Capa da 1ª ed., de Tarsila do Amaral (1924) |
MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR
Fragmento n° 52
INDIFERENÇA
Montmartre
E os moinhos do frio
As escadas atiram almas ao jazz de pernas nuas
E os moinhos do frio
As escadas atiram almas ao jazz de pernas nuas
Meus
olhos vão buscando lembranças
Como gravatas achadas
Como gravatas achadas
Nostalgias
brasileiras
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas
Os
portos de meu país são bananas negras
Sob palmeiras
Os poetas de meu país são negros
Sob bananeiras
As bananeiras de meu país
São palmas claras
Braços de abraços desterrados que assobiam
E saias engomadas
O ring das riquezas
Sob palmeiras
Os poetas de meu país são negros
Sob bananeiras
As bananeiras de meu país
São palmas claras
Braços de abraços desterrados que assobiam
E saias engomadas
O ring das riquezas
Brutalidade
jardim
Aclimatação
Aclimatação
Rue
de La Paix
Meus olhos vão buscando gravatas
Como lembranças achadas.
Meus olhos vão buscando gravatas
Como lembranças achadas.
DUNN, Christopher. Brutality
Garden - Tropicália and the emergence of a brazilian counterculture.
1st edition. The University of North Carolina Press, Chapel Hill & London, 2001.
256 p.
Cover illustration: Gilberto Gil (photograph by Christopher Dunn)
DUNN, Christopher. Brutality
Garden - Tropicália and the emergence of a brazilian counterculture. Country Chapel Hill, United
States. University of North Carolina Press; New edition (Oct.
15 2001). 276 p.
Cover illustrations: (front) Hélio Eichbauer's scenography for O rei da vela (courtesy Hélio Eichbauer, (back) Gilberto Gil (photograph by Christopher Dunn)
C O N T E N T S
Acknowledgments ix
Abbreviations xiii
Introduction I
CHAPTER 1
Poetry for Export:
Modernity, Nacionality, and
Internationalism in
Brazilian Culture 12
CHAPTER 2
Participation, Pop
Music, and the Universal Sound 37
CHAPTER 3
The Tropicalist
Moment 73
CHAPTER 4
In the Adverse Hour:
Tropicália Performed and Proscribed 122
CHAPTER 5
Tropicália,
Counterculture, and Afro-Diasporic Connections 160
CHAPTER 6
Traces of Tropicália 188
Notes 215
Bibliography 235
Discography 247
Index 249
Page 48 - Gilberto Gil (top) and Caetano Veloso, 1968 (Paulo Salomão/Abril Imagens) |
Page 49 - Tom Zé, 1968. (J. Ferreira da Silva/Abril Imagens) |
Page 76 - Still from Glauber Rocha’s film
Terra em transe, 1967. |
Page 80 - A scene from the second act of
Oswald de Andrade’s O rei da vela, produced by Teatro Oficina, 1967 (Fredi
Kleeman/Multimedios-PMSO) |
Page 91 - Gilberto Gil and Caetano Veloso, 1968 |
Page 110 - Art and commerce. Caetano
Veloso exhibits a toy stove in 1968.
Foto:
J. Ferreira da Silva/Abril Imagens
|
Page 126 - Caetano Veloso performs on the popular variety show Discoteca do Chacrinha, 1968 (Agência JB, Jornal do Brasil) |
Page 132 - Gilberto Gil performs at the International Song Festival, 1968 (Cristiano Mascaro/Abril Imagens) |
Page 139 - Gal Costa at TV Record Festival, 1968 (Paulo Salomão/Abril Imagens) |
Page 192 - Caetano Veloso (left) and Gilberto Gil perform in New York City during their Tropicália Duo tour, 1994. (Claudia Thompson) |
1968 - Caetano Veloso |
1968 - Caetano Veloso (Courtesy of Universal Records) |
1968 - Tropicália, ou Panis et Circensis (Courtesy of Universal Records) |
1968 - Tom Zé (Courtesy of Tom Zé) |
1969 - Jorge Ben (Courtesy of Universal Records) |
DUNN, Christopher. Brutalidade jardim - A
Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. Tradução: Cristina Yamagami. 1ª Edição. Editora UNESP, São
Paulo, 2009. 280 p.
GELÉIA GERAL
No
final da década de 1960, artistas brasileiros consolidaram um movimento
cultural divisor de águas conhecido como Tropicália. Atualmente, a música
inspirada por esse movimento tem recebido considerável atenção tanto no Brasil
quanto no exterior.
