Foto: PEDRO AGILSON
1997
Revista ISTOÉ
Edição nº 1469 – 26 de novembro
Revista ISTOÉ
Edição nº 1469 – 26 de novembro
Múltiplos Caetanos
O
compositor lança seu primeiro livro, um CD inédito depois de seis anos e um
site na Internet
ROBERTO COMODO
No início dos anos 80, Caetano Veloso elegeu um ano sim, em que lançaria novos discos e faria shows, e um ano não, dedicado ao descanso e à gestação de novas composições. Apesar de legítimo, esse desejo nunca pôde ser realizado pelo cantor e compositor baiano, que há três décadas ocupa com o reluzente brilho de seu talento um lugar de destaque no cenário cultural brasileiro. Hoje, aos 55 anos, em plena maturidade artística, Caetano continua a todo o vapor. No início do mês, aterrissou nas livrarias o aguardado livro Verdade tropical (Companhia das Letras, 524 págs. R$ 27), sua primeira experiência de fôlego como escritor. No alentado volume, uma fusão de memórias autobiográficas, ensaio reflexivo e confissões, ele descreve a história do tropicalismo – o inventivo movimento que inaugurou uma nova estética musical no País –, além de contar, com enorme abrangência de detalhes, a trajetória de sua carreira, desde a infância e adolescência em Santo Amaro da Purificação, a prisão em 1968 e o exílio em Londres, até a efervescência da contracultura e sua relação com drogas, sexo e rock-and-roll.
As
caudalosas 524 páginas de Verdade tropical foram escritas nos últimos
três anos por Caetano Veloso, que aproveitou os apertados intervalos das turnês
que fez pelo mundo, folgas de gravações e esporádicos períodos de férias em
Salvador para dar feitura à obra. Publicado há três semanas com uma tiragem
inicial alta para os padrões brasileiros, 50 mil exemplares, o livro já vendeu
65 mil cópias, transformando o compositor no mais novo best-seller nacional. Na
sequência da edição de suas memórias autobiográficas, Caetano está lançando na
segunda-feira 24 o seu novo CD, Livro (Polygram), o primeiro solo com
músicas inéditas desde Circuladô, de 1991. No mesmo dia, ele inaugura
seu site na Internet, produzido pela Refazenda, a firma de Flora Gil, que já
criou os sites do marido, Gilberto Gil, Cazuza e Zélia Duncan. No espaço
virtual, hospedado pela IBM, a sua obra completa poderá ser acessada no
endereço www.caetanoveloso.com.br. Lá
estão reunidos – em 500 páginas – todos os textos de Caetano, das críticas de
cinema que escreveu na juventude em Salvador aos manifestos tropicalistas, os
textos das contracapas e dos releases de seus 28 discos, incluindo as letras de
todas as suas composições, revisadas uma a uma por Nara Gil, que corrigiu os
erros existentes nos encartes dos discos. O site – idealizado e produzido em
três meses por André Vallias – usa plasticamente fusões de imagens com toques
construtivistas e traz ainda uma grande pesquisa fotográfica, com muitos
registros inéditos do cotidiano do cantor, todas do arquivo da fotógrafa baiana
Maria Sampaio, além de desenhos e óleos pintados por Caetano, antes de ele
fazer sua opção definitiva pela música. O endereço na Internet dispõe também de
trechos de até 60 segundos de todas as gravações do cantor, que podem ser
escutadas em Real Audio, e a audição na íntegra das 14 músicas do seu novo
disco.
A
movimentada agenda de Caetano Veloso não pára ai. A avaliação do tropicalismo
que ele faz em Verdade tropical pode ainda ser acompanhada musicalmente
no CD Tropicália 30 anos, um disco comemorativo do movimento que chega
às lojas em dezembro, com a maioria das faixas gravadas em Salvador pela nova
geração de intérpretes baianos. Daniela Mercury, Carlinhos Brown, Virginia
Rodrigues e a Didá Banda Feminina dividem as clássicas canções do tropicalismo
com a Banda Eva, Ara Ketu, Asa de Águia, Ylê Ayê, Cheiro de Amor e Armandinho e
Pepeu Gomes, num disco que fecha com Gal Costa cantando Divino maravilhoso
e traz Tropicália por Caetano, Gilberto Gil e Tom Zé. O aniversário do
movimento, que é tema central do Carnaval em Salvador, ganhou ainda um Som
Brasil especial da Rede Globo, gravado há duas semanas no Metropolitan, no
Rio de Janeiro, e que deverá ir ao ar no dia 9 de dezembro.
Página de abertura do site que tem tudo |
Diante de tanta atividade, Caetano Veloso desabafa numa entrevista a ISTOÉ em seu escritório carioca, no Leblon: "E depois falam que os baianos são preguiçosos." Recém-chegado da Itália, onde fez um concerto especial no dia 30 de novembro perto de Rimini dedicado ao cineasta Federico Fellini e sua mulher, a atriz Giulieta Masina, a pedido da irmã do cineasta, Caetano mal teve tempo de ler as repercussões na imprensa sobre Verdade tropical. Administrando a apertada agenda, ele tenta achar um espaço para a divulgação do CD Livro, que traz esse título porque a obra que escreveu influenciou a concepção do disco, mas quase não lhe deixou tempo para gravá-lo. "Cerca de 99% do livro estava pronto há um ano, mas eu não conseguia dar um ponto final, cortar, editar e consertar várias passagens e fazer uma breve conclusão", diz o compositor, que entregou à editora os originais da obra no final de julho, revelando que na edição final do texto foi obrigado a cortar quase 300 páginas. "Isso tudo acabou atrasando o lançamento do disco."
