“Não se sabe ainda ao certo
se A Outra Banda Da Terra
existe. O que há,
entretanto, pintou por causa de Vinícius
e Arnaldo terem incrementado
o hábito de fazer som
comigo, em casa, sem
arranjos nem planos definidos. Hábito
a que aderiu Rubão. Isso me
fez muito bem e me honra
muito. Quisemos tocar em
público. Convidamos Tomás.
E Marcos. E Serginho deu uma
supercanja que multiplicou
por mil o brilho do nosso
show. Para o disco, convidamos
Bira e Bolão “Muito
Romântico” é a única
faixa-satélite-artificial [por
culpa minha] de brilho propio
[por culpa da competência e
inspiração de Perna]”
[Caetano Veloso, texto na contra-capa do álbum Muito - Dentro
da Estrela Azulada, 1978]
A OUTRA BANDA DA TERRA
Tomás Improta
Arnaldo Brandão
Vinicius Cantuária
Marcos Amma
Bira da Silva
Bolão
" ... Embora a imprensa não tivesse oficializado ainda, no show do Teatro Clara Nunes o grupo finalmente foi apresentado da forma que ficaria conhecido na história: A Outra Banda da Terra..."
[CAETANO - uma biografia, Pág. 296]
Reprodução Ricky
Goodwin, Júlio Barroso, José Emílio Rondeau, Ana Maria Bahiana, Waldemar
Falcão, Dieter Stein, Antonio Carlos Miguel, Paulo Ricardo, Maurício Valladares
e Beto Carvalho |
Acervo pessoal Antonio Carlos Miguel |
Jornal de Música
Foto: Paulo Ricardo |
Caetano num show integral e natural
Antônio Carlos Miguel
Eu tinha gostado do Bicho Baile Show,
de Caetano com a Banda Black Rio, mas este show atual é bem superior. Tem mais
a ver com toda transação caetânica. Se em Bicho a atmosfera parecia um
pouco forçada, apesar do repertório e dos ótimos músicos da Banda - o melhor
grupo instrumental de 1977 - neste novo show Caetano está bem natural, com todo
pique e toda suavidade peculiar.
Bicho foi em parte um
trabalho conceitual que demonstrava a vontade de Caetano em fazer uma música
mais próxima à dança e origens afro-brasileiras. Talvez por isso mesmo o
destaque maior foi para a Banda. Havia por parte de Caetano interesse em dar
força à música instrumental. Para todas essas ideias se completarem
integralmente faltou um melhor entrosamento entre os dois trabalhos. A música
de Caetano soava um pouco estranha, não se adaptando aos arranjos 'Black Rios'.
Este é um problema que não existe neste novo show,
a impressão é de que estamos em casa. Tecnologia integral e natural. Mesmo
voltando ao esquema 'banquinho-violão' temos um espetáculo solto e
descontraído. Caetano está tranquilo, conversando bastante com o público,
transmitindo toda sua segurança frágil. O show utiliza poucos recursos, nenhum
cenário e uma iluminação discreta. Os músicos que o acompanham se integram neste
clima todo. Alguns deles têm um contato bastante intenso com Caetano, Arnaldo
Brandão (baixo e violão de 7 cordas) e Vinícius Cantuária (bateria e guitarra
acústica) participaram do disco Bicho e tocam em 'jam sessions'
caseiras; este também é o caso de Tomás Improta (piano acústico e elétrico). Na
percussão está Marcos Amma. Nesta apresentação no Teatro Clara Nunes - este
show já tinha sido apresentado no Teatro do Instituto de Educação (*) e na Concha
Verde (**) - há ainda a participação superespecial de Sérgio Dias Baptista
(guitarrista dos Mutantes).
