2009
Revista CULT
n° 135 - Ano 12
Maio de 2009
Página 14
Revista CULT
n° 135 - Ano 12
Maio de 2009
Página 14
ENTREVISTA – CAETANO
VELOSO
O pensamento na canção
Com disco novo na praça, Caetano desmente o fim da
canção, fala de política, filosofia e afirma que o Brasil desenha mesmo o
futuro do mundo
Francisco Bosco e Eduardo
Socha
Para Caetano, não há equívoco: o Brasil é “algo que
desenha mesmo o futuro do mundo”. Que essa constatação não se torne, porém,
motivo exclusivo de entojo nem de euforia. Podemos sim esbravejar contra nosso
circo de mazelas políticas, manter a atitude melancólica e crítica diante da
“brasilianização do mundo”, e ao mesmo tempo conviver com o regozijo de nossas
conquistas e transformações nas últimas décadas. A ambiguidade que domina essa
postura parece ser o motor fundamental de uma esperança (por mais residual que
seja) calcada na lucidez e na responsabilidade de uma crítica propositiva, que
não teme um certo messianismo em suas intenções: “Eu não sou religioso. Mas
desejo mudanças do tamanho de milagres. Isso não me parece necessariamente
irrealista”, diz Caetano ao comentar seu interesse pelas teses de Roberto
Mangabeira Unger.
Mas é dentro da canção popular – forma artística
tão “velha como a humanidade” – que Caetano pretende dar o recado. Mantendo a
coerência de seu permanente “nado contra a maré”, de sua revolta sutil contra o
estabelecido impulsionada a partir do próprio estabelecido (incluindo até mesmo
aquele da intelligentsia nacional que continuamente lhe cobra
coerência), o novo disco de Caetano parece confirmar sua aspiração a uma
coexistência de gêneros, à pluralidade cultural e à reinterpretação de
diferentes tradições da canção popular, o que fica implícito já no subtítulo “transambas”.
Pois se, como resumiu o professor e crítico Celso Favaretto (em entrevista dada
à Cult há alguns anos), “Caetano Veloso é o pensamento na canção”, isso tem a
ver com o fato de que sua música aponta para a necessidade de uma contínua
reflexão formal sobre si mesma. Nesse processo autorreferencial, a música de
Caetano consolida, por fim, um gesto artístico e crítico que transborda os
limites da própria canção.
CULT – Em seu blog, você se mostra encantado
pela influência de São Paulo e procura até mesmo esterilizar todo juízo de
valor relacionado à força dessa influência, quando coloca lado a lado o Museu
da Língua Portuguesa, a Sala São Paulo, a Daslu e o restaurante Fasano. Por que
São Paulo não aparece em suas novas canções?
Caetano – Porque moro no Rio e
passei todo o ano de 2008 no Rio, construindo o repertório do novo disco. É um disco
carioca de nascença e de formação. Fala de lugares e pessoas do Rio. Sempre
tenho saudades de São Paulo. E me orgulho muito de ver a força da cidade se
afirmando cada vez mais. Você está certo em notar que é significativo que o
Fasano e a Daslu apareçam ao lado do Museu da Língua Portuguesa e da Osesp.
Várias pessoas no blog protestaram, como se eu tivesse dito uma
blasfêmia. Mas o momento de percepção da força não é o momento do julgamento
moral ou político. A visão que inclui o Fasano é da mesma natureza da visão que
surge em “Sampa”. Acho tolice pensar que maculei meu texto sobre São Paulo por
incluir conseguimentos empresariais marcantes, mesmo que envolvam denunciadas
ilegalidades. Desejo é passar mais tempo em São Paulo e, mesmo sem isso, escrever
músicas em que coisas e climas da cidade apareçam.
CULT – Há muito afeto dedicado ao Rio nas letras e
na ambientação sonora deste último disco. Por outro lado, comparado àquilo que
você fala de São Paulo, tem-se a impressão de que o Rio está passando por um
grande deficit de autoestima. É só impressão?
Caetano – Não é só impressão. Embora
eu preferisse não usar aqui a expressão “deficit de autoestima”. O Rio passa
por longa ressaca da perda do status de capital e enfrenta gradativa
relativização do status de centro cultural do país. Baianos entendem
muito disso. Mas a autoestima arraigada na formação dos cariocas não se desfaz
facilmente. Ela se conflitua, perde o relaxamento, mas estamos longe de poder
falar em deficit.