Poucos
novos ouvintes, contudo, conhecem a relação entre essa música e as
circunstâncias por trás de sua criação, a fase mais violenta e repressiva do
regime militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Com importantes
manifestações no teatro, cinema, artes visuais, literatura e especialmente na
música popular, a Tropicália articulou com dinamismo os conflitos e aspirações
de uma geração de jovens brasileiros urbanos.
Concentrando-se
em um grupo de músicos da Bahia, o brasilianista norte-americano Christopher
Dunn revela como artistas brasileiros incluindo Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Gal Costa e Tom Zé criaram esse movimento em sintonia com a vanguarda musical e
poética de São Paulo, a cidade mais moderna e industrializada do Brasil.
O
autor mostra como os tropicalistas se apropriaram seletivamente das práticas
culturais do Brasil e do exterior e as parodiaram para expor a fissura entre a
imagem idealizada do Brasil como um tranquilo "jardim" tropical e a
brutalidade vivenciada diariamente por seus cidadãos.
Prefácio
assinado pelo diretor do Teatro Oficina Zé Celso.
GELÉIA GERAL
Letra: Torquato Neto
Música: Gilberto Gil
Um
poeta desfolha a bandeira
E a
manhã tropical se inicia
Resplandente,
cadente, fagueira
Num
calor girassol com alegria
Na
geléia geral brasileira
Que o
Jornal do Brasil anuncia
Ê,
bumba-yê-yê-boi
Ano
que vem, mês que foi
Ê,
bumba-yê-yê-yê
É a
mesma dança, meu boi
A
alegria é a prova dos nove
E a
tristeza é teu porto seguro
Minha
terra é onde o Sol é mais limpo
E
Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora
na selva-selvagem
Pindorama,
país do futuro
Ê,
bumba-yê-yê-boi
Ano
que vem, mês que foi
Ê,
bumba-yê-yê-yê
É a
mesma dança, meu boi
É a
mesma dança na sala
No
Canecão, na TV
E quem
não dança não fala
Assiste
a tudo e se cala
Não vê
no meio da sala
As
relíquias do Brasil:
Doce
mulata malvada
Um LP
de Sinatra
Maracujá,
mês de abril
Santo
barroco baiano
Superpoder
de paisano
Formiplac
e céu de anil
Três
destaques da Portela
Carne-seca
na janela
Alguém
que chora por mim
Um
carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Hospitaleira amizade
Brutalidade
jardim
Ê,
bumba-yê-yê-boi
Ano
que vem, mês que foi
Ê,
bumba-yê-yê-yê
É a
mesma dança, meu boi
Plurialva,
contente e brejeira
Miss linda
Brasil diz "bom dia"
E
outra moça também, Carolina
Da
janela examina a folia
Salve
o lindo pendão dos seus olhos
E a
saúde que o olhar irradia
Ê,
bumba-yê-yê-boi
Ano
que vem, mês que foi
Ê,
bumba-yê-yê-yê
É a
mesma dança, meu boi
Um
poeta desfolha a bandeira
E eu
me sinto melhor colorido
Pego
um jato, viajo, arrebento
Com o
roteiro do sexto sentido
Voz do
morro, pilão de concreto
Tropicália,
bananas ao vento
Ê,
bumba-yê-yê-boi
Ano
que vem, mês que foi
Ê,
bumba-yê-yê-yê
É a
mesma dança, meu boi
Brutalidade jardim
A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira
Christopher
Dunn
São
Paulo: UNESP, 2009.
Tradução
de Cristina Yamagami.
por
Leon Kaminski
[Mestrando em História pela Universidade Federal
de Ouro Preto]
Publicado
em 2001, nos Estados Unidos, Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da
contracultura brasileira é fruto da descoberta da música
tropicalista pelos norte-americanos na década de 1990. Partindo do seu
encantamento pelas canções e da perspectiva dos estudos culturais, o brasilianista
Christopher Dunn escreveu uma história da Tropicália a partir de um recorte
temporal amplo, mesmo admitindo que o movimento tropicalista foi atuante
somente entre os anos de 1967 e 1969. A cronologia proposta por Dunn para tratar
da Tropicália tem início na Semana de Arte Moderna de 1922 e alonga-se até o
ano 2000.
