sábado, 22 de julio de 2017

1980 - A MULHER É O POETA - Revista CÓDIGO 4



1980
Revista Código 4
Agosto
Erthos Albino de Souza [editor]
Salvador, Bahia











A MULHER É O POETA

Entrevista de Caetano Veloso a Régis Bonvicino

Régis - John Lennon afirma, em “Lennon Remembers/The Rolling Stone Interviews”, que suas lyrics preferidas são as que “ficam em pé” sem melodia, as que funcionam, em última análise, como poemas no papel. Isso me lembra os trovadores galego-portugueses. Desconhecemos suas melodias e conhecemos apenas suas lyrics, que, mesmo sem som, funcionam à maravilha como poemas no papel. Você toparia usar esse critério em relação às suas letras? Quais as suas preferidas? Por quê?
Caetano - Não, esse critério, na verdade, é praticamente o oposto do meu, porque o que me interessa é a palavra cantada.
Talvez tenha sido esse o caminho que levou os trovadores provençais, os galego-portugueses, a fazerem poemas que terminaram sendo bonitos mesmo sem as melodias. Talvez, tenha sido esse o caminho, esse lance de ter a palavra já com o som musical.
Acho que o critério de John Lennon pode ser mais ou menos esse, mas não sei se, de fato, é esse, se corresponde à própria realidade poética dele.
Não sei, pode ser que, a posteriori, depois de muito tempo, a gente possa ler uma letra sem música e achar um barato.
Penso que Lennon, quando fez aquela afirmação, queria dizer que ele estava mais vinculado ao texto, entendeu? Ele cita, se não me engano, “Across the Universe”, que considera um poema lindíssimo mesmo sem a música, mas quando fala do que acha ser a grande poesia do rock and roll, lembra imediatamente de Chuck Berry e de algumas coisas de Little Richard. Ele fala de coisas que você sabe que são maravilhosas porque são aqueles rocks e ele achou tudo incrível, importantíssimo sem ter lido antes no papel.
Sobre as minhas letras, não sei dizer as de que mais gosto, depende da época. Por exemplo, tomei um susto outro dia porque ultimamente não tenho escrito minhas letras. Das do LP CINEMA TRANSCENDENTAL apenas uma escrevi parcialmente no papel antes da música, foi “Oração ao Tempo”. Escrevi umas estrofes e bolei, em seguida, uma melodia para a primeira estrofe. Depois, resolvi repetir essa melodia para o resto do texto, queria tudo com a mesma métrica, o mesmo ritmo. Foi a única, portanto, que eu escrevi no papel.
O jornal ENFIM, do Tarso de Castro, pediu pra eu mandar letras inéditas, antes do disco sair, pra publicar. Entreguei “Lua de São Jorge”, “Oração ao tempo” e “Menino do rio”. A que mais curtia era “Lua de São Jorge”. Bati à máquina e não prestei muita atenção. Mandei pro jornal, que editou só as duas últimas.
Acho a letra de “Menino do Rio”, quando canto, deslumbrante, adoro aquele verso “O Havaí seja aqui”, que tem um som afro. Agora, quando eu vi no jornal, escrita, achei uma coisa débil mental, tola. E ela não é tola, pelo contrário, é muito bonita quando cantada! “Oração ao Tempo”, por outro lado, segurava mais, podia ser lida.
A palavra cantada é, em suma, outro tipo de matéria-prima, que tem a ver com a palavra escrita e com a falada, mas que não se reduz a nenhuma delas. A palavra cantada funciona, talvez, como síntese das outras duas, tem desempenhado, pelo menos, essa função, porque toda a curtição da palavra em estado de poesia tem sido muito mais intensa na área de música popular do que nas demais.
Talvez, esse fenômeno decorra, um pouco, do cansaço do visual, da comunicação visual, da leitura. O fim dos anos 1960, os papos de McLuhan talvez tenham sido uma notícia desse cansaço. O olho dançou. O ouvido é uma coisa mais envolvente, mais participante. O som chega de todos os lados, entra em todos os poros.
Pode ser que esse cansaço seja apenas passageiro. As coisas vão e vêm. Não creio nessa caminhada para a frente, como se pudesse haver um progresso. Não compartilho dessa ideia ocidental de progresso linear.

