jueves, 13 de julio de 2017

2005 - O MUNDO NÃO É CHATO


VELOSO, Caetano. O mundo não é chato. Org. Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das letras, 2005.


VELOSO, Caetano. O mundo não é chato. Organização e prefácio de Eucanaã Ferraz. Quasi Edições, 2007.


VELOSO, Caetano. El mundo no es chato – Antología textual. Org. Eucanaã Ferraz. Marea Editorial, Buenos Aires, 2015. 344 págs.



















1/11/2005 - Caetano Veloso durante entrevista sobre seu novo livro de ensaios "O Mundo Não É Chato" em Studio na Gávea, no Rio de Janeiro (RJ) 
Fotos: Marcos Cruz/Folhapress









3/11/2005

Caetano, que lança livro, critica Lula

LUIZ FERNANDO VIANNA da Folha de S.Paulo, no Rio

Oito anos depois de "Verdade Tropical", o ensaísta Caetano Veloso está de volta. "O Mundo Não É Chato" (Companhia das Letras), que chega às livrarias no fim de semana, é uma reunião de textos produzidos pelo compositor desde 1960 e organizada pelo poeta Eucanaã Ferraz. Também está saindo um volume da coleção Folha Explica (R$ 16,90; 200 págs.) dedicado a Caetano e escrito por Guilherme Wisnik.

Nesta entrevista, ele se diz uma caricatura de intelectual, afirma que o governo Lula é o "campeão da inoportunidade" e chama de "oportunista" o cantor Fagner, que o atacou em entrevista à revista "Veja". Ao saber da declaração, Fagner disse que não procurou a revista, não copiou a palavra "inoportuna" de uma entrevista de Caetano ("Ele quer ser dono do dicionário agora?") e só deu uma opinião sobre o referendo do desarmamento ("Então 70% do povo brasileiro é fascista?"). Mas pede desculpas a Caetano se pareceu que queria associá-lo ao PT e vê o assunto como encerrado. "Continuo gostando dele", diz Fagner.

Folha - Em um texto de 1972, você escreve: "Como Glauber, tornei-me uma caricatura de líder intelectual de uma geração. Nada mais. Um ídolo para o consumo de intelectuais, jornalistas, universitários em transe". Ainda há atualidade nessa afirmação?
Caetano Veloso - Relendo esse texto, eu fico um pouco envergonhado. Acho meio presunçoso. Mas não que seja errado. Acho que é mais caricatura do que de fato um negócio a sério. Continuo achando, como escrevo nesse texto, que nunca houve no Brasil uma figura popular com tanta pinta de intelectual.

Folha - Uma idéia central de seus textos é a da originalidade brasileira. Você continua acreditando nela mesmo quando, no campo da política, a nossa mais original experiência parece não estar sendo tão original assim?
Caetano - Eu penso basicamente da mesma maneira. A nossa obrigação de apresentar alguma coisa relevante ao mundo é inelutável. Porque nós somos esse país gigantesco, no hemisfério Sul, na América, no Terceiro Mundo, falando português e altamente miscigenado racialmente. É muita coisa junta para que você não assuma a responsabilidade de exercer essa originalidade.
O fato de o governo Lula ser mais ou menos decepcionante não é tão relevante para essa questão. E não era desde antes. Votei em Lula, mas não tenho grandes decepções. O meu candidato era Ciro Gomes, que pirou do meio para o fim da campanha e praticamente me pediu para não votar nele, por causa de coisas que fez e disse. Mas eu gostava dele, a quem conhecia desde que fora prefeito de Fortaleza e por causa do livro que assinou com Roberto Mangabeira Unger. Mangabeira é um pensador tão responsável que acho que o Brasil não pode se dar ao luxo de ignorar.

Folha - Você se decepcionou com a entrada dele no partido da Igreja Universal [Partido Republicano Brasileiro]?
Caetano - Nem me surpreendeu. Ele escreveu um livro que se chama "Política", em que, ao estudar de uma maneira pragmática que contribuição podem os grupos religiosos trazer para a solução dos problemas brasileiros, ele destaca as igrejas evangélicas como o que há de melhor nessa questão, acima dos grupos da Teologia da Libertação.
Como eu tenho confiança nele, até segunda ordem, não acho que entraria em um partido que fosse da Igreja Universal. Não é por ser contra ou a favor das igrejas evangélicas. O que eu acharia inaceitável era que ele, pensando o que pensa, integrasse um partido que pertence a uma igreja. Isso é incongruente com a idéia de democracia que ele defende. Seria de uma contradição inaceitável. Estou esperando o desenrolar dos acontecimentos.

