Revista
Código 4
Agosto
Erthos Albino de Souza [editor]
Erthos Albino de Souza [editor]
A MULHER É O POETA
Entrevista de Caetano Veloso a Régis Bonvicino
Régis - John Lennon afirma, em “Lennon Remembers/The Rolling Stone Interviews”,
que suas lyrics preferidas são as que “ficam em pé” sem melodia, as que
funcionam, em última análise, como poemas no papel. Isso me lembra os
trovadores galego-portugueses. Desconhecemos suas melodias e conhecemos apenas
suas lyrics, que, mesmo sem som, funcionam à maravilha como poemas no papel.
Você toparia usar esse critério em relação às suas letras? Quais as suas
preferidas? Por quê?
Caetano - Não, esse critério, na verdade, é praticamente o oposto do meu, porque
o que me interessa é a palavra cantada.
Talvez
tenha sido esse o caminho que levou os trovadores provençais, os
galego-portugueses, a fazerem poemas que terminaram sendo bonitos mesmo sem as
melodias. Talvez, tenha sido esse o caminho, esse lance de ter a palavra já com
o som musical.
Acho
que o critério de John Lennon pode ser mais ou menos esse, mas não sei se, de
fato, é esse, se corresponde à própria realidade poética dele.
Não
sei, pode ser que, a posteriori,
depois de muito tempo, a gente possa ler uma letra sem música e achar um
barato.
Penso
que Lennon, quando fez aquela afirmação, queria dizer que ele estava mais
vinculado ao texto, entendeu? Ele cita, se não me engano, “Across the
Universe”, que considera um poema lindíssimo mesmo sem a música, mas quando
fala do que acha ser a grande poesia do rock and roll, lembra imediatamente de
Chuck Berry e de algumas coisas de Little Richard. Ele fala de coisas que você
sabe que são maravilhosas porque são aqueles rocks e ele achou tudo incrível,
importantíssimo sem ter lido antes no papel.
Sobre
as minhas letras, não sei dizer as de que mais gosto, depende da época. Por
exemplo, tomei um susto outro dia porque ultimamente não tenho escrito minhas
letras. Das do LP CINEMA
TRANSCENDENTAL apenas uma escrevi parcialmente no papel antes da música,
foi “Oração ao Tempo”. Escrevi umas estrofes e bolei, em seguida, uma melodia
para a primeira estrofe. Depois, resolvi repetir essa melodia para o resto do
texto, queria tudo com a mesma métrica, o mesmo ritmo. Foi a única, portanto,
que eu escrevi no papel.
O
jornal ENFIM, do Tarso de
Castro, pediu pra eu mandar letras inéditas, antes do disco sair, pra publicar.
Entreguei “Lua de São Jorge”, “Oração ao tempo” e “Menino do rio”. A que mais
curtia era “Lua de São Jorge”. Bati à máquina e não prestei muita atenção.
Mandei pro jornal, que editou só as duas últimas.
Acho
a letra de “Menino do Rio”, quando canto, deslumbrante, adoro aquele verso “O
Havaí seja aqui”, que tem um som afro. Agora, quando eu vi no jornal, escrita,
achei uma coisa débil mental, tola. E ela não é tola, pelo contrário, é muito
bonita quando cantada! “Oração ao Tempo”, por outro lado, segurava mais, podia
ser lida.
A
palavra cantada é, em suma, outro tipo de matéria-prima, que tem a ver com a
palavra escrita e com a falada, mas que não se reduz a nenhuma delas. A palavra
cantada funciona, talvez, como síntese das outras duas, tem desempenhado, pelo
menos, essa função, porque toda a curtição da palavra em estado de poesia tem
sido muito mais intensa na área de música popular do que nas demais.
Talvez,
esse fenômeno decorra, um pouco, do cansaço do visual, da comunicação visual,
da leitura. O fim dos anos 1960, os papos de McLuhan talvez tenham sido uma
notícia desse cansaço. O olho dançou. O ouvido é uma coisa mais envolvente,
mais participante. O som chega de todos os lados, entra em todos os poros.
Pode
ser que esse cansaço seja apenas passageiro. As coisas vão e vêm. Não creio
nessa caminhada para a frente, como se pudesse haver um progresso. Não
compartilho dessa ideia ocidental de progresso linear.
