domingo, 20 de agosto de 2017

2016 - ATÉ PENSEI QUE FOSSE MINHA - ANTÓNIO ZAMBUJO


O Estado de S. Paulo

Caetano Veloso:
Encontrei o Zambujo mais metálico e ibérico que se possa imaginar
Músico escreve sobre "Até Pensei que Fosse Minha", disco do português António Zambujo com versões de canções de Chico Buarque

Caetano Veloso, Especial para O Estado de S. Paulo

17 Outubro 2016

António Zambujo - Foto: Thiago Cação/Divulgação

Suponho que este seja o primeiro álbum de um cantor português composto apenas de canções brasileiras. Estou seguro de que ele é o primeiro disco lusitano dedicado a um só autor brasileiro de canções. Isso já seria notícia de ampla repercussão em minha alma americana e mestiça. Mas é muito mais: trata-se de canções de Chico Buarque cantadas por António Zambujo. Muito da elegância do estilo desse moderno fadista se deve a sua atenção à música popular do Brasil (ele já nos deu belíssimas versões de Lábios que Beijei, de Último Desejo, de músicas de Caymmi e de Noel). Quando me informaram da existência de tal coletânea, cheguei a sonhar que os aspectos Dick Farney que se pode encontrar tanto em certas composições de Chico quanto em algumas interpretações de Zambujo viessem a se potencializar mutuamente num ou noutro momento. Mas as coisas interessantes sempre surpreendem – e encontrei o Zambujo mais metálico e ibérico que se possa imaginar redesenhando as palavras e as notas de Chico. A delicadeza dos arranjos (a começar pelo belo fraseado líquido dos contrapontos de Futuros Amantes) abraça um Zambujo cortante, os harmônicos agudos de sua voz brilhando por entre as marolas. Algumas vezes entra-se no samba (não sem que as sonoridades de choro e de fado se façam notar), mas são as canções ternárias e as que se transformam em prelúdios que parecem dar o tom. As participações de Roberta Sá (brasileiríssima) e Carminho (superfadista), ambas de refinada musicalidade, trazem mais beleza para dentro da cúpula sonora. E a entrada da voz do próprio Chico (em Joana Francesa) leva o ouvinte a grande exaltação, como se a geografia e a história dos nossos países se encarnassem, unificadas, no canto duplo (que é o único em todo o disco onde se ouve outra língua – o francês), como que iluminando a força de Tanto Mar, faixa em que Chico, não estando a cantar, parece mais pessoalmente presente. Mas, para além das particularidades de cada interpretação, é a imensidão da obra de Chico que arrebata quem ouve. Essa obra tão deslumbrante que cada um de nós até pensa que é sua. Zambujo evita algumas próclises, brasileiríssimas, certamente para não se sentir inautêntico ou pouco à vontade: faz questão de manter a verdade do tom coloquial português. Mas a nossa língua só se engrandece com esse trabalho. No timbre e na prosódia lusitana de António as canções de Chico (escolhidas em períodos diferentes das muitas décadas de composição) parecem postas numa perspectiva que dá ao brasileiro uma tomada de distância – no espaço e no tempo – que o leva às lágrimas, assustado que fica com a nova evidência da sua grandeza.





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