CULT – Um dos filósofos mais debatidos no mundo
hoje é Slavoj Zizek, a respeito do qual você disse, em seu blog: “não penso
como Zizek mesmo!”. Você poderia explicar em que consiste essa divergência
exclamativa?
Caetano – Talvez a exclamação se
devesse ao contexto da discussão daquele momento. Zizek é pop. Ele
também é um intelecto superexcitado e tem erudição em várias áreas. Ampara-se
em Hegel e Lacan para louvar Matrix, filme que, para mim, é um abacaxi
de caroço. Ele gosta desses esquemas que dizem que somos sempre manipulados.
Quanto mais claro pensamos, mais presos estamos a ideologias que camuflam
interesses. Zizek tem o charme de falar no que a esquerda em geral evita
mencionar: ele prefere ter algo positivo a dizer sobre as paradas fascistas da
Coreia do Norte do que fingir que não as vê. Eu li Bem vindo ao deserto do
real, um livro curto, e In defense of lost causes, um grosso volume.
Ele convoca Robespierre, Lênin e Mao e exalta a revolução violenta. No fim, ele
elege a causa ecológica como a escolha certa da esquerda para exercer o terror.
Eu tinha lido um artigo de Nelson Ascher na Folha
predizendo isso. Na altura, achei o artigo de Ascher reacionário e algo
simplista. Ao ler a conclusão de In defense of lost causes, achei que
Ascher tinha razão. Para Zizek, toda crítica à liberdade de expressão nos
países comunistas é mera tramoia liberal burguesa. Além disso, ele grila com o
café descafeinado. Qual o problema? Café não é cafeína. Nesse caso, ele faz uso
indevido das palavras. Bem, além desses dois livros, li artigos esparsos e vi
dois documentários americanos sobre ele (lá nos States, passa no cinema e tudo:
ele é uma estrela). Num, segue-se uma turnê de palestras. No outro, vê-se Zizek
comentando filmes. Assisti à palestra dele na UFRJ. Ele é um cara enérgico,
engraçado, sua muito e pronuncia todas as letras das palavras inglesas – com a
adição de um cicio. Resulta simpático. Achei irresponsável ele dizer aquelas
coisas a um bando de jovens brasileiros. Mas acho que a exclamação no meu
comentário se deve a ele ter falado mal do Carnaval.
CULT – Você parece manter uma relação de amor e
ódio com a USP, reconhecendo a importância política (incluindo aí FH e Lula)
mas tratando o pensamento uspiano como aquele que queria se livrar do Brasil.
Existe ainda função política ou “civilizacional” da universidade?
Caetano – Percebi cedo em São Paulo
as oscilações entre querer livrar-se do Brasil, querer salvá-lo ou querer
alcançá-lo em sua brasilidade. Muitas vezes a inveja, o desprezo e a
condescendência se mesclam numa mesma pessoa. Não acho que a USP seja exemplo
do desejo de se livrar do Brasil. Não foi o que eu escrevi no blog.
Todas as nuances dessa particularidade paulista se encontram na USP (e a
particularidade descrita não representa o todo da relação de São Paulo com o
resto do país). Mas a “brasilificação do mundo” não significa a mesma coisa
para José Miguel Wisnik e para Paulo Arantes. Oswald de Andrade e Haroldo de
Campos não significam a mesma coisa para Roberto Schwartz e para Leyla
Perrone-Moisés. Se lêssemos a Folha de S. Paulo entre os anos 1980 e 90,
sentiríamos que a USP dominava a imprensa, era seu núcleo crítico. Ainda hoje o
adornianismo impera até em cadernos de rock’n’roll para adolescentes. O que é a
ironia das ironias.
Assim, os neoconservadores (com todas as grossuras
que lhes são características) brilham como um grupo contrastante em ambiente
dominado. Não nos enganemos: não estamos falando da USP, mas de uma certa
esquerda desenvolvida na USP. Pois há conservadores na USP, inclusive
convidados a preencherem as janelas de direita que os jornais descobriram que
precisavam abrir. A reação é mais geral: é contra a hegemonia da esquerda.
