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Coluna Gente Boa - O Globo |
O GLOBO
CULTURA
Exposição e shows no CCBB lembram disco-marco do
Tropicalismo
Eventos provocam reflexão sobre como seus
princípios seguem pertinentes
POR LEONARDO LICHOTE
12/08/2017
‘Guevara, vivo ou morto’. Claudio Tozzi reflete sobre a época - Divulgação
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RIO
— Gilberto Gil avisava nos primeiros segundos do disco “Tropicália — Ou panis
et circensis”, entoando os versos de Capinam: “Já não somos como na chegada/ Calados e magros, esperando o jantar”.
Depois, enfileiravam-se Vicente Celestino, o sensacionalismo dos jornais
populares, Oswald de Andrade, Sinatra, Mangueira e Senhor do Bonfim. Essa
“manhã tropical” que se iniciava ali no álbum-manifesto é celebrada no Centro
Cultural Banco do Brasil na próxima semana. No dia 18, será aberta a exposição “Tropicália — Um disco em movimento”,
com cada espaço dedicado a uma faixa do LP quase cinquentenário (é de 1968). Na
mesma noite, Pato Fu e Céu tocam na Praça do Centro Cultural Correios, abrindo
o Festival CCBB Quanto Mais Tropicália, Melhor. No sábado, as atrações são
Pedro Luís e A Parede e Tom Zé.
Mais
que a homenagem a um momento histórico, a exposição e o festival apontam que a
manhã tropical que se anunciava ali ainda segue viva.
—
A grande surpresa de se ouvir esse disco hoje é perceber que o pensamento sobre
a sociedade brasileira é deprimentemente cíclico — acredita Fred Coelho,
curador da exposição com Isabel Seixas e Diogo Rezende. — Vemos muitas das
inquietações contemporâneas ali. Se hoje temos um governo que não pode cercear
as vozes como na ditadura, ele pode fazer e vem fazendo uma terra arrasada
sobre nossa possibilidade de pensar a política. Há um paralelo claro entre os
dois momentos. E do ponto de vista artístico, o disco é um objeto estético que
ressoa até hoje.
Os
shows dos dias 18 e 19 procuram reafirmar exatamente que a Tropicália ainda
ressoa.
—
Vejo uma onda tropicalista voltando para combater a caretice reinante, com uma
liberdade de se misturar gêneros, tanto musicais quanto sexuais — diz Monica Ramalho,
curadora do festival.
Além
de Tom Zé, um dos arquitetos do movimento, passam pelo palco seus descendentes
diretos (“Todo mundo que se deixou contaminar não fez música de outra maneira
que não misturando, me identifico muito com isso na minha música”, diz Pedro
Luís) ou indiretos, como o Pato Fu, desde o início da carreira comparado aos
Mutantes.
—
Ouvi muitos artistas influenciados pelos tropicalistas, mas não muito os discos
do movimento, com exceção dos Mutantes — conta John, guitarrista do Pato Fu.
Todos
vão tocar músicas referentes ao período. Tom Zé preparou “Parque industrial”, “2001” e “Tropicália”.
O baiano defende que o movimento definiu os rumos da cultura brasileira:
—
Os quadros da ditadura não tinham capacidade de entender que naquela revolução
formal do tropicalismo havia um germe de algo mais subversivo do que as canções
de protesto — avalia Tom Zé. — Quando essa revolução viajou nas ondas do rádio,
baixou em cada antena com uma virulência de rede social pré-cibernética. Quando
essas pessoas ouviram um negócio como “Sobre as cabeças os aviões/ Sob os meu
pés os caminhões/ Aponta contra os chapadões/ Meu nariz”, elas se armaram com
um fuzil semiótico: “Se esse processo foi descoberto, eu também posso usá-lo,
também posso mudar o futuro”. Esse negócio não envelheceu, fundou a cabeça das
pessoas.
Ele
acrescenta, tropicalisticamente, que “a Tropicália não podia envelhecer, porque
Gil e Caetano encenaram seu enterro no programa “Divino, maravilhoso’”:
—
Outro dia vi o menino do BaianaSystem dizer que o germe tropicalista sai pelo
braço dele e movimenta o lápis que escreve suas canções.
A
exposição avalia criticamente aquele período em que emergiu a Tropicália,
fazendo relações entre as canções do disco e obras de artistas como Rubens Gerchman,
Hélio Oiticica, Antonio Dias, Wanda Pimentel e Cláudio Tozzi.
—
Havia um interesse meu que meu trabalho fosse visto por um grande número de
pessoas, procurava ser muito direta — explica Wanda.
Ponto
central do projeto tropicalista, diz Coelho:
—
A Tropicália foi pensada dentro da perspectiva da cultura de massas. Hoje a
indústria cultural é bem menos poderosa — afirma o curador, que traça outras
particularidades daquele período. — Naquela época, o “eu” carregava uma
universalidade que hoje perdeu espaço para a força identitária: mulher, negro,
gay... Isso faz com que, por um lado, o disco não trate da questão do negro do
Brasil. Por outro, faz pensar: será que “Baby” hoje seria lida como uma canção
machista, como “Tua cantiga” de Chico Buarque vem sendo acusada?
Tozzi
— que terá expostas obras como “Guevara, vivo ou morto” e “Multidão”, a partir
de imagem de passeata — reflete sobre ontem e hoje:
—
A nossa repressão às passeatas era maior, mas a essência era bastante similar.
As manifestações agora são até mais bonitas, envolvem o corpo, é quase uma
dança quando se destrói um vidro.
Conversas
que surgem a partir de um disco que, às vésperas do AI-5, termina com o clamor
ao Senhor do Bonfim: “Dá-nos a graça divina / Da justiça e da concórdia”.
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