetano
Veloso:
Ah, então!... Moreno nasceu, mudei isso.
Luiz
Tenório de Lima:
Caetano, então... Como é que você vê, hoje, a influência que pode ter tido para
você a sua experiência com a psicanálise?
Caetano
Veloso:
Rapaz, a psicanálise... [risos] Vou lhe dizer uma coisa. Você é psicanalista,
talvez você não vá gostar, talvez você goste, mas não é uma coisa que agradaria
aos psicanalistas... Fiz muitos anos psicanálise e, antes de fazer – você
sabe disso – eu tinha uma atração pela idéia da psicanálise. Na verdade, quando
criança eu imaginei algo exatamente como a psicanálise embora não soubesse que
ela existia - já lhe contei isso...
Hubert
Aranha:
Você inventou a psicanálise antes?
[risos]
Caetano
Veloso:
Inventei a psicanálise! Inventei a psicanálise em Santo Amaro! Quando eu tinha
assim uns nove ou dez anos de idade, inventei a psicanálise. Pensei que deveria
haver um médico – e achei que deveria ser um médico – com quem a gente pudesse
falar das nossas angústias, e que aí houvesse uma conversa e que a gente
melhorasse...
Hubert
Aranha:
Tinha um filme... Aquele filme, Próxima
parada: bar boêmio, que tem uma mãe judia e o cara fala assim: “Ah,
se o [Sigmund] Freud não tivesse inventado o complexo de Édipo, minha mãe...”.
[sobreposição
de vozes]
Caetano
Veloso:
Pois é, exatamente! Se o Freud não tivesse inventado a psicanálise, acho que eu
teria que inventá-la, porque imaginei isso em Santo Amaro. Mas enfim... Então,
eu tinha uma atração e uma simpatia muito grande pela psicanálise e gostei
muito de ler Freud, que é um escritor brilhantíssimo, escreve “lindissimamente”
bem, um homem inteligentíssimo. Mas o negócio da... a empreitada da
psicanálise, afinal de contas, me pareceu que... Não quero ser ingrato com a
psicanálise porque, com a psicanálise, consegui muitas coisas. Há muitos
"conseguimentos" importantes que vieram da prática da psicanálise, de
eu ter freqüentado a análise, porém são justamente os aspectos que seriam menos
psicanalíticos do que aconteceu lá. [risos] Nenhum dos eventos decisivos na
minha história que vieram da prática da psicanálise corroboram as idéias
fundamentais da psicanálise. Eu quase que diria que, antes, pelo contrário. É
curioso isso, mas é...
Marcos
Augusto Gonçalves: Evento decisivo: cita um exemplo!
Caetano
Veloso:
Posso dar um exemplo de jeito de ser. Fiz psicanálise com três psicanalistas.
Primeiro com um em Londres, um psicanalista brasileiro que vivia em Londres,
depois com um moço no Rio e por fim com doutora Inês Besouchet [primeira psicóloga
a ter formação em psicanálise, fundadora da Sociedade Psicanalítica do Rio de
Janeiro e criadora do Cesac (Centro de Estudos de Antropologia Clínica)]. O
primeiro chama-se Abrão Brafman, mora em Londres; o segundo chama-se Rubens
Molina e a terceira doutora Inês Besouchet. Mas foi meio trocado, porque fiz em
Londres com Abrão Brafman porque eu estava muito, muito mal. E eu tinha essa
curiosidade com a psicanálise desde criança, mas não achava que tinha uma
necessidade premente de fazer como um tratamento. Tinha curiosidade intelectual
e atração por aquilo, mas em Londres – eu estava exilado – fiquei muito mal
psicologicamente. Então Dedé terminou localizando um psicanalista, telefonando
para ele e me instigando a ir até lá. E comecei e tal, e fiz. Era muito
analítica essa análise, no sentido em que ali esperava-se que o inconsciente
falasse, os silêncios eram muito indutivos... Havia toda essa coisa. E não
posso dizer que não houve nada, mas sinto que ali... Não posso dizer que as