Natural que, sobretudo em São Paulo, algum jornalista se anime a falar em
“esquerdopatas da USP”. Eu acho esse tom cafajeste sem graça porque é
superficial. Não apenas esse período FH-Lula não seria possível sem a esquerda
uspiana: a universidade tem tido e ainda terá grande papel a desempenhar
no nosso amadurecimento político e civilizacional.
CULT – Mas existe motivo para a antipatia?
Caetano – A razão de minha birra com
o que chamo de USP está descrita pelo próprio Fernando Henrique na conversa com
Mário Soares [ex-primeiro-ministro de Portugal]: FH conta que, como
sociólogo, ele tinha se oposto a Gilberto Freyre, mas que o exercício da
presidência o tinha levado a rever seu julgamento. Como eu gosto de Gilberto
Freyre sobretudo por suas consequências políticas (as consequências históricas
do mito luso-tropicalista se tornaram mais palpáveis a FH quando ele teve de
enfrentar o Brasil real), considero a crítica que o ex-presidente sustentava
antes aquém da intuição mais lúcida do significado da experiência brasileira. E
toda teimosia em manter os termos dessa crítica hoje me parece caricatural. FH
deu uma desmunhecada quando se abriu vaidosa e descuidadamente para João
Moreira Salles na revista Piauí. Lula em geral está além, e não aquém,
da intuição luso-tropicalista. É um presidente que soa sempre eufórico e
deslumbrado. Mas há algo real no móvel do deslumbramento de Lula. A USP é top
de linha na vida acadêmica brasileira. Ainda tem muito a dar. Mas a vida
acadêmica brasileira terá de mudar muito – e espero que isso venha como
consequência de alguma inspirada revolução no ensino básico. Mas entenda que eu
próprio não sou luso-tropicalista: a escolha da anedota de FH versus Freyre foi
apenas paradigmática.
CULT – O filósofo Paulo Arantes fala da tendência
sociológica que vê hoje a “brasilianização do mundo”, ou seja, a exportação do
nosso modelo social de favelização, precarização do trabalho, distanciamento
maior entre centro e periferia e também do nosso jeitinho para negociar com a
norma. Para essa tendência, o Brasil virou o país do futuro, mas de um futuro
nada romântico. Em “Falso Leblon”, por outro lado, você pergunta
melancolicamente “o que faremos do Rio quando, enriquecendo, passarmos a dar as
cartas, as coordenadas de um mundo melhor”. Que mundo seria esse, inspirado
pelo Brasil?
Caetano – O Brasil não corresponde,
quando o olho com lucidez, à visão que Paulo Arantes tem dele. No início do
século 20, você lê a comparação feita por Lima Barreto entre o Rio e Buenos
Aires. Antes disso, você lê em toda parte que as universidades e a imprensa
chegaram aos países hispano-americanos séculos antes de chegarem ao Brasil. No
entanto, hoje eu tenho às vezes de ser condescendente com argentinos que sentem
despeito da arrancada brasileira. E Machado e Euclides chegaram aonde
chegaram. E Guimarães Rosa. E João Gilberto, Jobim, Niemeyer, Pelé, Chico
Buarque. Partimos de um país selvagem, inculto, de cidades sujas, cheias de
negros ex-escravos e mestiços desrespeitados. As mudanças que tenho visto desde
a minha adolescência são muito rápidas e muito grandes para que os mais
letrados entre nós só repitam que não andamos. É loucura.
Mas sem crítica e sem lamentos tampouco se anda.
Então está bem. Mas alguém precisa alertar para os conseguimentos, senão não há
responsabilidade. O que se ouve em “Falso Leblon” é algo que pode se dar ao
luxo de ser dito em tom melancólico: não precisa de euforia. Um solitário
entristecido pela visão de uma bela jovem degradada pode meditar sobre o
possível enriquecimento e fortalecimento do país onde nasceu e vive. Jorge
Mautner diz que “ou o mundo se brasilifica ou vira nazista”. Eu sou diferente
de Mautner, mas também o amo muito por dizer isso. Nosso “jeitinho para
negociar com a norma” talvez contenha mais elementos do que sonha a sociologia
de Arantes. Nenhum país real produz um futuro real que seja o que hoje podemos
chamar de “romântico”. Se o futuro que o Brasil esboça é desde já criticável, é
sinal de que já estamos longe de poder simplesmente rir do livro de Stefan
Zweig. E que o Brasil já é visto como algo que desenha mesmo o futuro do mundo.
