viernes, 14 de octubre de 2016

1979 - CAETANO DESABAFA: SOU DA PATRULHA ODARA. E DAÍ?





Foto: Maria Lúcia Souza




JORNAL A TARDE, 2 de março de 1979.
Salvador, Bahia.



Entrevista a Reynivaldo Brito



O cantor e compositor Caetano Veloso está revoltado com as últimas
críticas dirigidas por algumas pessoas através de artigos publicados
em jornais e revistas do Sul do país, que tentam
impingir-lhe a idéia de alienado, que apresenta um trabalho fora
da realidade brasileira e sem uma conotação política.
Enfim,que pertence à “patrulha Odara”,
que estaria a fim de divertir. Mas Caetano desabafou à Manchete
em sua casa no tranqüilo bairro de Ondina, num intervalo de seu
show que apresentou recentemente no Teatro Castro Alves, com
grande
sucesso de público e crítica. Ele disse que pertence mesmo à tal
patrulha Odara que nunca se propôs a resolver a questão
social do Brasil. “Estou a fim de encantar e divertir as pessoas”.
Para ele o brasileiro é muito ignorante e está tudo confuso no
Brasil. Disse ainda que “enxerga é uma minoria privilegiada
racista que quer impor seus comportamentos e idéias e que é um
homem livre, não pertence a partido político e ideológico.
E que muitos artistas serão molestados por esses que integram hoje
esta meia dúzia que faz restrições a seu trabalho. Outros serão
alvo muito breve de críticas injustas.
 
 



Para Caetano Veloso as “pessoas são muito burras esteticamente , e chegam ao ponto de criticar por criticar. Mas, a música popular brasileira que está sendo feita , e consumida por aí, é a melhor coisa que se produz atualmente no Brasil. A música popular é melhor que a literatura, que o cinema e tudo mais. E esta crítica que vem se desencadeando tende a cair no vazio porque não é de esquerda, nem de direita. É uma coisa confusa e mal informada. Essas pessoas são burras esteticamente e não têm respaldo necessário para uma discussão maior, em outro nível. Daí passam ao ataque pessoal que é ridículo e inconcebível. Nós, os músicos, somos sagrados. Eu sou sagrado, o Gil é sagrado, o Milton é sagrado , o Chico Buarque de Holanda é sagrado. Nós somos sagrados”. Continuando seu desabafo Caetano afirmou que “se fôssemos fazer uma caricatura da sociedade civil brasileira poderíamos colocar esta pequena minoria racista como a corte e nós somos os bárbaros.Daí teria surgido a idéia de “Doces Bárbaros”,porque isto é coisa de Roma e África do Sul. Uma minoria privilegiada que não aceita a nossa presença.E falo aqui em nome de nós os músicos , aqueles que produzem.E, falando por mim, devo dizer que eu Caetano Veloso sou um homem puro. As pessoas têm medo disto.Imagine que as pessoas têm nojo até da própria mãe.Basta lembrar que a crítica caiu em cima de mim porque apareço na capa do meu disco deitado no colo da minha mãe. Eu não tenho vergonha da minha mãe.Tenho Orgulho, e é por isto que estou em pânico e ao mesmo tempo maravilhado com isto tudo que está ai.”