O
título do livro destaca a ligação do movimento tropicalista com o modernismo; a
expressão “brutalidade jardim” foi
retirada de um romance de Oswald de Andrade, “padrinho literário e espiritual
da Tropicália”, e utilizada na letra de Torquato Neto para a música “Geleia
geral”. O autor utiliza a expressão para se referir, também, à realidade
brasileira após o golpe militar, que exploraría a imagem do paraíso tropical –
e as premissas ideológicas embutidos em seu uso – e a violência imposta pela
ditadura. Jardim e brutalidade coexistem, então, em uma aproximação
contraditória.
O
movimento tropicalista ficou famoso por suas polêmicas, por sua presença nos
festivais de canção, pelas vaias e por seus happenings. A maior controvérsia,
talvez, girou em torno do uso da guitarra elétrica na música popular pelo grupo
baiano e da reação da cultura engajada de esquerda, que criticava a Tropicália
por se posicionar contra a cultura popular nacional. Com o intuito de
reconstituir o contexto cultural da década de 1960, Christopher Dunn amplia seu
recorte, estendendo-o até os anos 1920. Partindo das análises de Alfredo Bosi
em relação ao modernismo, o autor traça duas importantes vertentes antagônicas
no pensamento brasileiro oriundas da Semana de 1922 e que estariam envolvidas
diretamente nas polêmicas em torno da música
popular
na segunda metade dos anos 1960. Nelas, Dunn se fixa nos três primeiros
capítulos do livro, realizando sua análise sobre a evolução histórica da
Tropicália. A dicotomia presente entre as duas orientações é trabalhada a
partir da tensão entre o local e o cosmopolita no interior do pensamento brasileiro.
O
primeiro capítulo explora principalmente
o modernismo no Brasil, que se dividiria em duas vertentes principais. A
primeira, “primitivista”, teria como referência a figura de Mário de Andrade e
conferia ênfase à busca das manifestações populares da cultura, principalmente
a rural, mais pura, pois a urbana era percebida como contaminada pelas modas
internacionais. Segundo a perspectiva de Mario de Andrade, seria necessário
valer-se dos elementos da cultura popular para criar uma música nacional
distinta; para efetivação de tal projeto, a definição do que era e do que não
era autenticamente brasileiro fazia-se mister, já que, para o escritor, a
música estrangeira ou “universal” era “antinacional”. A outra vertente, a
“futurista”, valorizaria a experimentação formal e tenderia a celebrar a tecnologia
e o urbano; sua principal referencia era Oswald de Andrade e seus manifestos, o
da “Poesia Pau-Brasil” e o
“Antropófago”.
Este segundo defendia a devoração do elemento estrangeiro a fim de criar-se
algo novo, autêntico, não simplesmente o acolhimento passivo, como um bom
selvagem, da cultura metropolitana. Já o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”
clamava por uma “poesia de exportação”, ao mesmo tempo enraizada nas culturas
populares locais e engajada nas tendências internacionais modernas, de forma
que o Brasil passaria também a exportar e não somente consumir cultura. Para
Dunn, essa “poesia de exportação” revelar-se-ia nas figuras de Carmen Miranda,
da bossa-nova, dos poetas concretistas e, mais recentemente, da Tropicália. Em
relação ao modernismo, o autor ressalta rapidamente, fora dessas duas
vertentes, o lançamento, progressista para a
época,
de Casa Grande & Senzala, de Gilberto
Freyre, e a difusão da ideia de “democracia racial” que se tornaria corrente
mais tarde.
Do
choque entre essas duas vertentes do pensamento cultural nasceria a famosa
rivalidade entre os nacionalistas e os tropicalistas. Apesar desta contenda já
ter sido amplamente explorada pela historiografia nacional, Christopher Dunn,
ao situar o início de sua narrativa na década de 1920, deixa mais explícitas as
raízes do conflito e amplia seu foco para outras questões que são exploradas mais
à frente, como a temática racial. E se lembrarmos que o livro inicialmente foi
escrito para o público norte-americano, essa abordagem adotada pelo autor adquire
maior relevo.