Folha - Em um texto do show "Circuladô", usado na abertura do livro da coleção Folha Explica, você falava sobre o conservadorismo que está no ser do Brasil. A vitória do "Não" no referendo sobre armas de fogo é uma demonstração disso?
Caetano - Eu próprio quase votei "Não". Anulei. Acho que essa vitória do "Não" é uma resposta à falta de senso de oportunidade deste governo, que é o campeão da inoportunidade. Se o Lula fosse Lula, o [José] Dirceu tinha que ter saído [do ministério] no caso Waldomiro Diniz [em 2004]. É tudo fora do tempo, meio malfeito. O referendo não devia estar no Estatuto do Desarmamento, porque ele é contraditório com o próprio estatuto. O povo foi sábio, intuiu isso.
Mas o resultado eu acho negativo, porque deu uma impressão de que ter armas é um direito. Ou seja, deu lugar a essa gente fascistóide botar a ideologia deles. O brasileiro não é o americano. Pára de imitar americano! São os pretos, os veados, todo mundo imitando americano, que diabo é isso? Ah, o direito de andar armado para se defender... Mas os brasileiros vivem armados para se defender? Não vejo isso. A questão não estava posta, ganhou uma propaganda que não merecia.
Sou desarmamentista em todos os níveis. Mas não sou burro. Houve burrice. É um momento em que o governo não está podendo fazer campanha de nada, porque ninguém está acreditando neles. Eles estão sob suspeita, em uma grande crise. Deviam fazer o que um governo deve saber fazer: driblar o negócio, passar para adiante, para o próximo governante, que eu espero que seja outro. Espero isso desde o início e disse isso em público.

Folha - Mas como você viu colegas seus da envergadura de Chico Buarque e Fernanda Montenegro participando da campanha do "Sim"?
Caetano - Entendi perfeitamente. Eu quase que faria algo assim, se fosse possível, oportuno e razoável. Mas não me pareceu. Eles estavam atraídos a fazer aquilo porque têm a melhor das intenções. É mais triste ver colegas meus como Fagner festejando com os fascistas, em tom fascista. Isso é tétrico. Denota uma certa burrice na tentativa de ser oportunista para tentar se notabilizar.
Nos anos 70, o Fagner falou que eu não tinha capacidade criadora e, por isso, estava impedindo que ele e outros colegas novos aparecessem. E eu ainda não tinha lançado "Sampa", "Terra" e tantas outras. E ele, o que é? Vai para a revista ["Veja"] dizer que eu estava fazendo uma campanha em que eu não estava. E disse que era uma campanha inoportuna, usou uma palavra roubada da minha entrevista [ao jornal "O Globo"].

Folha - No release do CD "A Foreign Sound", você diz: "Gravei-o agora porque posso fazer qualquer coisa". Você pode parar tudo, por exemplo, e fazer um filme?
Caetano - Quando eu falei aquilo, estava um pouco desmerecendo o projeto. Os americanos da [gravadora] Nonesuch, os brasileiros da Universal, o pessoal deste escritório [Natasha] ficavam em cima de mim para eu fazer "A Foreign Sound". Fiz com todo o amor, mas não achava aquilo relevante. Fiz como quem pode fazer qualquer coisa.
Posso parar e fazer um filme? Posso. Mas é preciso saber se eu sinto que vale a pena, pois significa parar uma porção de coisas para muita gente. E estou com tanta vontade de fazer canções, me vieram tantas idéias, que agora tenho que organizar meu tempo para fazer essas coisas que passam na minha cabeça.








2005
Revista ENTRELIVROS
Novembro
Ano I – n° 7
© Duetto Editorial


O papo qualquer coisa de Caetano

Reunião de textos escritos desde os anos 60 resgata a voz de prosador do artista

por Denise Góes

Caetano Veloso veste um parangolé do artista plástico Hélio Oiticica, na capa do livro Marginália, de Marisa Alvarez Lima

Para uns, ele tem sido bússola. Para outros, desorientação. De um jeito ou de outro, Caetano Veloso sempre foi mais do que cantor e compositor. Nas últimas quatro décadas, provocou polêmicas com músicas, comportamentos e opiniões. Recusou o papel de guru. "Não precisa ninguém me acompanhar", cantou. Mas nunca deixou de expor suas idéias. E o fez com eficiência, aliando articulação e uso da mídia.