Eu não estou tão convencido, apesar de Arantes e
seus colegas anglófonos catastróficos. Há europeus continentais (é o caso de um
italiano que escreveu “Hedonismo e medo”) que veem o Brasil como modelo para o
futuro do mundo – para o bem e para o mal. Mais para o bem, já que o “jeitinho
para negociar com a norma” é visto por eles como um modo interessante (e
misteriosamente promissor) de metabolizar os males sociais.
CULT – Você foi uma das pessoas no Brasil a chamar
a atenção para o pensamento de Roberto Mangabeira Unger. No livro O que a
esquerda deveria propor?, o atual Ministro defende um pensamento
alternativo de esquerda, para além da nostalgia e da social-democracia. O que
mais te atrai nessa proposta?
Caetano – Lendo Mangabeira, senti
que gente como ele pode elaborar o que eu não poderia senão sonhar. Sempre me
interessei por alguma coisa que supere o estágio a que chegamos na história
humana. Sou artista, me sinto no direito de não fazer por menos. Zizek, que,
erroneamente, contrapõe sua preferência por Chávez ao apoio a Lula dado por
Toni Negri, menciona Mangabeira de raspão entre os pensadores de esquerda que
tentam pensar algo novo. Pois bem, requentar Stalin e Khomeini para se mostrar
valente diante da lucidez liberal não me parece novo. É louvar a velha
sangueira que produz opressão. Mangabeira vai fundo na análise do conceito de
“capitalismo” em Marx, por exemplo, para chegar a propor grandes transformações
que prescindam da guerra. Isso para mim é novo. É sonhar com mudanças que mudem
mesmo. Eu já sonhava isso para o Brasil antes de conhecer o professor [e
filósofo português] Agostinho da Silva. Ler Mangabeira, com essa
perspectiva, apoiando Brizola quando eu apoiava, Ciro Gomes quando eu apoiava,
me fez repetir o nome dele por mais de uma década para uma imprensa que se
recusava a publicá-lo. Há algo de religioso em tudo isso. A aposta dele, como a
de Agostinho, é num milagre. Eu não sou religioso. Mas desejo mudanças do
tamanho de milagres. Isso não me parece necessariamente irrealista.
CULT – O mandato de Lula termina no ano que vem. Em
2006, em entrevista à CULT, você disse que, embora o achasse mítico e
simpático, não votaria na sua reeleição de jeito nenhum. Você acha que o “esse
é o cara” do Obama mostra apenas que Lula é um mito que ultrapassou fronteiras
ou acha que isso sinaliza uma transformação geopolítica maior?
Caetano – Obama se espelhou em Lula.
Até “boa pinta”, que ele é, mas Lula não, rolou na fala. Mas esse espelhamento
não teria permissão para se declarar se não conviesse ao poder americano que
Lula fosse agraciado com elogios. Há transformação. Lula e Obama a
simbolizam bastante bem. E a crise dá espaço para hipóteses ambiciosas. Ou meramente
catastróficas. Mas o Brasil que saiu da era das ditaduras, com a abertura do
mercado efetivada por Collor – e que passou pela globalização nas mãos de
Fernando Henrique e Lula – é um país com maior peso internacional. Vi ontem Anabasys,
o belo filme sobre a feitura de A Idade da Terra, e nele ouvi Glauber
xingar Delfim Neto. Glauber o faz de um ponto de vista da esquerda estatista
que ele representava ao apoiar Geisel (corretamente lido como um
estatista-nacionalista que faria a abertura), embora a esquerda o atacasse por
apoiar um presidente militar. Hoje Lula ouve conselhos de Delfim, a quem faz
elogios.
Lula vive a euforia de ver o amadurecimento
econômico do país acompanhado de um crescente prestígio das coisas brasileiras
aos olhos do mundo. Nisso eu me identifico mais com ele do que com seus
críticos. À esquerda ou à direita. Embora eu seja mais cético e, em comparação,
um tanto melancólico. Sua chegada ao poder, a de um operário iletrado, é um
êxito enorme na Europa desde o começo. Durante a crise do mensalão, vi reações
de proteção a Lula na Itália e na França, mais até do que entre petistas
brasileiros. Lula é figura internacional. Obama reafirmou isso. Os Estados
Unidos precisam de um Lula forte e um Chávez negociador. Ninguém é burro nessa
turma. Votei em Lula chorando de emoção. Nunca me arrependi de tê-lo feito.