No
segundo capítulo, o autor aborda o
contexto cultural da década de 1960 e o surgimento do momento tropicalista. Os
desdobramentos do pensamento modernista “primitivista” teriam continuidade e
esta vertente se tornaria hegemônica no interior da esquerda, nesse período, pautándose
na defesa de uma estética nacional-popular centrada na figura do povo enquanto
conteúdo artístico e revolucionário. Dunn explora, como exemplos, a experiência
dos Centros Populares de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE),
antes do golpe de 1964, e as bases da resistência cultural ao regime militar
presentes nas peças de Augusto Boal e na música de protesto. O autor buscou
evidenciar que a Tropicália surgiu na esteira de um processo de modernização do
país, demonstrando que a base de formação do grupo baiano deu-se como fruto, de
certa forma, da experiência arrojada da Universidade da Bahia sob a direção do
reitor Edgard Santos, que visaria uma “desprovincialização cultural” do estado
e investiria fortemente na área das ciências humanas e nas artes, promovendo a
“avant-garde na Bahia”. Ainda nesse
capítulo, é abordada a tese, proposta e defendida por Caetano Veloso, da
retomada da “linha evolutiva da música popular brasileira”. Segundo o compositor,
a música brasileira experimentara uma crescente evolução que teria sido
interrompida, após a bossa-nova, pela estética nacional-popular que, debido aos
seus purismos, não permitiria a continuidade dessa evolução, estando a MPB estagnada
na segunda metade da década de 1960. Desta forma, a Tropicália visaria a
retomada dessa “linha evolutiva” por meio da experimentação e da modernização
da música brasileira.
No
terceiro capítulo, denominado
“Momento Tropicalista”, o autor ressalta que a Tropicália não se restringiu
somente à música, seu foco principal, mas estimulou
uma convergência de manifestações em diversas áreas artísticas, que possuíam
afinidades estéticas e valorizavam a experimentação e que vinham se formando
autonomamente até este momento de convergência, como o teatro Oficina, de José
Celso Martinez Correia, e a montagem de “O Rei da Vela” (peça de Oswald de
Andrade) e “Roda Viva” (de Chico Buarque); o cinema da Glauber Rocha, em “Terra
em Transe” e “Câncer”; e nas artes plásticas, com as obras de Rubens Gerchman e
Hélio Oiticica. Ao enfatizar esse movimento, o autor vai ao encontro das
análises mais contemporâneas sobre a Tropicália; entretanto, ele restringe seu
foco especificamente à música, privilegiando as figuras de Gilberto Gil, de
Caetano Veloso, e, em menor grau, de Tom Zé. No mesmo capítulo, Dunn retoma o
debate inaugurado por Roberto Schwarz sobre o caráter alegórico da arte
tropicalista, que a avaliava de forma negativa, considerando-a como uma
expressão artística da modernização conservadora do regime militar, pois, por
ela, os arcaísmos e anacronismos eram apreendidos pela “luz branca do
ultramoderno” e pelo uso da alegoria, sem avançar para uma resolução dialética
dessas contradições históricas. Abstendo-se de criticar diretamente essa
perspectiva, Dunn demonstra que apesar da alegoria estar presente em músicas
emblemáticas, ela não era predominante nas composições tropicalistas. Haveria
também a presença do pastiche que, diferentemente da alegoria – que pressupõe a
crítica –, é uma colagem que permanece neutra.
Assim, nem todas as canções que possuíam
justaposições de elementos arcaicos
e modernos tinham a intenção de denunciar a
realidade brasileira; muitas vezes
elas simplesmente expressariam estratagemas
estéticos que afirmavam essa
coexistência.
No capítulo
quarto, o autor explora a radicalização da Tropicália que resultou na
prisão e no exílio de Gilberto Gil e de Caetano Veloso. A “cruzada tropicalista”
– que no primeiro momento seria caracterizada pela exploração de uma estética kitsch, valorizando o cafona e
o “mau gosto” com o intuito de chocar e de satirizar os valores sociais e
políticos retrógrados, assim como o “bom gosto” e a seriedade da MPB – teria
incorporado, aos poucos, elementos da contracultura internacional que a levaria
a uma crescente radicalização. As apresentações musicais dos tropicalistas,
inicialmente mais contidas e ainda pautadas pela busca de reconhecimento, a
exemplo das que integraram o Festival da Record de 1967, que levaram Gil e
Caetano ao estrelato, se tornariam estrondosos happenings como a
apresentação de “É Proibido Proibir” no Festival Internacional da Canção de
1968. Para o autor, nos últimos momentos do movimento, a arte tropicalista, inspirando-se
nos movimentos internacionais da contracultura, buscava a afirmação da
marginalidade e da negritude – como se podia perceber pela cada vez mais
explícita influência de Jimi Hendrix e pelas vestimentas utilizadas por
Gilberto Gil.