Régis - Embora os circuitos de produção da poesia-música e da poesia-papel
sejam diversos, e até mesmo antagônicos (a primeira está vinculada às relações
de troca, de compra e venda, e a segunda não), você me disse pouco tempo atrás
que não distinguia entre uma canção de Jorge Ben e um poema de Augusto de
Campos, que ambos eram biscoitos finos para o seu paladar. Gostaria que falasse
um pouco mais sobre isso.
Caetano - Há uma coisa na pergunta que está um pouco em falso, isso de que a
poesia-música está vinculada às relações de troca e a poesia-papel não. Não é
verdade. Acho que ambas são produtos, sendo que, no momento, como produto de
venda, a poesia-canção está muito mais bem-sucedida. A questão é de mercado. A
diferença entre uma e outra não é de circuito, mas de nível de intensidade na
produção e no consumo. Não há diversidade e antagonismo. Na verdade, ambas são
iguais, estão no mesmo planeta. Os livros podem ser vendidos, poesia é pra
vender, como o disco. Só que a poesia escrita não está fazendo sucesso, dos
anos 1950 para cá, não só no Brasil como no mundo todo.
Você
diz que a poesia-papel não tem existência real, certo? Não, ela tem. Sejamos
modernos, o que ocorre é que ela está em crise de mercado.
Não
sei por que isso acontece, talvez seja uma questão da história das línguas
ocidentais, um momento no swing interno dessas línguas. O fenômeno, como
eu disse, é planetário, não existe mais o interesse que havia em termos de
consumo e em termos de feitura. Há pouca gente fazendo uma poesia
responsavelmente poética, com uma vinculação ao que há de grandioso na história
da poesia e, por outro lado, pouca gente compra qualquer poesia escrita,
entendeu?
Ultimamente,
há bastante gente fazendo muita poesia, mas sem força, com uma animação vazia,
ninguém sabe se desse contexto pode sair um lance quente.
Acho
que a diferença que você coloca na pergunta não é precisa. Agora, pessoalmente,
não costumo distinguir as coisas, não separo música popular de música erudita
etc. Não carrego comigo a ideia de nobreza do material, detesto isso.
Cientificamente, você pode isolar as diversas manifestações artísticas, mas
creio que esse tipo de olho dançou, não corresponde mais à realidade viva.
Régis - Queria que você falasse sobre música
popular. Por que ela é tão forte no Brasil?
Caetano - A música popular brasileira é, em todos os
sentidos, abundante. É a única manifestação, no Brasil, que não é carente. Na
verdade, é uma aberração dentro da sociedade brasileira, é diferente, em nenhum
país do mundo ela tem a importância que tem aqui.
A
música popular sempre se mantém, sempre consegue agenciar recursos pra ficar
forte, o que não ocorre com a poesia escrita, com o cinema, com o teatro. Ela
une o pique nacional, tem a vocação de expressar o país.
Só
pintou uma geração como a minha, com Jorge Ben, Gil, Chico, Paulinho da Viola,
porque já havia outras pessoas fortes.
Nem
nos Estados Unidos a música popular é tão forte como aqui porque lá as outras
coisas são, também, fortes. Lá eles têm grana, comida, carro, a grama, como diz
Leminski, é bacana. O brasileiro é muito pobre, não consegue fazer nada, não
consegue se ajuntar pra fazer nada, mas, dentro desse caos, a música popular
funciona. Ela é a expressão filosófica do país. É muito mais importante que
todos os universitários de todas as épocas que já escreveram todas as coisas
complicadas. Ela é uma expressão mais totalizante do Brasil, mais direta, não
transa com materiais nobres porque o Brasil não é um país nobre.
Creio
que os poetas-papel estão, de modo geral, mais vinculados a uma tradição
europeia, e a música popular é uma coisa mais vinculada à América; quando ela
pintou, já existia a América. Ela é meio parecida, nesse sentido, com o cinema
e, ao mesmo tempo, é música porque é uma coisa antiquíssima.
Régis - Seria o cinema transcendental…
Caetano - Claro, exatamente isso…
Régis - Aproveitando o pique, gostaria que você
falasse sobre o lendário ARAÇÁ AZUL.