Régis - Embora os circuitos de produção da poesia-música e da poesia-papel sejam diversos, e até mesmo antagônicos (a primeira está vinculada às relações de troca, de compra e venda, e a segunda não), você me disse pouco tempo atrás que não distinguia entre uma canção de Jorge Ben e um poema de Augusto de Campos, que ambos eram biscoitos finos para o seu paladar. Gostaria que falasse um pouco mais sobre isso.
Caetano - Há uma coisa na pergunta que está um pouco em falso, isso de que a poesia-música está vinculada às relações de troca e a poesia-papel não. Não é verdade. Acho que ambas são produtos, sendo que, no momento, como produto de venda, a poesia-canção está muito mais bem-sucedida. A questão é de mercado. A diferença entre uma e outra não é de circuito, mas de nível de intensidade na produção e no consumo. Não há diversidade e antagonismo. Na verdade, ambas são iguais, estão no mesmo planeta. Os livros podem ser vendidos, poesia é pra vender, como o disco. Só que a poesia escrita não está fazendo sucesso, dos anos 1950 para cá, não só no Brasil como no mundo todo.
Você diz que a poesia-papel não tem existência real, certo? Não, ela tem. Sejamos modernos, o que ocorre é que ela está em crise de mercado.
Não sei por que isso acontece, talvez seja uma questão da história das línguas ocidentais, um momento no swing interno dessas línguas. O fenômeno, como eu disse, é planetário, não existe mais o interesse que havia em termos de consumo e em termos de feitura. Há pouca gente fazendo uma poesia responsavelmente poética, com uma vinculação ao que há de grandioso na história da poesia e, por outro lado, pouca gente compra qualquer poesia escrita, entendeu?
Ultimamente, há bastante gente fazendo muita poesia, mas sem força, com uma animação vazia, ninguém sabe se desse contexto pode sair um lance quente.
Acho que a diferença que você coloca na pergunta não é precisa. Agora, pessoalmente, não costumo distinguir as coisas, não separo música popular de música erudita etc. Não carrego comigo a ideia de nobreza do material, detesto isso. Cientificamente, você pode isolar as diversas manifestações artísticas, mas creio que esse tipo de olho dançou, não corresponde mais à realidade viva.

Régis - Queria que você falasse sobre música popular. Por que ela é tão forte no Brasil?
Caetano - A música popular brasileira é, em todos os sentidos, abundante. É a única manifestação, no Brasil, que não é carente. Na verdade, é uma aberração dentro da sociedade brasileira, é diferente, em nenhum país do mundo ela tem a importância que tem aqui.
A música popular sempre se mantém, sempre consegue agenciar recursos pra ficar forte, o que não ocorre com a poesia escrita, com o cinema, com o teatro. Ela une o pique nacional, tem a vocação de expressar o país.
Só pintou uma geração como a minha, com Jorge Ben, Gil, Chico, Paulinho da Viola, porque já havia outras pessoas fortes.
Nem nos Estados Unidos a música popular é tão forte como aqui porque lá as outras coisas são, também, fortes. Lá eles têm grana, comida, carro, a grama, como diz Leminski, é bacana. O brasileiro é muito pobre, não consegue fazer nada, não consegue se ajuntar pra fazer nada, mas, dentro desse caos, a música popular funciona. Ela é a expressão filosófica do país. É muito mais importante que todos os universitários de todas as épocas que já escreveram todas as coisas complicadas. Ela é uma expressão mais totalizante do Brasil, mais direta, não transa com materiais nobres porque o Brasil não é um país nobre.
Creio que os poetas-papel estão, de modo geral, mais vinculados a uma tradição europeia, e a música popular é uma coisa mais vinculada à América; quando ela pintou, já existia a América. Ela é meio parecida, nesse sentido, com o cinema e, ao mesmo tempo, é música porque é uma coisa antiquíssima.

