Págs. 16 e 17
DAVID NASSER
(Jaú, 1/1/1917 / Rio de Janeiro, 10/12/1980). Compositor e jornalista brasileiro.
A menina do lado quer saber se gosto de Caetano Veloso. Claro que gosto. E das suas músicas? Claro, claro, menina. E da sua cabeleira? Claro, claro, claro. Gosto do arzinho celestial com que ele nos olha com aqueles olhos de Maria Bethânia, sua irmã de berço trocado. Gosto do andaime novo de harmonia que ele pôs em suas canções, usando a madeira velha de Xavier Cugat. Há juventude, alegria, otimismo na música desse bom baiano. A gente se lembra de como apareceu, naqueles programas de Blota junior, na TV Record, eta baianinho anêmico e cabeludo deixando meio mundo bestificado com sua prodigiosa memória de letras e músicas do passado. Num instante, como foguete, Caetano se projetou ao infinito de uma glória falsa e legítima. Falsa pela pressa. Legítima pelo talento.
O prestígio que a televisão dá ao
artista brasileiro (não sei se no resto do mundo é assim) é rápido como gozo de
galo. Vem depressa, vai depressa. Aqueles que têm cabeça (como Agnaldo Timóteo,
Altemar Dutra) usam o vídeo em doses homeopáticas, cortam o monstro em fatias.
Caetano Veloso, poeta vivo, excelente musicista, demonstrou bom senso em parar
(ou, antes, em dar uma parada) quando sentiu que o mito estava oco de cupim.
Por estranho que pareça, a Revolução
foi o pretexto utilizado por vários artistas que emigraram num falso exílio. O
exílio promocional. Entre eles, estava Caetano Veloso. Sim, e possível que
tenha havido excesso na repressão, que algumas cabeleiras tenham sido cortadas,
injustamente, que esta ou aquela autoridade tenha se zangado com uma linguagem
que, de tão simbólica, de tão oculta, estava na cara - e a zanga do coronel ou
do delegado, sei lá, terminasse o festival de um socialismo promocional,
inautêntico, regado a bom uísque escocês. Daí para justificar o autodesterro
vai um oceano de boa vontade.
A maioria dos compositores
brasileiros - de comunistas ou, usando expressão mais doce, de socialistas, só
tem a barba, a cabeleira, o rótulo. Fazem boa música, trabalham sobre boas
letras, porque vêm de uma geração lítero-musical universitária bem melhor que
as anteriores, mas sabem que o povo gosta dos canários que cantam nas gaiolas.
Por isso se apresentam como vítimas. Houve uma excessão: Geraldo Vandré. Mas
este, também, foi longe demais. Cabra-da-peste.
A música é a pátria. A primeira base
que depois da língua se procura destruir é a maneira de cantar de um povo. Todas
as fronteiras, então, desaparecem e aí começa aquela história de operários de
todo o mundo, uni-vos.
O brasileiro tem horror ao ridículo.
Virou moda ser tachado de quadrado ou de ufanista brasileiro que falasse de
Brasil. O próprio ritmo do samba, vindo nos terreiros da Bahia, virou
antiguidade, museu de cera, velharia. Numa época em que todo o mundo cultua
seus valores definitivos e eternos em todos os campos, mantendo-os vivos e
sagrados juntos aos valores novos e sagrados juntos aos valores novos, o Brasil
enterra antes da morte seus maiores. Ary Barroso, Noel Rosa, Lamartine Babo -
nunca lutaram tanto para sobreviver como depois da morte.
A televisão cria mitos e os fulmina.
Daí essa estratégia inteligente do exílio voluntário. Não posso imaginar que ,
numa terra em que se lhe ofereça 50 milhões antigos por apresentação, o sr.
Caetano Veloso se considere um banido. Um banido que pega o avião
tranquilamente no Aeroporto do Galeão, vai até a Bahia, assiste à missa da mãe
com os bentinhos no pescoço e fica à espera de que os convites lhe entrem pela
casa aos borbotões, subindo, subindo sempre na cotação do mercado
musical.