No quinto
capítulo do livro, “Tropicália, contracultura e vínculos afrodiaspóricos”, é
abordado um dos principais temas motivadores da pesquisa do autor sobre a
Tropicália: a questão racial. Para Dunn, a grande importancia do movimento
deriva do fato de ele abordar temáticas afro-brasileiras em suas músicas e de
apoiar grupos que valorizavam a negritude. Essa temática, raramente abordada
nos estudos brasileiros sobre o tropicalismo ou a contracultura, compõe as
preocupações que permeiam o campo de conhecimento em que o autor está inserido,
no caso, os Cultural Studies norteamericanos.
Em sua leitura, Dunn ressalta a contracultura
como um ponto chave para a valorização da cultura e da identidade negra no
país. Caetano e Gil, exilados em Londres, de 1969 até 1972, teriam entrado em
contato com a música afro-caribenha, especialmente o reggae, com o rock and roll e com a cena
contracultural da swinging London, movimentos que influenciariam de forma significativa a música de
Gil. Na Bahia, o contato entre as práticas e os discursos da contracultura dos
jovens da classe média com a juventude negra da classe baixa colaboraria para o
surgimento e revitalização de grupos de música afro e para o crescimento do
carnaval de Salvador. Nos grandes centros urbanos, da exploração comercial de
ícones da música negra norte-americana surgiria, como o autor denominou, as
“contraculturas afrobrasileiras”, como o movimento cultural Black Soul, inspiradas diretamente os movimentos de consciência negra dos
Estados Unidos, apropriando-se do seu estilo visual e musical. Nesse sentido, a
juventude afro-brasileira teria passado a acolher produtos e ícones
estrangeiros para contestar a inclinação nacionalista da brasilidade que, por
meio da ideologia da “democracia racial”, tendia a minimizar a discriminação e
a desigualdade racial e a exaltar a mestiçagem. Desta forma, em sintonia com os
movimentos culturais afro-diaspóricos e da contracultura, teriam surgido
diversos trabalhos dos remanescentes do tropicalismo que valorizavam a cultura
negra, como, por exemplo, o álbum “Doces Bárbaros”, que reunia Gil, Caetano,
Gal Costa e Maria Bethânia, e o disco “Refavela”, de Gilberto Gil.
O sexto e
último capítulo é dedicado à herança tropicalista e sua redescoberta nos
Estados Unidos. Dentre seus legados, o autor ressalta a contribuição para uma
significativa dissolução das hierarquias culturais no Brasil, por meio da
aproximação da cultura de massa e da arte erudita no interior de uma produção
cultural híbrida. Christopher Dunn mostra também a recepção da música
tropicalista pelos norte-americanos na década de 1990 e como essa “redescoberta”
serviu de inspiração para vários artistas. Um fruto importante dessa nova onda
tropicalista seria o “resgate” de Tom Zé, não somente de sua obra, mas do
próprio artista, que, por sua persistência no experimentalismo musical, teria
ficado, por muitos anos, relegado ao esquecimento, à margem da indústria da
MPB, como uma espécie de “lado B” da Tropicália.
A grande contribuição do livro é lançar um novo
olhar – um olhar que parte de um novo ponto de observação – sobre o movimento
tropicalista.
Para o músico David Byrne, conforme texto apresentado na contracapa do livro, essa obra pode ser vista como “uma janela que se abre para uma versão alternativa do próprio passado norte-americano”; fica claro, portanto, que o livro foi pensado a partir de preocupações diferentes das do público brasileiro.
Edição 380 | 14 Novembro 2011
Fazer música: uma
prática de cidadania
Graziela
Wolfart
Na visão do
professor norte-americano Christopher Dunn, a canção brasileira é uma boa
indicação da diversidade do povo brasileiro
Estudioso da
música e da cultura brasileira, o professor Christopher Dunn percebe que
“além de tratar de temas políticos e sociais que têm a ver com a temática da
cidadania, a própria prática de fazer música, muitas vezes, sobretudo no Brasil
contemporâneo, é uma prática de cidadania”. Na entrevista que concedeu por
telefone para a IHU On-Line, ele afirma que “há uma tradição muito forte
na música popular brasileira de se apropriar de estilos e gêneros do exterior e
fazer com eles música nova. Podemos remeter isso à tradição antropofágica do
Brasil, de deglutir o que vem de fora e fazer algo novo”. E completa: “o Brasil
é um país completamente integrado na economia mundial e está muito ligado à
internet, sobretudo a classe média. Então não há dúvidas de que tais tendências
culturais globalizadas irão exercer uma influência muito forte sobre a cultura
brasileira”.