Régis - Seria o cinema transcendental…
Caetano - Claro, exatamente isso…

Régis - Aproveitando o pique, gostaria que você falasse sobre o lendário ARAÇÁ AZUL.
Caetano - ARAÇÁ AZUL não é classe A, “xingu chic”, como por exemplo as coisas que Egberto Gismonti vem fazendo. É outra coisa, não é “xingu chic”. Eu sou mais Oswald de Andrade que Mário de Andrade ou Academia Brasileira de Bossas.
Acho, até hoje, o ARAÇÁ AZUL maravilhoso, faço, inclusive, uma referência a ele na canção “Aracaju”, que está em meu último LP.
Quis fazer esse disco sozinho para poder desinibir no estúdio, pois, pra mim, estúdio de gravação é uma coisa muito inibidora.
Ficamos eu e o técnico de som, Marcus Vinícius, trabalhando. Depois, chamei várias pessoas, como Duprat, Perna, Lanny, para complementarem em cima do que eu havia feito. Adoro o resultado, principalmente aquele lance de conversa, de vozes superpostas com percussão corporal, com percussão na pele.
Mas o som ficou chapado, eu não manjava de estúdio. Hoje, se eu tivesse de fazer de novo, faria com mais profundidade e nuance no colorido dos sons. Mas não tenho, agora, vontade de fazer mais aquilo. Mesmo porque, naquela altura, quando acabei de lançar o ARAÇÁ, saiu o disco BEN, de Jorge Ben, também de 1972, com “As Rosas Eram Todas Amarelas”, “Quem Cochicha o Rabo Espicha”, “Taj Mahal”, “Fio Maravilha”, um trabalho monumentalmente genial.
Então, eu pensava comigo, puxa, fiz o ARAÇÁ e parece que sou um ARTISTA. Fiquei com raiva, meu Deus, eu fiz essa coisa tão louca e todo mundo vai achar que é um disco intelectualmente elevado, importante, enquanto, na verdade, o grande disco é o de Jorge Ben, incomparavelmente superior. O meu era uma brincadeira, fiquei com raiva do tipo de respeito que ele causou. O ARAÇÁ eu fiz em uma semana, não era o meu trabalho mais elaborado, como dizia parte da crítica. Fiquei com raiva, pois o grande lance era e é Jorge Ben.

Régis - Para a minha geração, “a fala”, o fascínio pelo coloquial, pelo oral, pelas possibilidades de comunicação que existem no oral, têm a mesma importância que a incorporação do visual tinha para os poetas aglutinados em torno da Poesia Concreta. Nesse sentido, sua poesia, a de Gil, são tão ou mais importantes pra gente do que a de Drummond, Cabral, Augusto, Décio. Como você vê isso?
Caetano -  E Chico Buarque?

Régis - Antes de você responder, quero explicar por que não citei Chico. Acho a poesia dele, com exceção do lado mulher, tipo “Folhetim”, velha, um lirismo dos anos 1950, picadinho de Vinicius, Drummond, Bandeira. Penso que lhe falta um lado mais elétrico. Ele tem muito essa coisa do bom brasileiro, que é chatíssima.
Caetano - Acho natural sua geração gostar mais da gente do que dos poetas-papel, para usar essa expressão que você inventou. É um lance bem da nossa época. Isso faz de vocês pessoas iguais a todo mundo, o que é ótimo.
Acho também fascinante que o pessoal da poesia escrita fique ligado nos músicos populares.
Agora, voltando àquela primeira pergunta, quando você cita a frase do Lennon, você vê bem ali que existe uma inter-relação entre a gente e os poetas. No fundo, somos iguais. Por acaso, por sorte descambamos para a música popular. Mas veja, nós também somos ligados ao mundo das letras escritas, das ideias.
Todo esse pessoal estudou, Dylan só fala em William Blake, Lennon em Lewis Carroll, dizendo, inclusive, que quando leu Joyce se identificou bastante.
Quero dizer que não concordo com o que você falou sobre Chico Buarque. Ele tem tudo o que você falou, mas é maravilhoso. Ele anda para a frente arrastando a tradição, isso é bem do signo dele, que é Gêmeos.
Chico escreve de um jeito maravilhoso, o lance da palavra cantada atinge, no trabalho dele, os pontos mais altos, chega à perfeição, entendeu? Mas, de fato, ele tem mesmo essa coisa do bom brasileiro. Eu, por exemplo, me sinto um sueco no Brasil.
Mas acho Chico deslumbrante, ele é o supervinicius, o superdrummond, o superbandeira com a espontaneidade de Dorival Caymmi. A palavra cantada, nele, tem uma fluidez incrível.
E você sabe que considero Caymmi o maior, a mãe da palavra cantada, um gênio.