FUNÇÃO DO ARTISTA



Caetano acha que “ a função do artista na sociedade é produzir arte. As sociedades produzem este tipo de personalidade porque precisam de pessoas que façam arte.Elas forjam estas personalidades, pedem. Há uma demanda dessas psicologias, pessoas que estejam destinadas a produzir arte. O resto é corolário.Com isto não quer dizer que no meu caso, basicamente trabalho para o divertimento, para o entretenimento. Eu não vivo mais no tempo onde se tem uma noção assim muito pura da arte. Assim como um objeto intocável,muito puro. Eu acho que a gente faz entretenimento para um grande número de pessoas e esse é o nosso trabalho.Tanto eu como o Gilberto Gil, o Glauber Rocha, a Elizeth e muitos outros”.
- Ächo que existem grandes massas e que se faz um trabalho de entretenimento. E, se faz isto. Eu faço isto.Todo mundo faz isto. Todo mundo que faz disco faz isto.Isto é a realidade básica da nossa profissão e ninguém pode tentar esconder porque é isto. Agora eu não sou consumista no sentido de atender ao consumo imediato.Acho isto uma coisa boa.As sociedades são de massas. Há uma quantidade imensa de gente no mundo.As coisas são produzidas para esta gente.Um disco é uma coisa que é reproduzida e vendida para milhões de pessoas. Uns vendem 50 mil, outros 90 mil até 300 mil . Nos Estados Unidos tem gente que vende 5 milhões e 10 milhões de discos e assim por diante. Não sei, no mundo todo as pessoas vendem muitos discos. Não sei.
É verdade isto, isto existe e a gente trabalha nisto. E isto é arte. Não sei diferençar exatamente. Há uma demanda para a existência disto. Agora, que dentro disto os temas políticos apareçam ou não para mim pode acontecer. É uma coisa natural. Como os temas políticos são de interesse das pessoas e há uma demanda muito grande que também eles sejam tratados nas obras de arte. Agora, o que acho , é que há assim um consumismo. Trabalho dentro disto,dentro deste lance sabendo o que é, com a minha liberdade, na minha profissão e na minha função dentro da sociedade . Como não estou preso e obrigado a fazer música de discothéque , a fazer baião. Nada. Não sou obrigado a tratar de determinados temas porque estão na moda. Acho que há uma moda de esquerda, uma moda consumista de esquerda. Isto é, você vende uma moda de bandeira política de esquerda. Pode ser de maneira mais primária possível e algumas pessoas aceitam. Revelou ainda Caetano Veloso “que na verdade muitos estão nessa porque dá muita grana. Ficam dizendo : Ah ! Caetano não sei o que mais.É da Patrulha Odara. E daí? Sou mesmo da Patrulha Odara .”



RESPONSABILIDADE E PÚBLICO



Disse Caetano Veloso que “não identifica o seu público como universitário. Há muitos estudantes evidente que se interessam por mim e muita gente já deixou a universidade, e também estudantes secundários e mesmo gente que nunca foi à escola. Muita gente que não é estudante. O meu público não é basicamente de estudantes.”
Quanto à responsabilidade para com este seu público ele revelou que “minha única responsabilidade com o público que me acompanha é de manter a mesma responsabilidade, relação como o que faço e com o que atraiu essas pessoas a gostarem e acompanharem o que estou produzindo. Como comento isto, como trabalho, minha liberdade , minha coragem. Isto é uma coisa boa. A minha sinceridade, é isto que está ai. A minha responsabilidade. E sou cem por cento responsável por isto. Por outro lado, não tenho muita responsabilidade para fazer aquilo que o público quer. Seja lá que público for. Ele pode estar com a opinião mais certa do mundo, quer que eu diga aquilo.Podem querer, mas eu não quero.Só faço aquilo que acho que devo fazer. Se não estou para dizer aquilo, não vou dizer.Quanto mais que não é isto que se passa.O que se passa é uma porção de gente confusa.O brasileiro é muito ignorante. Poucos chegam numa universidade precária, ( e nós somos um pequeníssimo número de pessoas que consegue chegar lá ). As universidades são precárias. É tudo confuso no Brasil. As pessoas não têm muitas informações .As universidade não são boas. Não existe um nível aceitável de informação. Quero dizer que não há, assim, platéias bem formadas,grandes minorias de massas que possam sustentar uma opinião. Mas ,não existe nada disso.É preciso até ter um cuidado no que falar. Eu mesmo sou confuso quando falo e devo ter cuidado para que não haja tantos mal entendidos. O que existe muito é mal entendido. O Brasil é muito grande, muito confuso e muito pobre “.