Acho que ele se sente capaz de aproveitar o plano real de FH, o milagre
brasileiro de Delfim/Médici, a industrialização de Juscelino (que, aliás,
tornou possível seu surgimento) e o populismo getulista. Nunca antes neste
país.
Mas nunca desejei que Lula se reelegesse. Nem
desejo que ele eleja Dilma e volte em seguida. Aliás, em minha impaciência,
votei contra (e torci contra) a reeleição de FH e de Lula. Achei que 16 anos de
esquerda uspiana no poder seriam demais. Mas até que o resultado é, para nossos
parâmetros, bastante bom. Mesmo porque, mal chegam lá, eles se veem longe da
visão que os engendrou como figuras políticas fortes. Muitas vezes se chama de
traição a simples evidência de amadurecimento. Odeio políticas antiquadas de
favores, corrupção e fisiologismo, odeio mensalão também – mas não desprezo a
aproximação entre Lula e Delfim, nem entre FH e Toninho Malvadeza [o
ex-senador ACM]. No primeiro caso, era preciso chegar lá – e nenhum
presidente não petista poderia ter um economista da ditadura, apoiador do AI-5,
em posição de guru. No segundo, às vezes só se supera um quadro arcaico
confundindo-se com ele e, astuciosamente, desconstruindo-o. No final do governo
FH, ACM, Jader Barbalho e Sarney pareciam figuras superadas. Voltaram com tudo
na era Lula. Mas Lula tem força própria e uma vaidade histórica do tipo que me
parece útil agora. Pareço dizer loucuras? Mas se sua pergunta já começa com
aquela do Paulo Arantes…
CULT – O que pensa da proposta de alteração da lei
Rouanet? Ela de fato impulsiona o dirigismo estatal na cultura? Que implicações
dessa mudança você veria, em particular, na produção musical?
Caetano – Sinceramente, nunca pensei
a lei Rouanet do ponto de vista da música popular. Sempre considerei o negócio
da música muito bem-sucedido no Brasil. Não parecia precisar de incentivos
maiores do que os que já tinha. A área que me vem à mente logo que se fala em
lei Rouanet é a do cinema. Quando da tentativa de se instaurar a ANCINAV [Agência
Nacional do Cinema e do Audiovisual], eu reagi vigorosamente. Toda a força
que o cinema brasileiro ganhou desde que se livrou da política assassina de
Ipojuca Pontes, ministro de Collor, se deveu à lei Rouanet. E, depois, à lei do
audiovisual. Não tenho talento para acompanhar tecnicalidades jurídicas. Mas
naquela altura, era nítida a tendênca dirigista. Até sugestão de que as obras
estivessem de acordo com as políticas de governo (mormente o projeto Fome
Zero!) constava do documento. Desta vez, noto que o ponto mais criticável da
proposta é o desaparecimento da cláusula que desautorizava julgamento subjetivo
do valor artístico, político ou moral da obra. Também a insinuação de que os
trabalhos passariam, em certa medida, a pertencer ao Estado dentro de um
determinado prazo. A caracterização do poder executivo (o Ministério da
Cultura) como coprodutor é incorreta e suspeita. Não creio que Juca [Juca
Ferreira, ministro da Cultura] seja um dirigista. Ouço-o falar e acredito
nele. Mas leis são feitas para serem usadas por governos sucessivos. Não pode
haver brecha para dirigismo. E esse novo projeto é muito vago em tudo o mais,
dependendo de futuras decisões a respeito de detalhes importantes. Mas, como da
outra vez, acho que o bom-senso prevalecerá. Naquela ocasião foi o próprio Lula
quem cortou o mal pela raiz. Antes disso, eu fui pessoalmente agredido na
revista Carta Capital por ter feito coro aos protestos de cineastas.
Passei a chamar a Carta Capital de “a Veja do Lula”. Mas Lula
driblou as ingenuidades do projeto da ANCINAV. Agora não é caso para ele entrar
diretamente na briga. Mas Juca deve ouvir a queixa dos produtores.