Régis - Você, um poeta-músico, próximo dos pretos, próximo da poesia-papel, acredita no futuro desta última ou pensa que se Maiakovski, por exemplo, estivesse vivo trocaria o papel pela guitarra, mudaria de Moscou para Londres ou Nova York ou Salvador e cantaria: “Well, I’m gonna China to see for myself/ Gonna China, gonna China/ Just got to give me some rock and roll”?
Caetano - Acho que tem futuro. A própria coisa de a poesia escrita deixar de ser cursiva e entrar para um outro nível de informação é um fato que aponta para certas necessidades do homem que, a qualquer momento, podem explodir de novo. Como eu disse, tudo é cíclico, a respiração não para, de repente pode voltar a haver procura genuína de poesia-papel. Repito, o que acontece é que ela hoje está em crise de mercado. No futuro, sei lá, pode ser que as pessoas voltem a sentir necessidade de ler, de pegar um lápis e papel e escrever.
A poesia escrita que se faz hoje pode estar apontando para rumos que, embora desconhecidos, poderão vingar, explodir. Ninguém sabe ao certo.
Agora, essa imagem que você montou do Maiakovski cantando “I’m gonna China” é perfeita.

Régis - Não sei, sempre imaginei o John Lennon como uma reencarnação pop do Maiakovski, ambos são, para mim, poetas guerreiros, impetuosos, bardos, não sei, pode ser um delírio…
Caetano - Não, essa história é linda, Maiakovski era bastante pop mesmo. Agora, Lennon é o de quem mais gosto do pessoal do rock. É o meu favorito porque eu adoro os Beatles. Eu gosto mais dos Beatles juntos. Depois de separados, o único disco que eu acho genial é o DREAM IS OVER do John, adoro as letras e as músicas.

Régis - Esse disco que você acabou de citar, de 1970, foi acusado, na época em que saiu, do mesmo modo que MUITO e CINEMA TRANSCENDENTAL agora, de ser musicalmente ralo, de ter arranjos pobres, de ser uma coisa de fundo de quintal.
Caetano - Pra você ver, e é um clássico, né? Mas voltando, Paul McCartney também é legal, ele é geminiano, como o Chico Buarque. Ele carrega também a tradição, une o habitual ao que está sendo proposto. John, às vezes, fica chato, quando começa a inventar muito, como, por exemplo, naquela canção que fez pra Yoko, “I want you (She’s so heavy)”. Mas Lennon é o meu favorito.
Por exemplo, Bob Dylan, eu demorei muito para gostar, eu achava aquilo tudo muito comprido, retórico, prolixo, metafórico. A coisa dele é difícil de entender e eu preferia letras sintéticas, não curtia letra longa, mas fiquei gostando muito, hoje em dia eu gosto muito. Ele é um cantor maravilhoso, parece o Pato Donald com consciência social, como disse Paulo Francis, citando um americano. Dylan, sim, faz uma poesia meio declamada porque ele vem dessa linha do canto falado do folk blues.

Régis - E Jimi Hendrix?
Caetano - Eu estava em Londres quando ele morreu. Ele morreu até perto da casa onde a gente morava. Até hoje, acho ele maravilhoso. No Festival Pop da Ilha de Wight, eu estava próximo do palco e Hendrix tocou uma série de números novos, não causou aquele frisson esperado, embora ele tenha sido bem recebido. Aí, de repente, ele parou e falou: “Vocês querem todas aquelas coisas velhas?”. Eu, que estava perto, gritei: - “Todas elas”. Ele virou e piscou o olho pra mim.

Régis - Então você foi abençoado por um dos deuses de lá…
Caetano - Hendrix era lindo, sexy, parecia um garotinho da Balua. Era sorridente, tinha a cara leve, não tinha aquele aspecto barra-pesada de capa de disco, aquilo era marketing errado.

São Paulo, 5 de dez de 79




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