RACISMO



- Estou querendo e ganhei consciência que aqui é muito África do Sul. A sociedade civil brasileira, enfim, a vida civilizada, urbana brasileira é uma pequenina nata.As pessoas que chegam à universidade, que escrevem nos jornais e lêem as revistas são assim os brancos da África do Sul.Uma minoria racista, privilegiada e de direita ou de esquerda, distante completamente do que seja a verdadeira realidade do país Brasil. Esta é a angústia que sente Caetano Veloso que diz a seguir: “é uma angústia muito grande que sinto por tudo isto. Gostaria de compartilhar com meus compatriotas para ver se a gente amadurece esta colocação minha. Compartilhar para ver o que existe realmente”. Continua o seu desabafo duro e sincero . “Daí atribuir às críticas e uma campanha que algumas pessoas ditas de esquerda vêm tentando fazer ao grupo baiano como racistas. Acho que é uma metáfora da realidade.Acho que o fato de eu me dizer mulato, como eu disse numa canção, é o modo de traduzir uma coisa, que digo com meu modo de ser e, o fato de reagirem ao meu modo de ser, é também um modo de reagir à mulatice verdadeira que há em tudo isto. Acho racista esta coisa toda. Mas, não caracterzaria com tanta facilidade assim esta crítica como de esquerda. Esta crítica pretensiosa que se faz no Brasil procura se dizer de esquerda. Eu pessoalmene não caracterizaria como sendo de esquerda. Não há uma clareza muito grande nisto. Acho que, por exemplo, o que me revolta é ler um artigo como eu li do Mauricio Krusbusli, que escreveu no jornal do Brasil em que ele falava de mim e dava eu como morto. De mil ele disse que o Caetano era desde mil e novecentos e pouco. Ai eu já sou um gato escaldado. Já li aquilo, com muita tranqüilidade, estava também no artigo uma crítica ao Milton Nascimento que não corresponde também à realidade. O Milton Nascimento é um sujeito maravilhoso. Ele é um sujeito inspirado. É uma pessoa que porta o maravilhoso. Eu percebo sinto como artista e achei o disco novo dele “Clube da Esquina no. 2”algo maravilhoso, muito bonito.E ele tinha feito uma apresentação no Festival de Jazz e ,eu vi na televisão no Rio. Eu vi ali o maravilhoso. Embora estivesse ali uma apresentação do ponto de vista profissional cheia de defeitos, com todos os defeitos que você possa imaginar, porque já estava uma `coisa desleixada, já que eles tinham feito um show tarde, tinham feito uma grande farra e o show saiu confuso. Mas, os críticos que esculhambaram com ele tinham visto o show na parte da tarde. Mas, só falaram da noite. Neste artigo o Maurício diz que o Milton já começa a sua descida. E, falou mal do disco do Milton de uma maneira injusta e incoerente. Esquece de coisas boas que ele vinha falando até então. Isto é esquerda? Não é esquerda, nem direita. Isto é baixo nível moral.Para mim é isto, baixo nível moral. É uma coisa destrutiva e doentia. Estou dando este caso como exemplo, mas milhões desses estão acontecendo por ai.