Esse Caetano articulista, prosador, ensaísta em seus melhores momentos, emerge de O mundo não é chato, uma coletânea de textos organizada por Eucanaã Ferraz que sai pela Companhia das Letras. São artigos, releases e críticas, escritos em diferentes momentos. Uma viagem que começa com os primeiros textos do jovem crítico de cinema dos anos 60, passa pela correspondência gerada no exílio londrino dos anos 70 e chega ao discurso mais recente. É um papo sobre qualquer coisa: da censura ao amor, da estética à política, da sexualidade à manipulação da imprensa.

Como afirma Ferraz, na apresentação da obra: "A escrita de Caetano impressiona sobretudo por sua visão dos matizes a meio de uma coisa e outra, por sua procura extremada, e nunca concluída, por um ponto em que instalar a palavra, apta a exercer sua razão ética, estética e política". Para Ferraz, a prosa de Caetano é um posicionamento político. Um olhar político sobre a música, o brasileiro, o Brasil e sobre ele mesmo.

O livro reúne 90 textos, divididos por temas: Brasil, música, discos, cinema, teatro e literatura, gente, estrangeiro e prosa, com impressões, opiniões e desabafos. Organizados sem ordem cronológica, deixam fluir o sentimento instantâneo, revelando o que pensa o artista no momento em que fala de uma peça, de um fenômeno cultural, do exílio, ou de outro personagem do cenário cultural.


Glauber, resenhado pelo crítico Caetano
Apenas dois textos são inéditos. "Sou pretensioso", ensaio em que Caetano escreve sobre sua vontade de ser cineasta e relata sua experiência em O cinema falado, único filme dirigido por ele, em 1986. Lançado no Festival de Cinema do Rio, o filme provocou críticas apaixonadas e em 2003 voltou a ser discutido após o do lançamento em DVD. No outro texto, "Saindo do centro", Caetano é enfático: "Eu escrevo porque penso demais". E reafirma sua paixão pela prosa: "Eu quero escrever de modo que o prefácio, o julgamento e até mesmo a propaganda e a detração a mim possíveis no ato mesmo da escrita façam parte do corpo da obra".

Se em Verdade tropical, autobiografia lançada em 1997, Caetano relembra fatos e descreve episódios, nessa coletânea estão os textos originais, a fonte primária de tudo que ele já havia descrito em detalhes. Chamam a atenção as críticas de cinema feitas para jornais da Bahia e a série de artigos enviados durante o exílio para O Pasquim.

Ao deixar Santo Amaro da Purificação, no interior da Bahia, aos 18 anos, Caetano Veloso encontrou na Salvador do início dos anos 1960 intensa atividad e cultural. Ainda sem um rumo definido, Caetano vive essa agitação cultural e dá os primeiros passos na carreira musical.

Ao mesmo tempo, amante do cinema, em especial, do cinema italiano, escreve críticas para os jornais Diário de Notícias, de Salvador, e O Archote, de Santo Amaro da Purificação. Os textos revelam um Caetano articulado, apesar de uma linguagem ainda rebuscada, mas com uma noção clara da função de crítico: "E a missão dos críticos não pode ser ensinar-nos o que é cinema, mas induzir-nos a estudá-lo; é espicaçar no espectador inteligente a curiosidade sobre a arte cinematográfica; é levá-lo a procurar ler os compêndios que já foram escritos sobre a cinestética. É orientá-lo".
E é como espectador privilegiado que Caetano analisa Barravento, o primeiro longa-metragem do conterrâneo e amigo Glauber Rocha, e acompanha o surgimento e a consolidação do Cinema Novo como movimento estético do cinema nacional.

Também nesta seção dedicada ao cinema estão artigos mais recentes sobre ídolos da juventude como Fellini e Giulieta Masina e um texto que relembra uma de suas inúmeras discussões polêmicas, desta vez sobre a proibição do filme do diretor franco-suíço Jean-Luc Godard, Je vous salue Marie, que agitou os meios culturais na década de 80. Sem nunca deixar a música como parâmetro, em "Parece um filme menor" Caetano escreve sobre o filme Cazuza, o tempo não pára. Para ele é o primeiro grande filme musical brasileiro e "marca o encontro verdadeiro do nosso cinema com a nossa música popular".