Caetano - ARAÇÁ AZUL não é classe A, “xingu chic”,
como por exemplo as coisas que Egberto Gismonti vem fazendo. É outra coisa, não
é “xingu chic”. Eu sou mais Oswald de Andrade que Mário de Andrade ou Academia
Brasileira de Bossas.
Acho,
até hoje, o ARAÇÁ AZUL maravilhoso,
faço, inclusive, uma referência a ele na canção “Aracaju”, que está em meu
último LP.
Quis
fazer esse disco sozinho para poder desinibir no estúdio, pois, pra mim,
estúdio de gravação é uma coisa muito inibidora.
Ficamos
eu e o técnico de som, Marcus Vinícius, trabalhando. Depois, chamei várias
pessoas, como Duprat, Perna, Lanny, para complementarem em cima do que eu havia
feito. Adoro o resultado, principalmente aquele lance de conversa, de vozes
superpostas com percussão corporal, com percussão na pele.
Mas
o som ficou chapado, eu não manjava de estúdio. Hoje, se eu tivesse de fazer de
novo, faria com mais profundidade e nuance no colorido dos sons. Mas não tenho,
agora, vontade de fazer mais aquilo. Mesmo porque, naquela altura, quando
acabei de lançar o ARAÇÁ, saiu
o disco BEN, de Jorge Ben,
também de 1972, com “As Rosas Eram Todas Amarelas”, “Quem Cochicha o Rabo
Espicha”, “Taj Mahal”, “Fio Maravilha”, um trabalho monumentalmente genial.
Então,
eu pensava comigo, puxa, fiz o ARAÇÁ
e parece que sou um ARTISTA. Fiquei com raiva, meu Deus, eu fiz essa
coisa tão louca e todo mundo vai achar que é um disco intelectualmente elevado,
importante, enquanto, na verdade, o grande disco é o de Jorge Ben,
incomparavelmente superior. O meu era uma brincadeira, fiquei com raiva do tipo
de respeito que ele causou. O ARAÇÁ
eu fiz em uma semana, não era o meu trabalho mais elaborado, como
dizia parte da crítica. Fiquei com raiva, pois o grande lance era e é Jorge
Ben.
Régis - Para a minha geração, “a fala”, o fascínio
pelo coloquial, pelo oral, pelas possibilidades de comunicação que existem no
oral, têm a mesma importância que a incorporação do visual tinha para os poetas
aglutinados em torno da Poesia Concreta. Nesse sentido, sua poesia, a de Gil,
são tão ou mais importantes pra gente do que a de Drummond, Cabral, Augusto,
Décio. Como você vê isso?
Caetano - E
Chico Buarque?
Régis - Antes de você responder, quero explicar por
que não citei Chico. Acho a poesia dele, com exceção do lado mulher, tipo
“Folhetim”, velha, um lirismo dos anos 1950, picadinho de Vinicius, Drummond,
Bandeira. Penso que lhe falta um lado mais elétrico. Ele tem muito essa coisa
do bom brasileiro, que é chatíssima.
Caetano - Acho natural sua geração gostar mais da
gente do que dos poetas-papel, para usar essa expressão que você inventou. É um
lance bem da nossa época. Isso faz de vocês pessoas iguais a todo mundo, o que
é ótimo.
Acho
também fascinante que o pessoal da poesia escrita fique ligado nos músicos
populares.
Agora,
voltando àquela primeira pergunta, quando você cita a frase do Lennon, você vê
bem ali que existe uma inter-relação entre a gente e os poetas. No fundo, somos
iguais. Por acaso, por sorte descambamos para a música popular. Mas veja, nós
também somos ligados ao mundo das letras escritas, das ideias.
Todo
esse pessoal estudou, Dylan só fala em William Blake, Lennon em Lewis Carroll,
dizendo, inclusive, que quando leu Joyce se identificou bastante.
Quero
dizer que não concordo com o que você falou sobre Chico Buarque. Ele tem tudo o
que você falou, mas é maravilhoso. Ele anda para a frente arrastando a
tradição, isso é bem do signo dele, que é Gêmeos.
Chico
escreve de um jeito maravilhoso, o lance da palavra cantada atinge, no trabalho
dele, os pontos mais altos, chega à perfeição, entendeu? Mas, de fato, ele tem
mesmo essa coisa do bom brasileiro. Eu, por exemplo, me sinto um sueco no
Brasil.