O show começa com uma série de músicas acústicas, 'Leãozinho'
é a primeira, na segunda música são apresentados os músicos e entra em cena
dando 'uma supercanja', Sérgio. Enquanto Caetano canta Sérgio preenche todos os
espaços e voa alto com seus solos mutantes. São apresentadas algumas
composições novas, inclusive 'Sampa', o samba que Caetano fez
para São Paulo... 'o samba é hoje em dia
uma música típica de São Paulo'. Em seguida vem 'Rio'. Estas duas músicas
já bastam para mostrar que ele continua sendo o mais instigante poeta/letrista
na música brasileira. Algo como a loucura da lucidez. Antes do intervalo uma
homenagem a Dylan, todos cantando 'Don't think twice, it's all right'.
Na segunda parte, só ao violão, Caetano interpreta
alguns 'standards' da MPB: 'Quem Vem da Beira do Mar' (Dorival
Caymmi), 'Eu Sei Que Vou Te Amar' (Tom Jobim/Vinícius de Moraes) e 'De
Você Eu Gosto' (Tom Jobim/Aloysio de Oliveira).
No final, com o grupo novamente, são apresentados,
entre outras, 'Tigresa', 'Um Índio' e a incrível 'Muito
Romântico' - gravada por Roberto Carlos em seu último disco. A
interpretação de Caetano tem muita garra, superando a gravação de Roberto.
Sérgio contribui com um lindo solo, que desta vez o obriga a se levantar da
cadeira - até então ele tinha tocado sentado, com um painel de pedais.
O trabalho do grupo está perfeito. Arnaldo segura
no baixo, Vinícius, além da bateria, dando uma boa ajuda nos 'backing vocals' e
na guitarra acústica. Outro destaque para o trabalho de Tomás Improta no piano,
com solos saborosos em contraponto ao canto de Caetano - por exemplo a música 'Love,
Love, Love' - e a guitarra de Sérgio.
Fechando o show, não podia faltar, 'Odara'.
(*) Teatro do Instituto de Educação
(**) Projeto “Quem Sabe, Sobe” na Concha Verde do
Morro da Urca do Pão de Açúcar, com dezenas de atrações nacionais e
internacionais produzido por David Tygel.
Terra Magazine
23/05/2013
Caetano – entre Muito e a Banda Cê
PAQUITO
(*)
Tinha
eu quatorze anos quando, levado por minha madrinha, assisti Caetano Veloso – e
A Outra Banda da Terra – ao vivo pela primeira vez. O show era Muito, disco de 1978 que rendeu polêmica
por conta das críticas negativas, a que o próprio Caetano respondia, o que lhe
rendeu acusações de não aceitar opiniões contrárias, atitude que ele mesmo comentou
na sua última coluna em O Globo.
Na
época, apenas o fato de ir a um show era novo pra mim. Só estar em um teatro,
tendo a experiência de ouvir ao vivo os sons que ouvira em discos – de certa
forma, minimizados – era um acontecimento:"o som", sem intermediação
da radiola ou tv. Como ainda não tinha o disco Muito, não conhecia
nenhuma das novas canções – e nem muito também da obra anterior de Caetano –
mas me lembro até hoje do impacto da música Terra, cujo refrão o
público repetia, o que criava um clima ritualístico forte, sem que o cantor
precisasse puxar o coro. Era uma prece conjunta.
No
final do show, os percussionistas que estavam na plateia foram convidados a
subir no palco, pra tocar na última música. Da prece passou-se à festa, e deu
vontade de subir naquele palco, estar com aqueles músicos, ser como aquelas
pessoas confraternizando-se. Eu não tinha consciência, mas o fenômeno da canção
popular estava se dando na minha frente, com desdobramentos até hoje na minha
vida, tanto que me tornei compositor, e escrevo basicamente sobre música aqui
na Terra Magazine.
Outra
lembrança forte é a da postura despojada de Caetano no palco, assim como o
figurino, apenas camiseta branca sem mangas, bermuda e sapatos igualmente
brancos, corpo magro, e os cabelos longos, cacheados e negros.
O
figurino simples se contrapunha às roupas coloridas que se haviam popularizado
com o Tropicalismo, que completara dez anos, e pelo qual eu começava a me
interessar. Com seu violão Ovation,
bojudo, contrastando com a magreza, Caetano levantava o joelho direito e
permanecia algum tempo em posição de garça, um pé no chão, outro suspenso no
ar.