Foi só durante a excursão do show Fina estampa pela Europa que Caetano Veloso teve a idéia do direcionamento e acabamento do disco Livro. Emoldurado por um belo projeto visual – concebido pelos artistas plásticos Barrão, Fernanda Villa Lobos e Luiz Zerbini, autor também da pintura do cantor no encarte, em que ele aparece como um escritor insone, vestindo um pijama por baixo do paletó –, o CD traz 14 músicas, 11 delas inéditas, assinadas por Caetano. Sofisticado e sutil, Livro realiza o desejo do compositor de combinar a moderna percussão de rua da Bahia com as requintadas harmonias do cool jazz, inventado por Miles Davis e Gil Evans nos anos 50. Os luxuosos arranjos de cordas do maestro Jaques Morelembau e sopros, escritos pelo guitarrista Luiz Brasil, se misturam por
encanto com guitarras, timbaus e tambores baianos num desfile original de ritmos brasileiros, com referências a Jorge Ben Jor em Não enche, inspirado na música Se manda, e no afoxé Alexandre, o grande, em clima de samba enredo do Olodum. Chico Buarque, citado explicitamente por Caetano na apresentação do disco – "às vezes acho que minha profissão tem sido perseguir Chico Buarque" –, ressurge em três músicas. Na primeira, Pra ninguém, uma releitura pessoal de Caetano Veloso de Paratodos. E nas outras duas, Os passistas, um samba carioca tocado em timbaus baianos, e na emblemática Livros, um maracatu que faz saborosa recriação de Chão de estrelas, de Orestes Barbosa, nos versos iniciais da canção, que assinala "Tropeçavas nos astros desastrada, quase não tínhamos livros em casa."
Em outras três faixas de Livro, Caetano Veloso registrou o clima afetivo de sua vida familiar. A suave Um Tom, com sinos, marimbas, vibrafones, gamelas e berimbaus festeja o filho mais novo de Caetano, Tom, 9 meses. Moreno Veloso, o filho mais velho, 25 anos, é o autor de How beatiful could a being be, um frase melódica que se transforma num moderno samba de roda, dada de presente a Caetano, que canta a mulher, Paula Lavigne, em Você é minha, uma continuação de Você é linda. O impacto sonoro da concepção pretendida por Caetano no novo CD é ressaltado em Manhatã, dedicada a Lulu Santos, sobre Nova York, numa citação do poeta romântico Sousândrade, autor de O inferno de Wall Street. E na emocionante O navio negreiro, sob os versos do poeta Castro Alves, musicado como um rap em ritmo de afoxé por Carlinhos Brown e com notável participação de Maria Bethânia. Caetano ainda cria artesanalmente o som techo em Doideca, um comentário dodecafônico, feito numa série de 12 sons, e dissonante, que mistura Arrigo Barnabé, Tom Zé e Frank Zappa. A junção de cordas e tambores surge serena e elegante na reveladora e bela Minha voz, minha vida, uma canção que ele fez para Gal Costa e que nunca tinha gravado. A outra regravação é Na baixa do sapateiro, o clássico de Ary Barroso, com um arranjo de metais do violinista Luiz Brasil que reproduz os acordes do violão de João Gilberto, o mestre supremo de Caetano, saudado também no final de Pra ninguém, onde frisa "melhor do que o silêncio só João".
Com o disco Livro finalmente lançado – na correria da edição de Verdade tropical, ele teve que escrever às pressas as letras de pelo menos quatro músicas que já estavam no estúdio com os arranjos prontos –, Caetano Veloso não se vê e não se sente como uma unanimidade nacional, como sua imagem às vezes é projetada na mídia. "Toda unanimidade é burra", diz, lembrando a frase do dramaturgo Nelson Rodrigues. "E, sobretudo, a unanimidade em torno da figura de Nelson Rodrigues", brinca. "Me sinto indignado com as ilusões e preconceitos sociais e torço sempre para uma situação de maior clareza e liberdade." Na introdução de Verdade tropical, escrito por encomenda da editora americana Knopf, ele se define como "um popstar intelectual de um país de Terceiro Mundo". Caetano não tem nenhum problema em reconhecer que é uma celebridade, mas não se acha um narcisista e nem tem medo de expor e defender suas idéias.
Ao
descrever o objetivo do livro, Caetano ressalta que pretendeu contar e
interpretar a aventura do tropicalismo, "um impulso criativo surgido no
seio da música popular brasileira, na segunda metade dos anos 60, em que os
protagonistas – entre eles o próprio narrador – queriam poder mover-se além da
vinculação automática com as esquerdas". O desejo, aponta ele, "era
dar conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal desigualdade que
fende um povo ainda assim reconhecivelmente uno e encantador e da fatal e
alegre participação na realidade urbana universalizante e internacional, tudo
isso valendo por um desvelamento do mistério da ilha Brasil". Esse desejo,
diz hoje Caetano, apesar do aparente fim das utopias, continua de pé. "O
Brasil ainda não é um país rico nem justo, aliás é mais injusto do que pobre,
mas na minha imaginação ele pode ser um lugar maravilhoso, sem injustiças e
desigualdades." Longe de uma acomodação que seu sucesso poderia permitir,
Caetano Veloso faz questão de afirmar que continua insatisfeito e rebelde com a
realidade tropical que o cerca. "Eu não acho que a última palavra sobre
nós esteja contida num Manual do perfeito idiota latino-americano. Não
concluo que somos um mero fracasso fatal."
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