Mas
acho Chico deslumbrante, ele é o supervinicius, o superdrummond, o superbandeira
com a espontaneidade de Dorival Caymmi. A palavra cantada, nele, tem uma
fluidez incrível.
E
você sabe que considero Caymmi o maior, a mãe da palavra cantada, um gênio.
Régis - Você, um poeta-músico, próximo dos pretos, próximo da poesia-papel, acredita
no futuro desta última ou pensa que se Maiakovski, por exemplo, estivesse vivo
trocaria o papel pela guitarra, mudaria de Moscou para Londres ou Nova York ou
Salvador e cantaria: “Well, I’m gonna China to see for myself/ Gonna China,
gonna China/ Just got to give me some rock and roll”?
Caetano - Acho que tem futuro. A própria coisa de a
poesia escrita deixar de ser cursiva e entrar para um outro nível de informação
é um fato que aponta para certas necessidades do homem que, a qualquer momento,
podem explodir de novo. Como eu disse, tudo é cíclico, a respiração não para,
de repente pode voltar a haver procura genuína de poesia-papel. Repito, o que
acontece é que ela hoje está em crise de mercado. No futuro, sei lá, pode ser
que as pessoas voltem a sentir necessidade de ler, de pegar um lápis e papel e
escrever.
A
poesia escrita que se faz hoje pode estar apontando para rumos que, embora
desconhecidos, poderão vingar, explodir. Ninguém sabe ao certo.
Agora,
essa imagem que você montou do Maiakovski cantando “I’m gonna China” é
perfeita.
Régis - Não sei, sempre imaginei o John Lennon como
uma reencarnação pop do Maiakovski, ambos são, para mim, poetas guerreiros,
impetuosos, bardos, não sei, pode ser um delírio…
Caetano - Não, essa história é linda, Maiakovski era
bastante pop mesmo. Agora, Lennon é o de quem mais gosto do pessoal do rock. É
o meu favorito porque eu adoro os Beatles. Eu gosto mais dos Beatles juntos.
Depois de separados, o único disco que eu acho genial é o DREAM IS OVER do
John, adoro as letras e as músicas.
Régis - Esse disco que você acabou de citar, de 1970, foi acusado, na época em
que saiu, do mesmo modo que MUITO e
CINEMA TRANSCENDENTAL agora, de
ser musicalmente ralo, de ter arranjos pobres, de ser uma coisa de fundo de
quintal.
Caetano - Pra você ver, e é um clássico, né? Mas
voltando, Paul McCartney também é legal, ele é geminiano, como o Chico Buarque.
Ele carrega também a tradição, une o habitual ao que está sendo proposto. John,
às vezes, fica chato, quando começa a inventar muito, como, por exemplo,
naquela canção que fez pra Yoko, “I want you (She’s so heavy)”. Mas Lennon é o
meu favorito.
Por
exemplo, Bob Dylan, eu demorei muito para gostar, eu achava aquilo tudo muito
comprido, retórico, prolixo, metafórico. A coisa dele é difícil de entender e
eu preferia letras sintéticas, não curtia letra longa, mas fiquei gostando
muito, hoje em dia eu gosto muito. Ele é um cantor maravilhoso, parece o Pato
Donald com consciência social, como disse Paulo Francis, citando um americano.
Dylan, sim, faz uma poesia meio declamada porque ele vem dessa linha do canto
falado do folk blues.
Régis - E Jimi Hendrix?
Caetano - Eu estava em Londres quando ele morreu. Ele
morreu até perto da casa onde a gente morava. Até hoje, acho ele maravilhoso.
No Festival Pop da Ilha de Wight, eu estava próximo do palco e Hendrix tocou
uma série de números novos, não causou aquele frisson esperado, embora
ele tenha sido bem recebido. Aí, de repente, ele parou e falou: “Vocês querem
todas aquelas coisas velhas?”. Eu, que estava perto, gritei: - “Todas elas”.
Ele virou e piscou o olho pra mim.
Régis - Então você foi abençoado por um dos deuses
de lá…
Caetano - Hendrix era lindo, sexy, parecia um
garotinho da Balua. Era sorridente, tinha a cara leve, não tinha aquele aspecto
barra-pesada de capa de disco, aquilo era marketing errado.
São Paulo, 5 de dez de 79
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