coisas... Mas também não demorei muito tempo lá. Vim para o Brasil e aí fiquei
na Bahia sem vontade, nem propriamente necessidade de fazer psicanálise. Mas
foi voltando a vontade de retomar para ver até onde aquilo ia e porque
permaneceu uma necessidade... E digo: “Bom, tenho que concluir isso”. Não havia
na Bahia quem eu fizesse, então vim morar no Rio de Janeiro por isso. Fui morar
no Rio para fazer psicanálise. E fui procurar especificamente a doutora Inês
Besouchet, porque Carlos Augusto Nicéas, que é um psicanalista de quem me fiz
amigo em Paris – mas, no Brasil, ele desapareceu da minha vida –, me tinha
falado esse nome com muita admiração e entusiasmo. E havia uma dedicatória de
Clarice Lispector, que é uma escritora que adoro desde os meus 19 anos... Desde
os meus 17 anos, na verdade. O primeiro conto de Clarice que li... tinha 17
anos e me apaixonei por ela. Então, tem um livro da Clarice que é dedicado a
Inês Besouchet. Então, se ela dedicou um livro a essa mulher e Carlos Augusto
me falou dessa mulher, disse “vou procurar essa mulher no Rio”. Eu tinha
vontade de fazer psicanálise com uma mulher. Por alguma razão achava isso
interessante. Se viesse para São Paulo, eu ia procurar a Virgínia Bicudo
[(1915-2003) socióloga e psicanalista, usou os meios de comunicação de massa
como forma de divulgação da psicanálise]. Mas como era para o Rio que eu queria
ir, porque Dedé não queria morar em São Paulo, e sim no Rio, fui procurar a
Inês Besouchet, que era uma mulher encantadora, maravilhosa, mas que me atendeu
uns três dias para as primeiras entrevistas e, por fim, me disse que não tinha
tempo e me indicou um jovem psicanalista, que é Rubens Molina, com quem fiz
[análise] muitos anos. E ele era diferente de tudo... [risos] De uma certa
forma, o que mais bateu em mim por parte dele foi o fato dele ser muito
diferente do que a gente entende ou do que se diz quando se tenta aprofundar a
observação sobre a psicanálise. Ele era muito direto e falava das coisas
imediatamente – falava quase antes de mim –, ele ia se metendo, dizendo
coisas e... Muito rapidamente, entendeu? E aquilo foi muito bom. Mas não sei se
aquilo é muito psicanalítico. Alguma coisa, sim, era. Mas as coisas que mais
repercutiram em mim, repercutiram porque eram coisas que... se impunham e que
eu não tinha chegado a ter coragem de pensar. Ele pegava e dizia. Isso não é
psicanálise, isso não é o que se diz profundamente que é psicanálise, não é uma
conversa do inconsciênte que aí vai se revelar e então ele é legível. Esse
aspecto é que nunca cheguei propriamente a ver na psicanálise, embora tenha
ficado muitos anos ali e tivesse tirado muito proveito daquilo. Mas, por
exemplo, lendo o livro de [Ernest] Gellner [(1925-1995) filósofo e antropólogo
social de grande contribuição nos estudos das sociedades modernas e do nacionalismo.
Em 1985, publicou O
movimento psicanalítico: ou os ardis da não-razão], onde ele dizima
a psicanálise, não encontro no meu próprio histórico uma resposta àquelas
críticas, que me parecem, assim, terminantes. [risos]
Matinas
Suzuki:
Caetano... Cacá, você queria fazer uma pergunta antes?
Caetano
Veloso:
Mas ainda amo a psicanálise!
[risos]
Cacá
Diegues:
Eu ia intervir quando o Caetano estava falando das coisas boas e ruins que
aconteceram na vida dele, a propósito do nascimento do Moreno como uma coisa
boa e importante... Eu ia perguntar se você considera que o seu exílio, sua
viagem forçada, sua ida forçada para Londres, foi um momento ruim mesmo na sua
vida ou se não. Como é que você vê isso hoje?
