“É a grande soma da obra de João Gilberto. É o disco que dá a visão mais ampla da ideia que ele tem de repertório, de estilo”
[Caetano Veloso, 14/6/1986]
FOLHA DE S.PAULO
Sábado, 14 de Junho de 1986
Pág. 55
Sábado, 14 de Junho de 1986
Pág. 55
O cantor e compositor baiano Caetano Veloso posa com foto de João Gilberto e Astrud Gilberto.
Foto: João Caldas/Folhapress
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Foto: João Caldas/Folhapress
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Astrud e João Gilberto, 1962. |
Caetano em seu camarim,
no Palace, antes de seu show, fala do último disco de João Gilberto, um álbum
duplo gravado ao vivo, em julho do ano pasado, durante o festival de Montreux,
que será lançado na próxima terca-feira pela WEA
RENATA RANGEL
Da Reportagem Local
Da Reportagem Local
Caetano com uma foto de Astrud e João feita por David Zingg em Nova York, em 1962 |
Como quase tudo que cerca João Gilberto, o lançamento de seu novo disco também é feito de mistério. Na WEA, a gravadora que na próxima terça-feira apresenta formalmente o novo trabalho de João, as informações são guardadas com o mesmo rigor que ele tem ao cantar ou tocar violão. O alvo de tantos cuidados é um álbum duplo, “João Gilberto Live at the 19th Montreux Jazz Festival” gravado ao vivo durante a apresentação no festival de Montreux (Suiça) do ano pasado, na noite de 18 de julho.
Lançamento: 17 de junho de 1986 |
Caetano Veloso, aos 43 anos fã incondicional e confesso do artista que define como “a alma” da Bossa Nova, já ouviu a fita e viu o vídeo do show. Adorou. “É a grande soma da obra de João Gilberto”, diz, “É o disco que dá a visão mais ampla da idéia que ele tem de repertório, de estilo.”
Ninguém melhor que Caetano para falar de João Gilberto. Sempre esteve
perto do ídolo total, desde os tempos em que passavam noites conversando e
fazendo música no quarto de hotel que João ocupava em São
Paulo ainda nos anos 60.
Ou depois, em plena Tropicália, quando Caetano compôs “Saudosismo” (1968), em que fala de “eu, você, girando na vitrola” e lembra como era bom o tempo em que “aprendemos com João para sempre ser desafinados”.
Ou depois, em plena Tropicália, quando Caetano compôs “Saudosismo” (1968), em que fala de “eu, você, girando na vitrola” e lembra como era bom o tempo em que “aprendemos com João para sempre ser desafinados”.
E muito mais agora, quando surge com um show (Caetano
Veloso e Violão, no Palace,
em São Paulo) em tudo
muito Bossa Nova. Um banquinho, um violão, intimismo nas canções e no tom, muitas citações a João e a declarada homenagem de cantar uma
das raríssimas composições
de João Gilberto,
“Oba-lá-lá/Bim Bom”.
Reverentes elogios
Caetano diz que gostaria de cantar e tocar como JG.
Esparrama reverentes elogios ao mestre durante o show. Quando canta “Oba-lá-lá”
comenta o trecho que diz “É só isso meu baião/E não
tem mais nada não/O meu
coração pediu assim/Só…” Caetano
diz que Gilberto Gil acha que o estilo sincopado de cantar João Gilberto tirou do baião. “Ele nasceu em Juazeiro,
na Bahia (há 55 anos)” mas poderia ser de Pernambuco porque é só atravesar a
ponte, o rio, e se está em Petrolina (PE), diz, dando risadas. Discorda de Gil.
“Eu não acho que é baião, acho que é samba”.
É o que acha também do novo disco de JG. “Ele foi ficando menos Bossa Nova ortodoxa e cada vez mais samba”, afirma. Embora diga que toda a evolucão no trabalho de JG seja muito sutil, Caetano consegue perceber mudanças no álbum. “Ele está mais extrovertido do que costuma, com a voz mais solta, mais colorido de timbres”. Lembra que João Gilberto ficou tão a vontade assim também quando participou do Festival de Águas Claras, no interior de São Paulo, em 84.
Enquanto se prepara para entrar no palco (na última quinta-feira, no camarim, acendeu uma vela branca, colocou camisa azul), Caetano comenta algunas músicas que mais particularmente o atraíram no disco. “Aquela da madame é ótima”, diz, e cantarola um trecho de “Madame” de Haroldo Barbosa. Também se confessa “impressionado” com um samba em que “ele diz que quer voltar para o Brasil”.
João Gilberto também canta “A Felicidade” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), com a novidade de incluir uma terceira estrofe pouco conhecida. Canta “Sem Compromisso” (“É demais, ele arrasa”, diz Caetano). Canta “Chega de Saudade”. E “O Barquinho”? “Não”, diz Caetano, “dessa vez não tem ‘O Barquinho’”.