Em outro recorte na vida de Caetano Veloso, o livro remete aos anos 70. Primeiro aos tempos longe do Brasil, longe da Bahia, no exílio, e depois em artigos e críticas sobre personalidades da cultura brasileira. A maior parte dos textos dessa fase foi escrita para O Pasquim, tablóide surgido em plena ditadura militar, pelas mãos de Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Tarso de Castro e Luís Carlos Maciel, que se reuniam num bar da zona sul do Rio. Nas páginas de O Pasquim ficaram registradas as críticas mordazes e irreverentes ao Brasil oficial.

Em 1969, depois de dois meses presos, e de um período de confinamento na Bahia, Caetano e Gilberto Gil são "convidados" a deixar o Brasil e vão para Londres. Caetano passa a escrever suas impressões de exílio para O Pasquim. Nas páginas do jornal carioca, o músico baiano solta o verbo e responde a críticas feitas pelo poeta Ferreira Gullar a João Gilberto e Sérgio Mendes; analisa a música pop nos anos 70; fala sobre um novo disco de Gal e mostra todo o saudosismo ouvindo Luiz Gonzaga e Maria Bethânia. Foi nas entrelinhas dos artigos, no entanto, que Caetano deixou transparecer o quanto o exílio o marcou. Reflexões sobre a vida em um outro país, uma língua diferente. O olhar distante sobre os rumos políticos e culturais do Brasil.
Em um desses artigos, "Hoje quando eu acordei", é um Caetano triste que define: "Quando um homem vê a sua cara no espelho, ele vê objetivamente em que estado a vida o deixou". Escrito em dezembro de 1969, ninguém na época percebeu a referência feita no fim do texto à morte do líder da guerrilha urbana Carlos Marighella: "Nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós".

Também baiano, Marighella foi um líder comunista que combateu a ditadura de Getúlio Vargas e o regime militar, dessa vez como dissidente do Partido Comunista Brasileiro. Morreu numa emboscada em São Paulo, no dia 4 de novembro de 1969. Em Verdade tropical, Caetano lembraria do episódio. O texto para O Pasquim fora escrito após receber uma revista brasileira onde na capa apareciam as primeiras fotos do exílio ao lado de uma outra, na qual Marighella aparecia morto.

Pouco tempo depois, em 1972, já de volta ao Brasil, Caetano passaria de colaborador a alvo de críticas da turma do Pasquim. A principal delas estaria relacionada a uma suposta decepção política em relação ao músico baiano. Talvez para responder ao jornal, Caetano escreve um artigo para a revista Verbo encantado, de Salvador, no qual desabafa: "Estou contente, até certo ponto, de vez que, como eu esperava a minha volta ao Brasil, a minha decisão de vir morar aqui no Brasil deixou à vontade pessoas que tinham necessidade de discutir e não apenas louvar o meu trabalho". E vai além: "Mas acontece que não só alguns saudavelmente se descontraíram para reiniciar um papo comigo, como também alguns outros se alvoroçaram doentes para me esquartejar e me lançar ao caldeirão".

São ainda dos textos dos anos 70 que emergem algumas referências a nomes como Milton Nascimento, Elis Regina, Jorge Mautner e Jorge Ben, hoje Jorge Ben Jor. Amigos e parceiros a quem Caetano dedica palavras de admiração e carinho. Sobre Milton, Caetano derrete-se: "Milton é nossa grande alegria". Para Elis, manda um recado: "O show business é um bichopapão muito bonito e você engole ele: essa é a mensagem que você passa pra todos os seus colegas de profissão". Em Jorge Mautner e Jorge Ben, Caetano destaca a liberdade criadora, um tanto anárquica.
Em certo momento, Caetano relembra os Doces Bárbaros - reunião com Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa em 1976 - e narra a prisão de Gil e do baterista Chiquinho Azevedo, em Florianópolis, detidos por porte de maconha, durante excursão do show. Caetano: "Nós não saímos para discutir as leis nem a moral. Nem a religião, nem a política, nem a estética. Nós não saímos para discutir. E não discutiremos".