A
partir de então, assisti a quase todos os shows de Caetano, gostava de reparar
na harmonia das músicas, e muitas delas aprendi a tocar apenas observando-o em
apresentações. Com toda sofisticação que há no pensamento e no som de Caetano,
a execução de suas músicas é relativamente simples no violão, o que tornava
possível a um amador tocá-las exatamente como ele, o que era ótimo. Eu podia
repetir em casa o que via no palco.
Assistindo
ao Abraçaço,
seu show mais recente, tantos anos depois, na Concha Acústica do Teatro Castro
Alves, sei que é comum se associar Caetano a um ser mutante, que tanto pode
aparecer num especial de Natal da Globo – com Ivete e Gil – quanto fazer um
show e disco como esse com a banda Cê, que concorre ao Prêmio da Música
Brasileira de Melhor Cantor na categoria de música pop/rock/reggae/hip hop, e
não mpb, como seria mais convencional.
Caetano
sempre fez o trânsito entre categorias aparentemente distintas, mas é um
artista ancorado na tradição, mesmo que seja para reinventá-la, comentando-a.
O
Funk
melódico do Abraçaço é um exemplo: versos de Noel Rosa e Vinicius de Moraes
são citados, dialogando com a rusticidade da música carioca dos subúrbios. (E,
pensando bem, Noel é tão rústico quanto os funkeiros quando se trata de detonar
uma mulher.)
Cláudio
Leal escreveu um artigo legal sobre o Abraçaço aqui na Terra Magazine
(Aquele abraçaço), então vou comentar – além das minhas memórias remotas – a
respeito da banda Cê, que está com
Caetano há três Cds: Cê, Zii e Zie e este Abraçaço.
Após um período em que pretendeu unir a percussão baiana à sofisticação do
jazz, projeto do CC Livro, Caetano montou uma banda simples, com apenas três
músicos jovens (Pedro Sá na guitarra, Marcelo Calado na bateria e Ricardo Dias
Gomes no baixo e teclados), e compôs canções endereçadas ao formato e linguagem
de um tipo de rock mais enxuto.
O
artista e o conjunto integraram-se de tal maneira que a banda Cê é constitutiva desse novo Caetano, contribuindo pra tornar
o Abraçaço
mais forte e denso. A banda também dá conta, na medida, de tocar o Caetano
pré-Cê, mantendo a diversidade rítmica e melódica do compositor, sem afetações,
talvez porque não ambicionem ser virtuoses, não são músicos
"músicos", como bem definiu Pedro Sá, numa conversa que tivemos
depois do show. Eles estão ali pra servir às canções, e não se servir delas.
Eclipse
Oculto
-do disco final com a Outra Banda da
Terra, Uns, de 1983, -mereceu seu arranjo e jeito de execução mais
bacana, sem ambicionar ser pop, e mantendo a urgência do rock. Triste
Bahia, do Transa, tem o clima e arranjo bem semelhantes ao do disco de
1972, cujo despojamento combina com o da Banda Cê, que tocou, no show Cê,
Nine
out of ten, também do Transa, sem querer reinventá-la, o
oposto ao arranjo pra mesma canção do disco Velô (1984), que hoje soa
datado.
O
Velô
pertence aos anos oitenta e, naquele período, o tratamento dado às gravações
tornava a música postiça, quando se pretendia soar tecnicamente avançado.
Curiosamente, o Transa, bem anterior, soa mais moderno que o Velô,
mesmo sendo este repleto de ótimas canções.
Assim
como muita coisa muda, outras permanecem: comparando com o show Muito,
os cabelos de Caetano ficaram brancos – sinal da passagem do tempo, o que
independe de intenções estéticas – e o figurino, antes claro, se tornou escuro.
Mas a posição de garça – e graça – mantém-se até hoje, simbolizando
involuntariamente essa capacidade do artista de equacionar tradição e ruptura:
um pé firme no chão, outro no ar.
(*)
De 2006 a 2014, Paquito foi colunista da revista virtual Terra Magazine de Bob
Fernandes.
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