Falando também de algumas críticas por ele consideradas injustas dirigidas por Maria Helena Dutra , o cantor Caetano Veloso disse que recentemente ela elogiou o meu show mas de maneira burra.Ela disse que neste, eu tirei os enfeites feios dos show Bicho, do “Bicho Baile Show”. Na verdade as roupas do Baile Bicho Show eram lindíssimas. É porque as pessoas são muito burras e praticamente não conhecem nada.Todas as fotos que vejo do Bicho Baile Show são lindas. As roupas são lindas, e no entanto falou que eram feias e que agora estou bem. Isto porque estou discreto vestido de short e camiseta, que é uma coisa simples. Pensando certamente que estou renegando aquela roupa maravilhosa do Bicho Baile Show, quando não é verdade. Não existe este negócio de renegar”.
Caetano volta a falar das críticas dirigidas a Milton Nascimento e confessa ter ficado muito contente por Milton ter falado, “ele que não é de muito de falar. Agora ele está falando botando pra fora. Acho isto genial.Mas o que sinto em música popular brasileira é que está tudo maravilhoso. Acho mesmo que o Chico é maravilhoso, vai ser atacado em breve por este pessoal.Vão demonstrar quão inimigos eles são do que tem de maravilhoso em Chico Buarque. A mesquinhez também o vai atingir, porque eu me sinto identificado com Chico, com Hermeto Pascoal, com Elizeth Cardoso, Isaurinha Garcia,Maria Bethânia,Dominguinhos, Jackson do Pandeiro. Acho que a música popular do Brasil é a única fresta. É realmente por onde passa alguma coisa assim, seja da força que vem de baixo do Brasil, seja do futuro do Brasil, do mundo ou do planeta ou do inconsciente do Brasil. Alguma coisa disto se passa atualmente pela música popular brasileira e fazem tudo isto para impedir que aconteça. É isto o que está acontecendo , porque elas representam a repressão. Se dizem ser de direita ou de esquerda, na verdade esses que se arvoram de críticos representam a repressão a isto que acontece, que não sei o nome, mas que eu represento. Não sozinho, mas juntamente com Chico Buarque, Lúcio Alves, Dóris Monteiro , Antônio Carlos Jobim e muitos outros. Eu tenho uma verdadeira mística em relação à música popular brasileira”.
Diz Caetano que “nossa música popular brasileira é melhor que o cinema, que a literatura, do que a política, do que a religião, do que tudo. Eu acho. Tenho uma relação mística com música popular do Brasil. E me sinto sagrado, porque faço parte de música popular do Brasil, porque componho , canto, e atuo nesta área. Vejo misticamente. Acho que nós que fazemos música popular no Brasil, seja originário do interior da Paraíba, entendeu? Ou filho da família Buarque de Holanda, nós somos todos sagrados e portadores de ma coisa extraordinária que não sei o que é, mas que está no futuro, mais embaixo, dentro, escondido no Brasil. E todos aqueles que fazem as coisas mesquinhas contra nós, porque falo em nosso nome, são inimigos de uma verdade grandiosa que eu não sei o que é, não sei dizer o que é, mas`que eu vivo. E que eles não querem que nem se insinui e e pronto ! É isto que vejo no Milton Nascimento eu revolto, quando o Mauricio Krusbusli diz que Milton teve ascensão e ubiu, desceu. Eu sou paranóico, sagrado. Acho que Milton é sagrado, que Chico é sagrado e que ninguém tem direito de ser louco . Eles têm seu emprego escrevem o que quiser. Eu falo o que quiser. Esta é a minha opinião”.