Christopher Dunn é professor de literatura e estudos culturais
brasileiros na Tulane University, de Nova Orleans, Estados Unidos. É autor do
livro Brutality Garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian
Counterculture (University of North Carolina Press, 2001) e coorganizador de
Brazilian popular music and globalization (Routledge, 2001). Atualmente
trabalha com a questão da contracultura dos anos 1970.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que a canção brasileira revela sobre as características de seu povo?
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que a canção brasileira revela sobre as características de seu povo?
Christopher Dunn – Há tantas dimensões na música popular brasileira
que é difícil resumir, mas acho que podemos dizer que a canção brasileira é uma
boa indicação da diversidade do povo brasileiro, porque é muito variada. Eu
acabo de terminar um livro sobre a música popular e a cidadania, que tem vinte
artigos, tanto de pesquisadores brasileiros como de americanos, e nossa
pesquisa revelou que há uma tradição na canção moderna brasileira de refletir
profundamente sobre a condição de cidadania no Brasil. Além de canções de amor,
que são muitas, há canções satíricas, humorísticas, e há também uma tradição de
fazer música sobre a sociedade e sobre a situação social do brasileiro. Mas
isso não é somente no Brasil, então se torna difícil distinguir precisamente
uma característica brasileira. É melhor ver simplesmente as tendências.
IHU On-Line – Em que sentido a canção é uma forma de exercer a cidadania?
IHU On-Line – Em que sentido a canção é uma forma de exercer a cidadania?
Christopher Dunn – Além de tratar de temas políticos e sociais que têm
a ver com a temática da cidadania, a própria prática de fazer música, muitas
vezes, sobretudo no Brasil contemporâneo, é uma prática de cidadania. Como, por
exemplo, o movimento hip hop, em São Paulo, que é um verdadeiro movimento
social, que envolve a comunidade, que busca trabalhar com jovens que estão em
risco. O mesmo se pode dizer sobre o grupo Afro Reggae , do Rio de Janeiro, que
é um grupo cultural, mas também tem um papel social muito importante na
comunidade das favelas do Rio de Janeiro. A mesma coisa pode ser dita sobre o
movimento dos blocos afro, que desde os anos 1970, na Bahia, em Salvador,
funcionam como uma espécie de movimento social muito voltado para questões de
cidadania e acabam envolvendo pessoas que não têm nada a ver com música em si,
mas que têm mais a ver com outras atividades, sempre voltadas para questões de
consciência social, política e racial. Com isso procuramos ver a música popular
como uma espécie de exercício de cidadania, tanto do ponto de vista de canções
e músicas que tematizam essa questão como de movimentos ou grupos culturais que
funcionam com essa prática.
IHU On-Line – O que caracteriza a canção durante o movimento Tropicália?
IHU On-Line – O que caracteriza a canção durante o movimento Tropicália?
Christopher Dunn – Com a Tropicália há uma tentativa de
redimensionar a canção brasileira de forma totalmente híbrida e, por que não,
pós-moderna, no sentido de que, em vez de desenvolver um estilo próprio, como a
Bossa Nova , produziu um som muito baseado na estética do pastiche. A estética
do pastiche é justamente citar, sem necessariamente parodiar, uma variedade
muito grande de sons. Existem aí citações de rock, de músicas
latino-hispano-americana, de música nordestina, a bossa nova, o samba. A
característica fundamental da Tropicália é justamente essa flexibilidade, esse
trânsito entre vários sons e vários estilos, sem propor um estilo próprio e
novo. É justamente essa multiplicidade da Tropicália à justa posição de sons,
estilos e referências que é a característica principal do movimento.
IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre a música popular brasileira e a globalização?
IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre a música popular brasileira e a globalização?
