Publicado originalmente no livro Verdade Tropical, este ensaio-memória remonta o conceito de antropofagia, da Semana
de Arte Moderna até sua apropriação pelos concretos e tropicalistas.
Poesia concreta: Augusto de Campos, Décio Pignatari, Caetano e Haroldo de Campos [1986] - Foto: Homero Sérgio - Folha Imagem |
FOLHA DE S.PAULO
14/02/2012
Em
"Antropofagia", Caetano explica origem da tropicália no modernismo
FELIPE JORDANI
da Livraria da Folha
da Livraria da Folha
"O sol se reparte em crimes,
espaçonaves, guerrilhas,
em Cardinales bonitas, eu vou.
espaçonaves, guerrilhas,
em Cardinales bonitas, eu vou.
Em caras de presidentes,
em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras,
bomba e Brigitte Bardot"
em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras,
bomba e Brigitte Bardot"
Na música "Alegria, Alegria", de 1967, ao descrever o cenário
cheio de imagens e mensagens de uma banca de jornal, Caetano Veloso anuncia a
proposta tropicalista de não se fechar ao que vinha de fora, à cultura
estrangeira, e sim, devorá-la. Era o conceito da antropofagia modernista,
nascido a partir dos encontros da Semana de Arte Moderna, em 1922, retomado
pelas novas gerações.
Alguns versos à frente, a canção se torna ainda mais explícita, quando o
eu lírico "abocanha" um dos mais simbólicos produtos americanos a ser
vendido em escala global "Eu tomo uma coca-cola/ela pensa em casamento/E
uma canção me consola/eu vou". No período, a arte engajada tinha sido
tomada por um forte sentimento de nacionalismo e estas frases
"sacrílegas" foram vaiadas com furor durante os famosos festivais de
música.
No ensaio “Antropofafia” (Companhia das Letras, 2012), o próprio cantor
baiano analisa a relação do movimento tropicalista e dos poetas concretistas
com as ideias e questões levantadas por Oswald de Andrade, e companhia, 40 anos
antes.
O artista explica o contexto histórico deste retorno da intelectualidade
aos pensamentos engendrados pela Semana de 22 e, indiretamente, ajuda a
entender como esta retomada transformou o evento do início do século em um
episódio mitológico da cultura brasileira.
Lançado em 1997 como um capítulo do volumen “Verdade Tropical” (Companhia
de Bolso, 2008), “Antropofagia” está previsto para chegar às livrarias no dia
29 de fevereiro e já está disponível em sistema de pré-venda.
No época do lançamento do livro, no final dos anos 1990, Caetano
reiteraria sua opção tropicalista ao responder, durante uma entrevista com o
apresentador Jô Soares, que devoraria Leonardo DiCaprio, astro que estava no
auge da carreira, com o estrondoso sucesso de "Titanic" (1997).
Coincidência ou não, em setembro de 2011, uma frase parecida do
humorista Rafinha Bastos chamou atenção e causou bastante polêmica. No programa
"CQC", o apresentador Marcelo Tas disse "que bonitinha que está
a Wanessa Camargo grávida" e, em seguida, o outro respondeu "eu
comeria ela e o bebê".
O comentário, classificado como infeliz, fez com
que seu autor fosse afastado da atração.
Cultura
Antropofagia
e um pouco de Pina
Acompanhei a recente troca de farpas entre
Caetano Veloso e Roberto Schwarz em torno do livro Vereda Tropical, de autoria
do primeiro. Por isso me interessei pela brochura Antropofagia, publicada
recentemente pela Penguin/Companhia das Letras, na qual estão enfeixados alguns
trechos daquela obra de Caetano, que, quando publicada em 1997, apesar da
curiosidade que me despertou, não me animei a ler por ter-me parecido
excessivamente copiosa. Agora, de uma sentada só devorei as 70 páginas
divididas em quatro capítulos - o encontro com os poetas concretos, com Chico,
a vanguarda e antropofagia -, temas não focalizados diretamente na polêmica
entre o crítico e o cantor-compositor, mas que me suscitaram lembranças e
algumas ideias.
Sérgio
Telles, O Estado de S.Paulo
12
Maio 2012
Na
leitura logo ficam patentes a acuidade da mirada de Caetano, seu alto grau de
informação e o absoluto domínio da língua. Mas surpreendeu-me o estilo no qual
vazou o texto, em tudo diferente do que eu poderia esperar. Ao contrário de sua
produção na música e nas inspiradas letras de suas canções, em que opta por uma
linguagem mais solta, inventiva e inovadora, Caetano parece mostrar uma
reverência compenetrada ao se embrenhar no campo da prosa, adotando uma dicção
clássica, escorreita, convencional.
O
texto sobre Chico Buarque me levou de volta aos tempos de faculdade e às
turbulências políticas do movimento universitário, quando Chico e Caetano eram
nossos ídolos. A disputa entre eles, decorrente de projetos artísticos
divergentes, logo nos dividiu em dois grupos. Chico era o wunderkind da música
popular brasileira. Era sua continuidade moderna, elegante, bem nascida e
cultivada, banhada e perfumada, que ainda por cima era de esquerda, produzindo
letras ambíguas nas quais ficávamos pescando alusões e insinuações que teriam
passado despercebidas pela censura dos militares. Chico era o prosseguimento
atualizado, engajado e informado do samba.