A forte ligação entre Caetano e a irmã Maria Bethânia está refletida em dois textos, um feito para a apresentação do livro Maria Bethânia (Intersong), de Marisa Alvarez Lima, e outro para a revista Careta, do Rio de Janeiro, ambos de 1981. É com carinho e poesia que Caetano a descreve como "pequena e franzina, que deixa o espírito sair pela boca e queima a carne com a luz dos olhos".

O livro também revive, pelos textos escolhidos, o Caetano polêmico, às vezes furioso, ao defender a importância da bossa nova para a música popular brasileira, ao falar sobre o tropicalismo e ao reviver a discussão em torno do cachê de Paulinho da Viola, em show na praia de Copacabana, zona sul do Rio, durante o réveillon de 1995.

A idéia de reunir artistas representativos do cenário musical para homenagear Antonio Carlos Jobim, morto em dezembro de 1994, acabou gerando polêmica em torno de diferentes cachês pagos a artistas como Gal Costa, Milton Nascimento, Chico Buarque, Gil, Caetano e Paulinho da Viola. A discussão ganhou as páginas dos jornais e Paulinho da Viola teria ficado magoado com a atitude dos organizadores do show. Em carta enviada ao Jornal do Brasil, Caetano acusa a imprensa de alimentar a discussão. Falando de Paulinho da Viola, Caetano vocifera: "Não admito que um bando de imbecis ressentidos venha me ensinar a respeitá-lo. Na qualidade de seu amigo, colega e devoto protesto contra a ignomínia de terem-no feito posar de vítima".

Numa outra polêmica que teve repercussão, foi um Caetano indignado que escreveu um longo artigo para a Folha de S.Paulo, em 1993, em que rebate afirmações feitas pelo então correspondente do The New York Times no Brasil, James Brooke. Em seu artigo, o jornalista americano usara Caetano e Gil como exemplos para discutir a atitude dos brasileiros em relação ao homossexualismo. Os músicos baianos são descritos como "bissexuais que usam vestidos em público". A afirmação deixou Caetano possesso, como é possível perceber no texto.

Sem unidade, que de resto não se pode cobrar de uma reunião de textos de natureza tão distinta, o livro de Caetano tem o mérito de resgatar o calor do momento - e alguns deles foram realmente quentes. No lugar do filtro do retrospecto, que faz de Verdade tropical um grande ensaio memorialístico, o fragmento, a sacada, a resposta de bate-pronto. Ninguém precisa concordar com Caetano para admitir que, com ele por perto, o mundo não é chato.


Pequeno dicionário de idéias em construção

"Se você tem uma idéia incrível, é melhor fazer uma canção; está provado que só é possível filosofar em alemão."

Caetano Veloso não ouviu o próprio conselho. Em O mundo não é chato, põe o violão de lado e dá umas filosofadas que poderiam render boas músicas. De qualquer maneira, não se sai mal como livre-pensador. Gustave Flaubert escreveu o Dicionário de idéias feitas. As idéias de Caetano, mal comparando, nada têm de lugar-comum. Os verbetes abaixo, retirados do livro, poderiam ser um "Pequeno dicionário de idéias em construção".

ADVERTÊNCIA Eu mesmo sou contra tudo que penso. Portanto, ninguém tome ao pé da letra nada do que eu digo. Nem ao pé da letra, nem de nenhuma outra forma. Ou melhor: tome de qualquer jeito, que vem dar no mesmo (1970).

BURGUESIA A burguesia não tem força moral para exigir nada dos jovens que a despreza. Enquanto ela era sinceramente errada, sinceramente errados nasciam os seus filhos, agora ela é falsamente boazinha, os jovens não crêem nela nem em si mesmos (1961).

CARMEN MIRANDA Ela era a nossa [dos tropicalistas] caricatura e nossa radiografia (1991).

CAZUZA Podemos chorar de saudade de Cazuza. Mas sempre tornamos a nos alegrar com sua presença divertida e desafiadora, porque ele é uma das pessoas que mais sabem expressar este fato dificílimo de entender e admitir: os humanos somos todos imortais (2001).

CINEMA Procurar saber sobre arte cinematográfica não é apenas um passatempo esnobe, mas uma necessidade cultura e do homem moderno (1960).

"É PROIBIDO PROIBIR" [O slogan anarquista pintado nos muros da Paris de 68 e que virou refrão de canção] é uma deliberada transgressão das leis da lógica que, com sua carga de humor e poesia, não atrapalha os verdadeiros amantes da razão (1999).