Christopher Dunn – Há uma tradição muito forte na música popular
brasileira de se apropriar de estilos e gêneros do exterior e fazer com eles
música nova. Podemos remeter isso à tradição antropofágica do Brasil, de
deglutir o que vem de fora e fazer algo novo. Vemos isso desde o samba, no
início dos anos 1920, apesar de ser totalmente enraizado nas tradições
brasileiras, até a bossa nova, que foi uma maneira de trabalhar com alguns
aspectos do jazz norte-americano. A Tropicália é um exemplo disso. Podemos ver
também o rock brasileiro dos anos 1980, o movimento Mangue Beat, que está
totalmente inserido dentro de um contexto internacional de música popular, e o
movimento rap. O Brasil é um país completamente integrado na economia mundial e
está muito ligado à internet, sobretudo a classe média. Então, não há dúvidas
de que tais tendências culturais globalizadas irão exercer uma influência muito
forte sobre a cultura brasileira.
IHU On-Line – Qual a principal contribuição da canção para as transformações culturais de um país? Qual a especificidade brasileira nesse caso?
IHU On-Line – Qual a principal contribuição da canção para as transformações culturais de um país? Qual a especificidade brasileira nesse caso?
Christopher Dunn – Não sei se a canção é o motor transformador de uma
cultura, ou se é um reflexo de transformações culturais que estão em curso, ou
ainda se se trata de uma relação dialética, com movimentos pelos dois lados. Os
tropicalistas encararam as transformações do Brasil que decorreram da ditadura
e da implantação e instauração de um regime de modelo de modernização
autoritária e que produziu ou exacerbou algumas contradições dentro da
sociedade. Mas, ao captar, também conseguiram de alguma forma transformar a
cultura brasileira e propor novos modelos de entender a sociedade. O mesmo
ocorre em relação a esses grupos mais contemporâneos que, respondendo ao recuo
do Estado em relação à participação social, as comunidades muito
marginalizadas, praticamente excluídas do Estado, começaram a trabalhar a
cultura como uma forma de exercer a cidadania. Essa foi uma resposta às
condições materiais, sociais da sociedade durante a época posterior à ditadura,
depois dos anos 1980. Esses grupos acabaram tendo uma influência muito grande
sobre a forma como os brasileiros entendem sua condição social. É um reflexo
que acaba também captando um processo, dessa forma transformando a sociedade
ou, pelo menos, transformando nossa percepção da sociedade.
IHU On-Line – Como a música brasileira é vista no exterior?
IHU On-Line – Como a música brasileira é vista no exterior?
Christopher Dunn – Com muito interesse, muita fascinação, muita
alegria. A música brasileira sempre terá um público no exterior muito grande.
Não posso falar muito de outros países. Sei que em quase todos os outros países
há pessoas que apreciam a música brasileira, sobretudo na Europa e nos Estados
Unidos. Aqui nos Estados Unidos, já há uma tradição bem estabelecida, desde a
bossa nova. Depois tem o caso de Milton Nascimento , que foi muito apreciado.
Já no final dos anos 1980, o surgimento de um fenômeno muito curioso aqui no EUA,
chamado de World Music, mostra um interesse em música popular de outros países.
E o Brasil estava envolvido com isso. Quase todas as cidades grandes aqui no
país têm suas próprias escolas de samba, todas as cidades grandes ou mesmo as
medianas, têm escolas de capoeira, em que se canta música popular brasileira.
Meu filho, que tem 6 anos, está fazendo capoeira com um grupo do Paraná e estão
aprendendo a cantar as cantigas de capoeira. É mais uma forma de a música
popular brasileira circular nos Estados Unidos.
DIARIO DO NORDESTE
10/06/2017
Um olhar gringo sobre a Tropicália
O pesquisador norte-americano
Christopher Dunn faz uma análise crítica do movimiento
por Iracema Sales - Repórter
Capa do disco ou "Tropicália Panis et Circencis", ícone do movimento que transformou não apenas a música, mas a cultura brasileira em diferentes aspectos
|
O dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina e que dirigiu a peça "O rei da vela" - espetáculo considerado importante por ter inspirado tropicalistas.
|
Glauber Rocha, cujo "Terra em transe" também inspirou transformações.
|
Um
olhar gringo sobre a Tropicália. Grosso modo, assim pode ser definido o estudo
do pesquisador norte-americano Christopher Dunn, condensado no livro
"Brutalidade Jardim - A Tropicália e o surgimento da contracultura
brasileira" (tradução de Cristina Yamagami).
A capa da edição brasileira traduz visualmente o título da obra, ao fazer referência ao psicodelismo, aparecendo em primeiro plano uma tarja simulando alto relevo, em papel-lixa, de cor sombria, retratando plasticamente o cenário brasileiro da época, no qual a juventude dividia-se entre a luta armada e o desbunde.