CULT – Seu trabalho anterior, Cê, é um disco
de rock. Antes dele, A foreign sound trazia canções estadunidenses, por
meio das quais você pensava as relações entre a música do Brasil e a dos EUA.
Agora você apresenta um disco, zii e zie, com a noção de transamba.
Por que dedicar um pensamento cancional ao samba, nesse momento? Há alguma
razão cultural, histórica nesse interesse? E como você entende essa noção de
transamba?
Caetano – Eu só fiquei com vontade
de pegar umas maneiras bem simplificadas de tocar samba no violão (a partir de
umas estilizações que Gil fazia – e que eu usei em “Madrugada e amor” e
“Eleanor Rigby”) e levá-las para a banda de rock que armei com Pedro Sá pro Cê.
Fui compondo já pensando nisso. Como era uma espécie de reprocessamento de
elementos rítmicos do samba, me ocorreu a palavra transamba para
apelidar o lance. O Marcos Moran já tinha usado essa palavra num disco dos anos
70 [Transamba, 1973]. Mesmo assim, mantive a palavra na capa do disco
(nunca foi pensada para ser o título). Agora, a motivação histórica eu não sei.
O samba é tema perene para quem lida com música no Brasil. Mas não posso deixar
de notar que esse disco sai num período em que muita gente grava samba. Há
também uma fagulha rebelde: samba e rock são as áreas mais protegidas
criticamente e as que mais autorrespeito exibem – mexer nesses santuários
me excita.
CULT – Seu disco comprova que a canção permanece um
campo aberto para a reflexão sobre a própria linguagem musical. Mas a canção
também aparece como lugar para declarações políticas (mais visível na
declaração sobre Osama e Condoleeza em “Diferentemente”, sobre Lula e FH em
“Lapa”, e na pancada monocórdica de “Base de Guantánamo”). Apesar disso, você
concorda com um certo esgotamento do potencial estético e também político da
canção?
Caetano – Sou um apaixonado da
canção. Meu amor imenso por João Gilberto vem de perceber que ele é o
conhecedor profundo do espírito da canção. A cultura pop, tal como a
conhecemos, com a canção e o cinema na frente, é algo que chegou ao ápice no
século 20. As transformações tecnológicas, políticas e econômicas por que
estamos passando esboçam um novo quadro. Chico Buarque comenta que alguém –
creio que um italiano – chamou sua atenção para o declínio da forma canção,
comparando-a à ópera no século 19. Além disso, Chico se impressionou, com razão,
com o fenômeno do rap, que surgiu como a música de protesto escrita diretamente
pelos que estão à margem das áreas dominantes da sociedade, e não por
compassivos garotos de classe média. Sou mais pop do que Chico, então
vivi esse entusiasmo no início dos anos 80 (por causa do filme Beat Street
escrevi “Língua”, música que, na própria letra, se intitulava “samba-rap”,
profetizando o que Marcelo D2 faria mais de uma década depois).
Passados tantos anos, cansei da insistência na
ostentação de carros, joias, mulheres como objetos de luxo, desaforos raciais,
namoro com chefetes do tráfico: vi essa cultura influenciar os garotos de Santo
Amaro (minha cidade natal) e de Guadalupe (bairro de minha infância no Rio) e
tendi a perceber fragilidade na política desse gênero de expressão. Mas sempre
soube que julgamentos políticos de obras artísticas não funcionam. Então, além
de o rap me interessar formalmente (adoro as batidas que enganam a expectativa
rítmica do “suingue”, ou as divisões dos vocais canto-falados que executam
drible igual), acho que o interesse conteudístico de suas manifestações está na
poesia que nasce dessas contradições, desses desacertos – na tragédia dessa
forma de expressão. Mas não acho que o rap represente algo pós-canção. É,
talvez, um dos sintomas de que o tempo da canção está passando. Se é que está
mesmo passando. Formas artísticas não se prendem ao seu tempo. Ninguém sabe o
que futuros amantes encontrarão em canções como “Flor da idade” ou “Blackbird”,
“Don’t think twice” ou “Maracatu atômico”. A canção gravada em disco e tocada
em rádio é marca do século 20. Isso é que está mudando. Mas a canção é velha
como a humanidade: cantos japoneses, poemas provençais, Lieder alemães do
século 19 – tudo isso veio antes da canção do século 20 – e muito mais virá
depois…
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