ESTÃO COM MEDO



Para Caetano Veloso “eles estão com medo e gostam muito de se identificar com a esquerda. Eu sinceramente não vejo esquerda, direita. O que vejo é uma confusão e falta de informação total. Eles pretendem falar em nome do povo, mas o que vejo é uma coisa muito vaga. Vejo muita gente por aí, com milhões de coisas. Sou do interior da Bahia já morei em Salvador, em São Paulo com e sem dinheiro, moro no Rio de Janeiro com dinheiro e tenho muitas visões e sensações do Brasil. Quase nunca vi alguém falar alguma coisa que se parecesse com o que vejo, exceto nas canções populares e nos filmes de Glauber Rocha e em alguns filmes e livros de outros autores, mas são poucos. A maioria das coisas não tem nada a ver com as coisas que vejo e sinto . Muito menos nestas críticas. Como sou vítima de um problema deles lá, eu reajo. Claro que reajo e é uma questão de honra, uma questão moral, também, não posso deixar de reagir”.



"PATRULHA ODARA"



Falando sobre a conotação que estão dando chamando os baianos de integrarem a uma tal de “Patrulha Odara” Caetano revela que “realmente pertence a esta patrulha. Quanto ao centralismo no Rio de Janeiro é uma coisa que existe e é utilizada por eles. “Eu acho que é. Que tem um peso esse negócio do Sul ou seja, o centro da sociedade civil brasileira , que é o Rio de Janeiro e São Paulo contra o subdesenvolvimento. Quer dizer , principalmente o Rio de Janeiro, já que São Paulo é um centro mais industrial, e, o Rio é um centro mais social, um centro cultural, social. É a Corte. O Rio é a Corte. Ali fica todo mundo nos bares, etc. Numa caricatura representaria muito bem os brancos da África do Sul. Mas acho que há muito racismo contra os baianos, contra o Nordeste. O Pasquim naquela época em que voltei de Londres fazia uma brincadeira constante de esculhambar com os baianos e nos chamavam de baiunus como se o Rio fosse a Roma e nós fôssemos os bárbaros. Isto até influiu em eu botar o nome de nosso grupo de “Doces Bárbaros” . Acontece que acho que a coisa toda é centrada no Gil, no Caetano e no Glauber. A coisa toda contra os baianos . Por ser baiano a gente tem uma certa união, coincidência de atitudes, uma coragem maior de mexer com esta coisa toda , a gente é independente, de apresentar um Brasil livre, de procurar que o Brasil se expresse de verdade. Então os caras ficam contra nós e a reação fica forte. Fica uma moda. É moda falar de Caetano, Gil, etc. Isto é péssimo porque vai desprestigiando, embora não pareça nada. Na verdade desprestigia. Quando falei do negócio do Milton Nascimento eu queria mostrar que é a mesma coisa. Não existe uma secção . A secção está no racismo, no preconceito. Acho que os baianos faziam o mesmo com os sergipanos numa situação semelhante. Mas acontece que não há uma situação semelhante”.


INVESTIDA DOS CEARENSES



Disse Caetano que “há tempos atrás , o chamado Grupo Cearense fez uma investida contra os baianos, mas que foi uma investida burra. Eles tentaram utilizar (foi uma coisa suicida ) esta reação que existe contra nós, este racismo. A gente não é mau. Senão eu e o Gil teríamos acabado com isto. Mas ,a gente viu que foi uma coisa muito burra. Eles tentaram utilizar o preconceito contra nós como a catapulta de lançamento deles. Quer dizer, no momento que os cariocas estavam dizendo assim no Pasquim e naqueles bares de noite e nas ruas. Chega desses baianos. Tem que acabar com esses baianos. O Fagner , por exemplo, usa muito essas de dizer, vou pegar. É uma coisa meio sabida. Vou dizer que eles passaram, que é preciso vir gente nova. Mas ele falou tão burro, que apresentou como gente nova Capinam e Abel Silva. Ora, Capinam além de ser baiano e ter trabalhado no Tropicalismo é mais velho que eu. Então, ficou ridículo ele declarar isto na Revista Veja. Então o próprio Belchior fez uma coisa mais inteligente porque não criou inimizade e botou a brincadeira dentro de sua música, das letras deles. Uma coisa assim de “é preciso renovar o elenco”. É consumismo, tudo isto é consumismo. Eu sou puro. Eu. Caetano Veloso sou um homem puro. E escrevi esta frase numa carta que enviei a Revista Veja: Eu, Caetano Veloso sou um homem puro e a Veja cortou esta frase. Gostaria até que você contasse isto na sua revista ( Na época fiz esta matéria para a Revista Manchete, onde era repórter) . Não sei se pode. Mas, eu pergunto qual a razão de ter cortado a frase? Eu sou um homem puro. Mas diante desta estória do Fagner, isto é , falar como se eu fosse modelo de automóvel para todo ano ser renovado e jogado fora, acontece que não sou automóvel, nem sabonete. Sou um homem. Sou do Recôncavo da Bahia, nasci em Santo Amaro da Purificação , tendo pai e mãe , coisa que essas pessoas têm dificuldade enorme de admitir. Basta lembrar, porque fiz uma capa de disco onde aparece uma foto imensa minha com minha mãe, a crítica esculhambou, também o público não comprou um pouco por causa disto. As pessoas têm nojo da mãe. Eu não. Eu existo. Sou de carne e osso, tenho emoções , entendeu? Não estou a serviço de nenhuma ideologia. Sou uma pessoa. Estou em pânico e deslumbrado com tudo que existe ao mesmo tempo. Agora, este papo furado de que está certo e errado. É tudo mentira. Olho e ouço os caras falando e não acredito. Sou puro neste sentido. Não estou ai para ser sabonete e automóvel,não. Não estou nesta de que esses caras têm que mudar. Mas, se mudar estou aí. Encontro a nova realidade e ajo como ela tá. Vejo o que é que vou fazer aí no lance, e tudo bem. A gente nasce no mundo e não numa folha de papel em branco. Não. O homem não é parado. É neste sentido que acho uma loucura este negócio de consumismo. Acho um absurdo isto tudo”.