Já imaginaram, então, quando
for na vez do Gilberto Gil, outro valor da música popular que tem no velho e
imortal Luiz Gonzaga o seu folclore vivo? Vai chegar aqui e pedir ao Walter
Clark a estação da Bahia como cachê. Se o Geraldo Vandré, outro da pesada,
conseguir luz verde para entrar no Brasil, haverá a maior briga de foice no
escuro. Haverá até pool financiado com dinheiro americano. O negócio é vender
sabonetes, visando ao seu patrocínio. Ora, esses fatores interligados, num
sistema de vasos comunicantes, expulsam do Brasil, tacitamente, aqueles que
deles não participam, que honestamente o repelem. O próprio Tom Jobim (de quem
trataremos outro dia) compõe no Brasil e vai gravar nos Estados Unidos. Não tem
lugar aqui. Mas a estagiária rosa-choque, assim que desembarca um crioulo que o
Augusto Marzagão descobriu no W.C. Astoria e contrata para o festival, mal o
xexéu pisa o último degrau da escada da Varig, a moça de jornal que também é da
pesada quer saber se Frank Sinatra ouviu o último lançamento de Tony Tornado.
Meu povo, fora do Brasil, musicalmente,
só se conhecem Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, e ainda se lavam as
águas de rosas quando soa a música verdadeira do velho Ary ou do Herivelto.
Estoura um sucesso de quando em quando de Edu Lobo na voz de Elis Regina,
pipoca, por acaso, um Carlos Imperial que a Brigitte Bardot aprendeu entre duas
queimadas na praia de Cabo Frio - mas a verdade é que toda essa história de
consagração lá fora, sucesso lá fora, Paris caiu aos pés de beltrano, Londres
chorou ao ouvir sicrano, não passa daquela tapeação de a Europa se curvou
ante o Brasil. Perguntei a um francês de Montmartre se ele conhecia algum
brasileiro e ele respondeu que conhecia Santos Dumont. Contei essa história ao
Blecaute e ele estranhou que o homem tivesse descido no Galeão.
Autores de quatro ou cinco sucessos,
apesar de bons autores, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros estão a uma
distância de Ary, Noel, Tom Jobim Vinícius, Lamartine, Herivelto, João de
Barro, Haroldo Lobo e do próprio Chico Buarque de Hollanda - como estamos da
Lua. Pode ser que cheguem lá. Acedesse a Antonio Carlos Jobim em perder a
dignidade profissional, a pureza de sua criação, a barganhá-la pelos slogans -
e seria o Cole Porter brasileiro. Ele sabe, mas, bom colega, não admite em
público que, em verdade, em verdade, a maioria desses valores não são falsos,
mas se dirige a um público falso, bebe uísque e fabrica cerveja. Fazem música
de inseminação artificial.
Exilados não são os compositores
brasileiros que vão e vêm quando bem entendem. Exilados são são aqueles, como o
próprio Dorival Caymmi, o já citado Jobim e alguns outros, monstros populares,
que não querem misturar política e arte - e se tornam estrangeiros dentro de
sua própria pátria. É por isso que um inglês de gênio, numa febre de justiça,
num ímpeto de revolta contra a pirâmide esmagadora dos falsos valores, pedia
uma arte para o povo. O que ele devia reclamar no Brasil era um povo para a
arte. Vem um português e diz que educar um povo não é impor-lhe opiniões, não é
declarar-lhe que tal frase está em ré. É lhe dar o direito de opção, o que,
musicalmente, não existe no Brasil. De reflexos condicionados, somos aquele
cachorro de Alagoas que chora qiando ouve a "Minha Vida" cantado pelo
Altemar Dutra. E eu não desejo tanto.
É preciso denunciar que há neste país
em plena ação um movimento para nivelar todas as idades, todos os gostos, todas
as idades, todos os gostos, todas as tendências, todos os valores, na música,
no teatro, na pintura, em todas as artes. Quem não gostar de Caetano Veloso tem
de comer Gilberto Gil ou almoçar Maria Bethânia ou jantar Gal Costa ou Ivan
Lins ou alguém de mesmo cardápio. Pode ser bom, mas há quem goste de feijoada.
Vatapá todo dia dá enjoo até em baiano. E o baiano não esquece que até hoje
ninguém cantou a Bahia melhor do que Ary Barroso ou Dorival Caymmi.
Se eu gosto de Caetano Veloso? Gosto
sim. Só espero que você, leitor do ano 2000, ao abrir por acaso esta revista
numa biblioteca qualquer, não pergunte à memória, num comercial gratuito:
- Caetano Veloso? Mas era um dos
donos da Casa da Banha?
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