Não acha que o álbum seja uma síntese do trabalho de João. Ao contrario, o amplia. “Ele é sempre aquela coisa bem definida, mas nesse disco aparecem mais as nuances. É amplo”. Para o vídeo da apresentação em Montreux, Caetano tem uma palabra definitiva: “É demais”. E sempre em tom de elogio: “Ele faz todos aqueles charmes…”
Sucesso atrasado
Ao ver a foto que David Drew Zingg fez de João Gilberto e sua ex-mulher
Astrud, em 1962, exclama: “João
com Astrud, que coisa! Astrud é a musa da new bossa inglesa. “Garota de
Ipanema” chegou a Londres agora, com vinte anos de atraso, na época do rock.”
Aceita possar para uma nova foto de “Mr. Zingg” com entusiamo. Nem é preciso explicar a idéia de fotografá-lo segurando a foto de 24 anos atrás. O retrato do casal foi feito no estúdio de Zingg em Nova York apenas alguns dias depois do legendario show que “lançou” a Bossa Nova nos Estados Unidos, naquela noite de 21 de novembro. Zingg, então conselheiro editorial da revista “Show”, foi quem idealizou a histórica apresentação que reuniu no Carnegie Hall, João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Sérgio Mendes, Milton Banana, Astrud e outros brasileiros da Bossa Nova que surgia.
Muitos outros brasileiros estavam lá, lembra Zingg. Quase cinquenta, o número de passagems aéreas que se conseguiu surrupiar para embarcar a trupe rumo aos Estados Unidos. Amigos ajudaram. A poeta Dora Vasconcelos “grande amiga de Juscelino Kubistchek”, segundo Zingg foi quem “abriu o chão de NY para os brasileiros” (eles se espalharam pelo chão de varias casas). O próprio Zingg levou João, Tom e Astrud até o produtor Creed Taylor, dono da Verve Records, uma das mais famosas grabadoras de jazz.
Por acaso
Desse encontro surgiu o LP “Getz / Gilberto”, gravado em 18
e 19 de março de
1963 em Nova York e responsável pelo estouro mundial da Bossa Nova (o disco foi
relancado no Brasil o ano pasado, pela PolyGram). O disco tem o saxofone de
Stan Getz, voz e violão
de João Gilberto, o
piano de Tom Jobim e a voz de Astrud em duas canções – “Corcovado” e “Garota de Ipanema”. Para
Zingg, Getz era “um músico falido”. ”Esse disco salvou a vida dele”, diz. Conta
que quando se reuniram no estúdio, Getz não conseguia acompanhar o ritmo brasileiro. “Compramos uísque
para ele e ai ele caiu na Bossa Nova –e depois roubou a mulher de João Gilberto” (Astrud deixou
JG e se casou com Getz, de quem já se separou). Também diz que ela entrou no
disco “por acaso”, porque sabia cantar as duas músicas que completariam um LP.
Quando fotografa Caetano Veloso para a Folha, Zingg conta para ele que na foto que está segurando deveria aparecer também Tom Jobim. “Eu quería que Tom ficasse em pé ao lado do banquinho, mas ele disse que atrás do João Gilberto, nunca”. Caetano dá risadas. “Ih, até hoje é isso. Os dois já estão velhos e ainda ficam com brigas para saber quem entra antes ou depois do show.” Coisas de estrelas, decerto, mas o tom de Caetano é de que João Gilberto pode. O ídolo total pode tudo. O fa só quería saber cantar e tocar “tão bem como ele”
ÍDOLO TOTAL
CAETANO VELOSO
“Nenhum outro artista
brasileiro foi mais decisivo para a minha formação pessoal. Nenhum dos
que também o foram resistiu mais ao crivo crítico da minha mente amadurecendo
através dos anos. João Gilberto lançou uma luz angelicalmente suave e diabólicamente penetrante
sobre o passo e o futuro da música chamada popular brasileira e nada pode ser
visto aí com propriedade se não se leva em consideração essa luz. Toda a cultura e mesmo toda a vida dos brasileiros
foi atingida por ela e por ela alquimicamente transformada.
O tropicalismo foi um
movimiento romântico-destrutivo, mas a Bossa Nova foi um movimiento clássico
construtivo. Se Antônio Carlos Jobim é o mais exuberante e genial
compositor-músico surgido da Bossa Nova, João Gilberto é o mago que parece ter
criado a possibilidade de tudo isso acontecer.
Com seu simples modo de tratar a palavra cantada, ele faz tanto pela
língua portuguesa quanto os seus maiores poetas. Compreendendo e sentindo como
ninguém a plasticidade do português falado no Brasil, ele age a um tempo
desbravadora e normativamente sobre a sua história. Fazendo sempre a mesma
coisa que nunca é a mesma, João não pára de nos deleitar e surpreender, acalmar
e intrigar. A escolha do repertório, o gosto das cadências armônicas, a duração das notas da melodía dentro do tempo, o senso do silêncio,
o jeito único de fazer soar o violão, tudo faz com que seu
canto e seu toque sejam sempre uma lição e uma oração. Uma nova lição e uma
eterna oração.”
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Esse texto de
Caetano Veloso foi publicado no programa do show de João Gilberto no Coliseu
dos Recreios em Lisboa em junho de 1984 e agora no programa do show Caetano
Veloso e Violão no Palace, em São Paulo. Convidado a escrever sobre João
Gilberto para a Folha Caetano
sugeriu que se publicasse ese texto que considera definitivo. Segundo ele não
há muito mais que isso a dizer.
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