Caetano
era a deliberada ruptura com tudo isso. Sua posição na esquerda não se apoiava
na conservação de formas estabelecidas, estava aberto para as novidades e a
assimilação de modelos musicais internacionais. Caetano era o suprassumo do
prafrentex, palavra de grande circulação na época, muito apropriada para dar
conta das mudanças de comportamento que começavam a aparecer e ainda não tinham
nome, e caía como uma luva naquela coisa maravilhosamente nova chamada Alegria,
Alegria. Por tudo isso, ele era tido como "alienado" pelos mais
extremados, que não entendiam a radicalidade de sua proposta.
Eu,
que era um caetanista de carteirinha, muito me diverti com a alfinetada de
Caetano ao cantar de forma debochada e depreciativa a Carolina do Chico. Mas o
que importa é que respeitávamos e amávamos os dois na diferença que
expressavam. De alguma forma, eram nossos modelos e sentimos profundamente
quando a Ditadura os obrigou a sair do País, deixando-nos aqui entregues à
nossa própria sorte.
Em
seu livro, compreensivelmente Caetano põe panos quentes, procurando não
exacerbar as antigas querelas. Meio a contragosto, admite ter cantado Carolina
de forma "estranhável"...
O
capítulo sobre antropofagia, que dá título ao livro, narcisicamente me remeteu
ao artigo sobre canibalismo que escrevi na última crônica, fazendo-me lembrar
dos aspectos que não pude nele incluir por falta de espaço e que abordo agora.
A antropofagia (ou canibalismo) - que tem abundantes registros na mitologia, na
história, na religião - viu sua importância potencializada na época dos
descobrimentos, quando passou a ser considerada como o indicador mais
expressivo de selvageria e de barbárie dos povos do Novo Mundo. Em 1566, o papa
Inocente IV considerou-a um pecado maior e, como tal, passível de ser punido
pelas armas. A rainha Isabel de Espanha baixou decreto autorizando a
escravização de nativos, desde que fossem eles praticantes de canibalismo. É
claro que a partir daí ficou muito conveniente declarar que determinado povo
era canibal (ou antropófago), pois isso garantia a autorização da Igreja e do
Estado espanhol para atacá-lo e escravizá-lo.
A
grande ironia histórica é que, com a desculpa de eliminar o canibalismo e impor
valores civilizatórios cristãos, os colonizadores terminaram por
"canibalizar" os colonizados, apropriando-se de suas riquezas e
recursos, deixando-os à míngua, quando não os exterminando pura e simplesmente.
Os colonizadores projetaram nos povos "primitivos" uma violência e
uma selvageria (simbolizadas pela antropofagia) que eles mesmos exerceram com
uma destrutividade muito mais potente, em função de sua superioridade tecnológica.
No
mundo globalizado em que vivemos, as relações antropofágicas
colonizador/colonizado tomaram feições mais nuançadas. Os padrões culturais e o
poder dos países que detêm a primazia tecnocientífica se impõem com força
talvez ainda maior, na medida em que é mais profundo o abismo que os separa dos
países pobres.
A
persistência da questão colonizador-colonizado se evidencia na Semana de 22 com
Oswald de Andrade e sua atualidade aparece no investimento que Caetano fez do
conceito por ele proposto. Numa provocação, Oswald de Andrade inverteu o
paradigma e fez da antropofagia uma virtude e modelo de assimilação cultural,
proposta da qual Caetano se apropriou, usando-a como um dos fundamentos para o
tropicalismo.
A
relação colonizador-colonizado e a antropofagia estão diretamente ligadas ao
problema da identidade dos povos colonizados. Lembremos que o colonizador
encontra um sistema social estabelecido e organizado com suas próprias leis e
costumes, que ele ignora e destrói para impor os seus próprios valores. Aos
olhos dos povos nativos, o colonizador não é o que sustenta a lei, é aquele que
destrói a lei até então vigente.
Em
sendo assim, pode o colonizador em algum momento ocupar o lugar de pai e
portador da lei para o colonizado ou ele será sempre o estuprador invasor que
ignora a lei? Pode o colonizado se identificar com o colonizador e acatar seus
valores, ou esta será sempre uma "identificação com o agressor", com
toda a distorção implícita nisso?
Frente
ao impasse estabelecido, sobra outra opção ao colonizado senão canibalizar o
colonizador que o canibaliza?
* * *
A
forma como Pina Bausch concebe a coreografia - se é que podemos chamar assim -
para a música Leãozinho, de Caetano Veloso, sintetiza bem a originalidade e
largueza com que ela encarava a dança. A partir de uma gestualidade espontânea
ou fixada em estereotipias mecânicas, Pina cria efeitos estéticos e uma ingênua
comicidade que evoca as brincadeiras e a despreocupação da infância. O filme de
Wim Wenders é uma justa homenagem a uma grande criadora.
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