ESTADOS UNIDOS Amo os Estados Unidos. Apenas não exijo do Brasil menos do que levar mais longe muito do que se deu ali e, mais importante ainda, mudar o rumo de muitas linhas evolutivas (1993).

GILBERTO GIL Gil é um grande inventor que não registra patente (1992).

FELLINI A palavra saudade, que é a palavra emblema da língua portuguesa e é o nome do que eu sentia (e sinto) em relação a Federico e Giulietta Masina, uma saudade infinita por nunca tê-los visto em pessoa, por ter conversado com eles (muitas vezes) apenas em sonhos (1999).

FERNANDA MONTENEGRO Sendo ao mesmo tempo o oposto de uma excêntrica e o contrário de uma medíocre, Fernanda nos comunica responsabilidade (1990).

GAL COSTA Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas (1967).

IMPRENSA O Cruzeiro não é verdadeira manchete. Fatos e fotos não é o verdadeiro intervalo. Veja não é a verdadeira realidade (1970).

INSPIRAÇÃO Inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e o milênio (1975).

JOÃO GILBERTO É, de todos os tempos, o intérprete brasileiro que melhor compreende a bossa, esse mistério que habita o sambista, e melhor pode jogar com ela (1965).

LÍNGUA PORTUGUESA Amar a língua portuguesa é amar sua capacidade como instrumento universal; falar português é livrar- se da prisão do português (1993).

LONDRES Aqui é o estrangeiro. O inf(v)erno (1969).

LUIZ GONZAGA Ele foi o cara que, no seu tempo, mais e melhor explorou a riqueza possível dos novos meio técnicos. Ele inventou uma forma de conjunto, um tipo de arranjo, um uso do microfone (1970).

MARIA BETHÂNIA Tenho tido muita inveja de Bethânia porque na minha fantasia os acontecimentos da vida dela possuem uma espécie de inteireza diante da qual a minha própria vida parece consistir numa série de imprecisões e transparências (1981).

MILTON NASCIMENTO Milton é um buraco preto. Milton é a mãe de Nina Simone, a avó de Clementina, o filho futuro do neguinho que a gente via upa na estrada do Zumbi de Edu, de Guarnieri, de Elis. Milton é nossa grande alegria (1976).

MITO O que talvez tenha dificultado tudo desde sempre é o fato de nunca antes ter havido no Brasil uma figura popular com tanta pinta de intelectual quanto eu. Não sou um mito nacional, na medida em que Pelé o é, na medida em que Roberto Carlos o é. Nem pretendo sê-lo (1972).

MPB A música popular brasileira não se renova a cada semana. É verdade. Como o povo mesmo, ela é densa, complexa, custa a mudar. Nenhum avanço real é uma pequena mudança (1970).

MÚSICA X CINEMA Faço música popular e sou apaixonado por cinema. Minha música está cheia de imagens invisíveis que vieram das grandes telas (1997).

PARIS Eu gosto de Paris porque é como se de repente Recife virasse o Rio de Janeiro (1969).

PAULINHO DA VIOLA Um abraço sempre novo em Paulinho da Viola cantando, um abraço pelo seu sinal. Paulinho é um grande amor. Deve ser a pessoa de quem mais gosto no Rio de Janeiro que passou em minha vida (1970).

POLÍTICA Era um otimismo tolo crer na força dos ideais de justiça social transformados em slogans nas letras das músicas e em motivação de programas de atuação (1993).

RACISMO Freqüentemente vejo surpresa - às vezes um estranho prazer -- no olhar de quem flagra evidência de racismo entre brasileiros. Mas o que me surpreende é que tais flagrantes possam provocar espanto tão cândido (2000).

TINHORÃO Era preciso odiar com mais veemência as sandices de José Ramos Tinhorão [crítico musical]. Como é que as revistas brasileiras dão espaço àquele bobão? (1969)

TROPICALISMO Tropicalismo foi o apelido que ganhou o resultado de nossa ambição, em 67, de mudar a atitude em relação à estética, à política e ao mercado de música popular no Brasil (1992). O valor do Tropicalismo se resume a sua coragem de gritar que não podemos fugir às responsabilidades criadas por João Gilberto e Tom Jobim (1999).

TROPICALISTAS Nós, os tropicalistas, éramos pessimistas, ou pelo menos namoramos o mais sombrio pessimismo (1993).

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