O
Estado de S. Paulo
Caetano Veloso:
Encontrei o Zambujo mais
metálico e ibérico que se possa imaginar
Músico escreve sobre "Até Pensei que Fosse Minha", disco do português
António Zambujo com versões de canções de Chico Buarque
Caetano Veloso,
Especial para O Estado de S. Paulo
17 Outubro 2016
António Zambujo - Foto: Thiago Cação/Divulgação |
Suponho que este seja o primeiro álbum de um cantor
português composto apenas de canções brasileiras. Estou seguro de que ele é o
primeiro disco lusitano dedicado a um só autor brasileiro de canções. Isso já
seria notícia de ampla repercussão em minha alma americana e mestiça. Mas é
muito mais: trata-se de canções de Chico Buarque cantadas por António Zambujo. Muito
da elegância do estilo desse moderno fadista se deve a sua atenção à música
popular do Brasil (ele já nos deu belíssimas versões de Lábios que Beijei,
de Último Desejo, de músicas de Caymmi e de Noel). Quando me informaram
da existência de tal coletânea, cheguei a sonhar que os aspectos Dick Farney
que se pode encontrar tanto em certas composições de Chico quanto em algumas
interpretações de Zambujo viessem a se potencializar mutuamente num ou noutro
momento. Mas as coisas interessantes sempre surpreendem – e encontrei o Zambujo
mais metálico e ibérico que se possa imaginar redesenhando as palavras e as
notas de Chico. A delicadeza dos arranjos (a começar pelo belo fraseado líquido
dos contrapontos de Futuros Amantes) abraça um Zambujo cortante, os
harmônicos agudos de sua voz brilhando por entre as marolas. Algumas vezes
entra-se no samba (não sem que as sonoridades de choro e de fado se façam
notar), mas são as canções ternárias e as que se transformam em prelúdios que
parecem dar o tom. As participações de Roberta Sá (brasileiríssima) e Carminho
(superfadista), ambas de refinada musicalidade, trazem mais beleza para dentro
da cúpula sonora. E a entrada da voz do próprio Chico (em Joana Francesa)
leva o ouvinte a grande exaltação, como se a geografia e a história dos nossos
países se encarnassem, unificadas, no canto duplo (que é o único em todo o
disco onde se ouve outra língua – o francês), como que iluminando a força de Tanto
Mar, faixa em que Chico, não estando a cantar, parece mais pessoalmente
presente. Mas, para além das particularidades de cada interpretação, é a
imensidão da obra de Chico que arrebata quem ouve. Essa obra tão deslumbrante
que cada um de nós até pensa que é sua. Zambujo evita algumas próclises,
brasileiríssimas, certamente para não se sentir inautêntico ou pouco à vontade:
faz questão de manter a verdade do tom coloquial português. Mas a nossa língua
só se engrandece com esse trabalho. No timbre e na prosódia lusitana de António
as canções de Chico (escolhidas em períodos diferentes das muitas décadas de
composição) parecem postas numa perspectiva que dá ao brasileiro uma tomada de
distância – no espaço e no tempo – que o leva às lágrimas, assustado que fica
com a nova evidência da sua grandeza.
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