Caetano
Veloso:
Vejo como tendo sido bastante ruim para mim na hora e, de uma certa forma,
aquilo me pôs no meu destino de uma maneira que me fez sentir com menos
liberdade em relação a planejar a minha vida. Eu tinha desejo de fazer outra
coisa que não seria música popular no início. E, depois que já estava fazendo
música popular, tinha ambições provisórias em relação a essa atividade. Eu
queria fazer coisas que fossem significativas, que dessem uma luz para o
ambiente, que dessem uma coisa para aquilo e, então, me retiraria para fazer
outra coisa – que eu julgava que pudesse ser cinema, mas que talvez fosse
algo mais ligado à literatura, mas não sabia [o quê]–. Ainda tinha muita
esperança de... Eu queria me recolher para decidir. Mas quando cheguei a
Londres... Até porque fiquei dois meses na cadeia, eu e Gil ficamos dois meses
na cadeia e aquilo me abateu muito. Fiquei muito deprimido e muito amedrontado.
Então, cheguei a Londres e fiquei deprimidíssimo por estar fora do Brasil,
porque eu fui expulso daqui. Você imagine... O Brasil é um negócio tão
importante... Ser brasileiro, para mim, não é um acaso indiferente. Pode ser
para muitas pessoas. Talvez seja saudável que seja. Mas não é para mim. Para
mim, tem um significado essencial, que diz alguma coisa a respeito do meu
[enfatiza] ser. Não é algo indiferente. Então, estar expulsa do país uma pessoa
que se sente tão ligada a ele é algo assim quase insuportável. Então me senti
muito abatido, muito deprimido. E não só procurei a psicanálise, como me tornei
menos corajoso em relação a decidir sobre o meu destino. Então, mesmo em
Londres, um produtor inglês nos procurou, porque ele já tinha sido ligado à
Polygram [fundada em 1972 e parte do grupo Philips, foi uma das gravadoras mais
importantes da indústria fonográfica mundial. Em 1998 foi vendida para a
canadense MCA Music Entretainment, que já atuava na área, e tornou-se Universal
Music. Já em 2006, era a maior gravadora do mundo], chamava-se Ralph Mace, a
mim e a Gil. Ele já estava em outra gravadora, o pessoal da Polygram não teve
interesse, embora nós tivéssemos levado uma carta. E ele, que tinha ido para
uma outra gravadora, ficou curioso. “O que serão esses brasileiros?” Foi nos
procurar e se disse encantado! E produziu aqueles discos nossos na Famous
Records [selo do grupo Paramaount Records], em Londres. Aquele que tem “London,
London” [o álbum Caetano Veloso,
de 1970] e o Transa [de 1971].
E o disco do Gil [chamado Gilberto Gil, de 1971]. Esse sujeito fazer
isso, para mim, foi uma coisa miraculosa. A gente ali, jogado fora, o sujeito
se interessou, achou bom, achou interessante o que a gente fazia, ficou
entusiasmado... Bom, fiquei muito pequeno... O “eu-mínimo” [conceito da
psicanálise], entendeu? [risos] Disse assim: “Em time que está ganhando não se
mexe. Se a música popular está funcionando, pelo menos isso eu faço, vou
fazendo...”. Então, isso já era a minha vida. E depois voltei para o Brasil e
continuei a música popular. Mas a impressão que tinha é de que, se eu não
tivesse sido tão abalado por aqueles acontecimentos, teria mudado de rumo. Mas
não sei se seria melhor, porque acho que o meu destino é esse mesmo, de música
popular. E gosto muito!
Cacá
Diegues:
Deixa eu te fazer uma pergunta... Aquele seu filme, Cinema falado [1986], entre outras coisas, é um filme
de cineasta. Tem uma integridade de cineasta muito grande. Por que você não se
empenha em fazer outro filme?
Caetano
Veloso:
Rapaz, tenho vontade! De vez em quando esboço... Não posso dizer que sou muito
encorajado, mas eu, de vez em quando, esboço. Faz um ano e pouco cheguei a
trabalhar um roteiro com Hermano Vianna [antropólogo e produtor cultural que
escreveu livros como O
mistério do samba e O baile funk carioca] e com Serginho Metler,
sobre aquela peça Ó, paí,
ó!, do Bando de Teatro Olodum [grupo de atores negros formado em
1990 e ligado, inicialmente, ao Olodum, bloco-afro do carnaval de Salvador e
que foca, em suas produções a questão do negro no Brasil, utilizando uma
linguagem experimental própria. Atores de grande destaque, como Lázaro Ramos,
fizeram parte do Bando], para fazer com os próprios atores. E, justamente,
apareceram uns americanos que souberam que eu tinha esse sonho e queriam –
diziam querer – produzir. Mas os americanos, quando se metem, começam a dizer
como é que um roteiro deve ser, que com dez páginas um conflito tem que ser
negado e que, na página 27, alguém tem que centrar e... Ah! É muito chato,
porque era peça. Já era uma peça, entendeu? Era uma peça que tinha a graça de
ser aquilo que foi, criado coletivamente pelo pessoal do Bando de Teatro
Oludum, que era a vida no Pelourinho antes da reforma e tal. Num cortiço no
Pelourinho e nas ruas e a saída no Carnaval, os blocos de percussão e tal.