A
frase-título "Brutalidade jardim", foi tirada da música "Geleia
Geral" - hino-manifesto do movimento, de autoria do poeta Torquato Neto.
Nos versos, o compositor desfaz a ideia de "paraíso tropical",
denunciando, de maneira subliminar, a repressão que passou a fazer parte do dia
a dia da população, naquele então Brasil embalado pelo ufanismo dos anos 1950,
e a ideologia do nacional-popular defendida pelos jovens utópicos do Centro
Popular de Cultura (CPC).
Entidade
de uma organização cultural de esquerda, de abrangência nacional, foi fundada
em 1962, tendo à frente a União Nacional dos Estudantes (Une), durante o
governo João Goulart (1918-1976), cujo mandato vigorou de setembro de 1961 a
março de 1964.
"O
golpe levou a um regime militar autoritário e pró-capitalista, marcando o fim
do experimento democrático do Brasil entre 1945 e 1964", revela o autor,
completando que "as energias utópicas do experimento do CPC foram
transferidas para novas arenas". Uma delas, a Tropicália, que prometia ter
a senha de entrada em um mundo sem patrulhas ideológicas, capaz de unir luta e
prazer, numa verdadeira catarse.
Dividida
em seis capítulos, a obra mostra que a coragem foi o principal elemento a
impulsionar a criação de um dos mais significativos coletivos artísticos do
País, forma de organização ressurgida no século XXI. A interação de linguagens
propostas pelo movimento, que pregava "um som universal", cujo nome é
tirado da canção "Tropicália", de Caetano Veloso, buscou inspiração
em uma instalação do artista visual carioca, Hélio Oiticica.
Esse
espírito de abertura e liberdade marcou o movimento, que, apesar de reciclar
valores da cultura nacional, não era purista. Ou seja, estava aberto a
manifestações consideradas alienígenas, como a contracultura, acolhendo desde o
som refinado da bossa nova aos acordes dissonantes dos Mutante e às guitarras
que chegavam tocadas pelas mãos de garotos que diziam "amar os Beatles e
os Rolling Stones", representando a Jovem Guarda.
E foi
em meio a essa "geleia geral" que vigorou, por menos de três anos, a
Tropicália, esbanjando coragem e ousadia. Carnavalizou a cultura brasileira e
mostrou possibilidades de misturar a "linha evolutiva da música popular
brasileira" com outros sons, a exemplo do reggae, rock, soul e outros
hibridismos.
Conforme
o pesquisador, mais tarde, Caetano diria que a Tropicália promovia um
"nacionalismo agressivo" em oposição ao "nacionalismo
defensivo" da esquerda anti-imperialista. O movimento também serviu para
mostrar a face contestadora do Nordeste, jogando por terra o estereótipo de
lugar do atraso. Foi da região que saíram os idealizadores da Tropicália.
"Na
década de 1930, vários escritores modernistas com interesses regionalistas e
social-realistas representaram o Nordeste rural como um local de nostalgia por
um mundo patrimonial perdido para a modernização e urbanização, ou como um
local de abjeta pobreza e injustiça levando à revolta social".
Depois,
o CPC veio ajudar a desconstruir essa faceta, cabendo então aos tropicalistas
completarem o novo retrato da região, que é também moderna e urbana.
Meio
século
O
equilíbrio crítico marca o estudo, que passa em revista o que o autor denomina
"movimento de renovação estética da música e da cultura brasileiras
liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil" que, neste ano, completa meio
século de criação. O distanciamento histórico-temporal possibilita a percepção
do legado do movimento até hoje para a cultura brasileira.
"O
projeto tropicalista manifestou-se durante um período de intensos conflitos
políticos e culturais no Brasil, criticando simultaneamente o governo militar e
o projeto nacional-popular da esquerda brasileira", analisa Dunn, que
aponta duas obras importantes que encorajaram os tropicalistas a lançar os
cânones do movimento: "Terra em transe", de Glauber Rocha, e a
produção de "O rei da vela", no teatro Oficina, dirigido por José
Celso Martinez Corrêa.
As obras denunciam os
paradoxos do movimento, uma vez que Glauber Rocha se identificava com o
trabalho realizado pelo CPC; enquanto José Celso era menos ortodoxo quanto ao
posicionamento político da esquerda da época.
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