PRESO E EXILADO



Lembra Caetano que “a censura é prejudicial a seu trabalho. Diretamente para o meu trabalho tem prejudicado pouco. Porém indiretamente muito. É aí que estou com Chico Buarque quando ele falou que se você passa anos com a divulgação das obras muito limitada,você vai perder o diálogo , o nível do diálogo da criação. Explico: você deixa de ver várias peças de teatro onde acontecem determinadas e várias coisas, você não é estimulado a fazer outras, que vão além. Acho que a limitação da divulgação e de obras é uma coisa que lesa os artistas, mesmo que não seja diretamente. Acho isto ainda uma coisa mais profunda em relação a isto. Não fui muito censurado, mas é preciso não esquecer que fui preso e exilado . Então é uma coisa muito desparatada porque ao mesmo tempo que a censura atua assim, por outro lado, em determinados aspectos ela se mostra ( e é por isto que Glauber tem se mostrado meio simpatizante das possibilidades do governo militar no Brasil, entendeu? Porque a censura , como o governo militar tem um aspecto positivo neles, e acho que o Glauber vê isto assim como uma metáfora) em luta contra a sociedade civil brasileira. É aí que está a identidade”.



“DISCOTHÉQUE”



Diz Caetano Veloso que “esses críticos têm medo. Têm muitos problemas com relação as coisas que acontecem. Na semana passada uma moça que trabalha num jornal de Salvador veio com uma pergunta, era uma enquete, onde estava escrito para ela perguntar a mim o seguinte: o rock and roll foi tipicamente um movimento musical de forte conteúdo social e revolucionário, enquanto que a discothéque é conservadora e alienada. Fiquei chocado, porque isto é uma loucura, este tipo de pauta que estava me mostrando ( e a menina ria muito, achando aquilo muito ridículo), mas, me disse, eu estou aqui com a pauta, que é uma pergunta do jornal. Ora, o rock and roll é uma coisa muito velha, eu era criança quando apareceu. O rock and roll foi considerado na época o máximo do conservadorismo e da alienação. Nunca ninguém achou que aquilo era revolucionário, não. Até os Beatles que eram rivais do rock and roll, que surgiram dez anos depois ainda eram considerados conservadores e alienados. Ainda era uma coisa alienada e conservadora, no Brasil alguém se interessar pelos Beatles. Hoje, vinte anos depois as pessoas dizem que o rock and roll era revolucionário e a discothéque reacionária. Então fico vendo que é uma coisa de ter medo pelo que está acontecendo. Eu acho a discothéque na maioria das vezes chata. Não gosto de ouvir Donna Summers, acho que tem muita música igual. Agora gostava daquela discoteca Dancing Days’s que tinha no Rio. Adoro “soul music “ . Adoro ver e ouvir preto cantando. Preto americano. E mais, do eu tudo gosto de Bob Marley, da Jamaica. Eles não seriam nem capazes de diferençar se você botar um disco de Donna Summers e do Bob Marley e do James Brown, e dizem que tudo é discothéque e que está aí para destruir as características culturais brasileiras. Agora, eu não sou do MEC, não sou da censura. Não trabalho no MEC e nem na censura. Então não sou eu que vou controlar. Agora, eu tenho minhas escolhas e eleições. Quer dizer. Eu gosto do que gosto. Eu sou democrata, sou mulato democrata”.


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