Aquilo, eu achava que filmar com a arquitetura e o urbanismo da Bahia e a
geografia, ia ficar uma coisa encantadora. E acho que ficaria de fato. Mas aí
os americanos ficaram assim e eu ia ter que batalhar uma produção, então, pelo
Brasil. Isso era possível, mas ainda estava num período muito difícil. Agora
seria talvez mais viável, porque agora os caminhos para que se financiem os
filmes no Brasil estão mais desimpedidos...
Matinas
Suzuki:
Caetano, dos últimos filmes brasileiros, de quais que você gostou? Quais você
acha que são... Você já falou de Tieta,
mas estou te perguntando isso, porque há uma produção agora... Volta-se a
fortalecer a produção do cinema brasileiro e [ele] volta a despertar
interesses.
Caetano
Veloso:
É muito bom que haja interesse em se botar dinheiro em filme e a gente precisa.
O Glauber Rocha não ia... Como você vê no livro do [Pedro] Maciel, que você
citou, quando ele conta que chegou de Porto Alegre em Salvador – e Porto
Alegre ele diz que é uma cidade mais desenvolvida do que Salvador, europeizada
e eles eram um grupo de críticos de cinema, jovens –, eles não imaginavam a possibilidade
de fazer filmes. Eles tinham ambições intelectuais de escrever sobre filmes
estrangeiros, mas fazer um filme pretensioso no Brasil era algo impensável. Ele
foi cair em Salvador mais ou menos por acaso e alguém deu o telefone do
Glauber, ele telefonou para ver quem era essa pessoa. E então, quando encontrou
o Glauber, que era um garoto de 20 anos de idade, o Glauber já falava com ele
como se ele, Glauber, fosse um cineasta importante! [risos] E se sentia como
alguém que ia fazer filmes importantes. E não tinha dúvidas quanto a isso! Ele
achou: “Que sujeito louco! Nunca vi isso!” Foi morar na Bahia o Maciel, né? Foi
morar na Bahia! [risos] Então esse desejo que apareceu no Glauber não pode se
referir a nada. É o nosso desejo, como povo, de criar uma cultura audiovisual
em que a gente se veja e se enriqueça, se “complexifique”. E que possa crescer
vendo, entendeu? E acho que isso está acontecendo com Tieta, agora.
Hubert
Aranha:
Mas, olha só, você vai lançar um livro agora. Então vai acontecer...
Caetano
Veloso:
Se conseguir terminar de escrever! [risos]
Hubert Aranha: É, pois é! Mas me lembro de que esse seu filme, eu até
estava na estréia no FestRio...
Caetano
Veloso:
Você estava naquela noite?
Hubert
Aranha:
É. FestRio, né? Teve uma crítica instantânea. Mal o filme acabou, já tinha um
sujeito lá atrás gritando que era uma droga...
Caetano
Veloso:
Não era quando acabou! Era durante o filme. Durante a projeção.
Hubert
Aranha:
Pois é, era um crítico violento! Então, acho o seguinte: ao mesmo tempo em que
você é um sujeito muito... O Marcos fica chateado quando vê você na Caras, porque você é o herói dele,
que pintava a boca de batom, botava plumas e você saiu na Caras e tal. Então acho que as
pessoas esperam muito de você e isso deve ser chato, não é? E acho que... Você
vai lançar um livro agora e muita gente que não fala mal de você ou, digamos,
não tem coragem de falar mal de você, em relação à sua música, [e não falaria]
“essa música é uma droga! Caetano em espanhol é uma porcaria” ou sei lá, alguma
coisa assim, porque as pessoas têm medo de falar o que pensam no Brasil. Muita
gente tem, não é o seu caso evidentemente... Você não ficou chocado? Você não
tem grilo de isso acontecer de novo por você ser um cara respeitado enquanto
[exerce] uma determinada profissão e você vai e se aventura, como o Chico
Buarque, que escreveu um livro agora [Estorvo,
1991] e todo mundo [disse] “não, é uma porcaria! É uma droga, não sei o quê”...
Você não acha que tem uma coisa meio cruel nessa adoração que as pessoas têm
por você? Nesses momentos em que o artista quer fazer um outro troço diferente?
Caetano
Veloso:
Ah, tem sim. Aquele dia, quando aquele filme passou no Rio, a primeira vez que
passou o Cinema falado,
fiquei chocado, porque aquele sujeito xingava. Ele gritava, ele me xingava!
Xingava e gritava o meu nome durante a projeção do filme. Fiquei parado,
quieto, mas fiquei... Sofri muito. Não conhecia ele, não sabia quem era. Dizem
que ele faz cinema. Chama-se Arthur Omar. Foi bom, porque ele fez propaganda,
aí nunca mais esqueci o nome dele. [risos] Mas ainda não vi nenhum filme dele.
Mas fiquei mal à beça, porque ele xingava muito. Depois, na Folha [de S. Paulo], umas cineastas mulheres deram entrevista.
As três não tinham visto o filme – faziam questão de dizer que não tinham visto
– e as três me xingavam porque tinha feito o filme. Elas não tinham visto,
diziam que não iam ver...
Hubert
Aranha:
Você fez com o seu dinheiro? Você é que produziu o filme?
Caetano
Veloso:
Foi. Eu com o Guilherme Araújo [(1937-2007) produtor musical]. Baratíssimo o
filme, não gastamos nada. Era filmado uma vez cada cena. Gostei muito do filme,
gostei de fazer e gostei do resultado. Saiu exatamente o que eu queria!
Matinas
Suzuki:
Desculpe. [interrompe] Continue, porque eu ia mudar um pouco de assunto na
mesma ordem.
Caetano
Veloso:
Eu ia terminar [dizendo] que... Acho, por exemplo, se eu escrever, porque a
pergunta dele era “e se o livro sair?”... Acho que existe agora um ambiente
bastante hostil à própria idéia de que um livro meu saia. [risos] Porque há uma
moda muito grande de as pessoas se utilizarem do recesso daquelas aberturas dos
anos 1960 e de querer dizer que "pão-pão, queijo-queijo”, “cada macaco no
seu galho" e que alta cultura é alta cultura e que baixa cultura é baixa
cultura [alta cultura (high
brow) tem um caráter acadêmico e engloba o que foi produzido de
relevante a respeito da humanidade como um todo, constituindo conhecimentos
universais. A baixa cultura (low brow),
por outro lado, é constituída pela cultura popular, local]. E ficam com raiva
dos músicos populares no Brasil. O Glauber Rocha escreveu um romance. Publicou
um romance. E ele era um cineasta! Vários cineastas americanos publicaram
romance. [Elia] Kazan [(1909-2003) cineasta grego radicado nos Estados Unidos,
ganhador de quatro Globos de Ouro e diversos prêmios em festivais
internacionais de cinema] escreveu alguns romances. Nunca vi ninguém protestar
e achar que o mundo do romance foi maculado pela presença do cineasta. E cinema
é show business!
Hubert
Aranha:
O [Arnaldo] Jabor está se revelando um excelente jornalista.
Caetano
Veloso:
Pois é, o Jabor é jornalista, mas jornalismo é outra coisa. Agora, o Chico
Buarque, porque faz música popular e escreveu um romance... O Chico Buarque,
quando saiu o Estorvo, a
primeira coisa que disse aos meus amigos – Péricles Cavalcanti deve se lembrar
disso, porque foi a primeira pessoa para quem disse – foi: “Isso é um estilo
que honra a terra de Machado de Assis”. Isso é a única coisa que você pode
dizer do estilo de escrita do Chico Buarque. Não há como você fugir dessa
evidência. Ele escreve bem [enfatiza]! O que dói nessas pessoas é o fato de
saberem, elas, que o bem da escrita do Chico vem, em grande parte, do seu
treinamento com letras de músicas popular, entendeu? Em grande parte, não só
daí. Chico é um menino que cresceu em ambiente literário, filho de um grande
[enfatiza] escritor [Sérgio Buarque de Hollanda], não é? Agora, ele desenvolveu
o trato com as palavras na música popular e há ecos dessa sonoridade bonita nos
dois romances dele. Ambos têm um texto de altíssimo nível! Indiscutivelmente
belo como texto. No entanto, críticos respeitadíssimos... Por isso é que no Fantástico fiz um... Xinguei!...
Porque também tenho que demonstrar aquele batom a que você se refere. Não sou
um sujeito obrigado a dizer coisas razoáveis, entendeu? Não vou ouvir “carão”,
porque cheguei no Fantástico
e gritei: “É porcaria o artigo do Wilson Martins!”. É, de fato, uma porcaria
aquele artigo. Não preciso conhecer toda obra do Wilson Martins, a história da
inteligência brasileira, para dizer que aquilo é uma porcaria. Bastava que
lesse somente aquilo! E aquilo é uma porcaria. Não que eu não o respeite, que
não seja capaz de respeitá-lo em outras instâncias, entendeu? Mas aquilo ali,
evidentemente, era uma porcaria que nem sequer se explicava. Era um artigo que
nem sequer tinha um mínimo de pudor de esconder o escândalo de que ele estava
sendo escrito apenas porque estava – como o Arthur Omar, na noite do lançamento
do meu filme – indignado com o mero fato de Chico Buarque ter escrito um
romance. E, pior ainda, que seja bem escrito. Porque ele dizia assim: “Que
exista uma literatura comercial, tudo bem. Mas essa imitação de boa literatura
é que é mais nociva”, quer dizer, como a pessoa pode imitar boa literatura? Só
fazendo boa literatura! Não entendo o que seja isso. Nisso daí há algo de muito
suspeito, algo de terrível. Na verdade, há um desejo de direita truculenta, no
Brasil, que se manifesta em vários lugares – truculenta! –, fingindo-se de
liberal e que é brutal! Brutal! [fala bravo] E que nos ameaça cotidianamente.
Matinas
Suzuki:
Caetano, infelizmente nós já estamos com 50 minutos no nosso segundo tempo, que
é de 45, então tivemos prorrogação nesse caso! [risos]
Caetano
Veloso:
Puxa vida...
Matinas
Suzuki:
Diga!
Caetano
Veloso:
Nada! É porque eu estava falando e daí eu ia falar com Giannetti por causa
da... Gosto tanto daquele livro dele, o Vícios
privados, benefícios públicos, porque ele é um economista que
apresenta um pensamento liberal com... Li também o livro de Roberto Campos!
Grossão, mas li. Eu me interesso muito pelos pensadores de direita. Acho muito
importante, muito interessante, porque eu não sou nem de direita nem de
esquerda. Sempre estive ligado à esquerda, mas aquela ligação automática do
artista popular com a esquerda, acho intolerável, em primeiro lugar. E depois
porque eu era meio suspeito! O Tropicalismo oscilava entre ser uma pretensão de
verdadeira... À esquerda da esquerda e uma barretada ao mercado, à força da
competitividade livre. Isso era absolutamente explícito no Tropicalismo, então
nós somos – eu e Gil – pessoas muito suspeitas politicamente. Quando aqueles
estudantes de esquerda nos vaiavam, eles não estavam sem razão. Agora, por isso
mesmo não aceito aquele liberalismo que aparece com as perguntas. Como ele
aparece no livro do Giannetti, aquilo me interessa enormemente. Agora, ouvir
desaforo de quatro ou cinco caras truculentos que querem fazer com que a
violência seja antipopular e anti-humana, se torne algo respeitável, não abaixo
a cabeça para esse negócio, não. Não abaixo a cabeça para esse negócio. Não
abaixarei a minha cabeça de brasileiro para esse negócio!
Matinas
Suzuki:
Caetano, muito obrigado pela sua presença aqui, esta noite! Eu queria agradecer
os nossos entrevistadores, essa bancada de entrevistadores, agradecer a sua
atenção e lembrar que o Roda
Viva está comemorando 10 anos e volta na próxima segunda-feira
às dez e meia da noite. Até lá! Uma boa noite para todos e uma boa semana!
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