Hoy, día de NAVIDAD, falleció Dona Canô.
1944
Revista Verbo Encantado nº 8 - 11 al 17 de diciembre de 1971 |
24/12/2012 - Igreja N. S. da Purificação
2013
Revista Contigo!
3/1/2013 - Edição n° 1.946
Revista Contigo!
3/1/2013 - Edição n° 1.946
Foto: Mariza Alvarez Lima |
Lanzado en Santo Amaro el 13 de marzo de 2009.
Museu Galeria de Arte Caetano Veloso (UEFS – Campus Avançado de Santo Amaro), Praça da Purificação s/n – Centro.
DONA CANÔ
Mamãe Coragem
De Santo Amaro da Purificação, por telefone, Claudionor Vianna Telles Velloso, a dona Canô, festeja a personalidade forte da filha Maria Bethânia
Mamãe Coragem
De Santo Amaro da Purificação, por telefone, Claudionor Vianna Telles Velloso, a dona Canô, festeja a personalidade forte da filha Maria Bethânia
DONA CANÔ lembra a infância dos filhos:
''desde pequena Bethânia dizia: vou ser artista, meu pai!"
(Foto: Marisa Alvarez Lima / Divulgação)
Ethel de Paula
da Redação
da Redação
[14 Maio 16h57min 2005]
A voz ao telefone conserva o viço. Claudionor Vianna Telles Velloso, a dona Canô, é uma quase centenária com fôlego e bom-humor para quantos dedos de prosa o interlocutor quiser puxar. ''Tenho nome de homem mesmo, viu? E isso é uma atrapalhação até hoje. Quando pedem a identidade, perguntam: 'Mas cadê o seu Claudionor? Aí eu digo: 'Tá aqui ele'', diverte-se. Por telefone, de Santo Amaro da Purificação, recôncavo baiano, discorreu durante uma hora e meia sobre o ambiente doméstico formador da filha Maria Bethânia, assim batizada depois que o irmão Caetano Veloso atazanou o juízo de seu Zeca, patriarca do clã, vencendo-o em sorteio. Mãe de oito filhos, a viúva não reclama de solidão. ''Tem sempre um comigo. Nunca fico só'', avisa. Família demais, aos 97 anos faz das vontades deles a sua. ''O que mandam eu faço, já me encostei'', ri-se, sabedora do respeito adquirido com afeto.
Da filha, pensa o contrário. ''Maria Bethânia tem uma personalidade muito forte. Ela comanda as coisas sem mandar. Todo mundo sente o comando dela, entendeu? Tem uma força'', avisa. Quando se refere aos filhos, é como se não tivessem crescido. Para dona Canô, são ''os meninos''. Assim, quase reclama das ausências de um atribulado Caetano Emanuel - ''é uma criatura que não sei como vive'' - e derrete-se com a fé em Nossa Senhora compartilhada com a filha artista educada em convento. Em relação a ela, o convencional sonho de toda mãe não é o seu: ''Maria Bethânia sempre foi independente. Tem a casa dela, não falta nada, se vira sozinha. Casar pra que? Nunca estimulei filho nenhum a se casar, minha filha. Fui casada por 53 anos e sei que casamento é coisa muito séria. O segredo é a união. E é muito difícil a gente ver um casal unido''.
O POVO - Começo pedindo que a senhora conte qual a origem do nome Maria Bethânia. É verdade saiu de um sorteio?
Dona Canô - Foi Caetano quem botou. Ele tinha quatro anos quando ela nasceu. E dizia todo dia que ia se chamar Maria Bethânia, porque gostava da música cantada pelo Nelson Gonçalves. Zeca, meu marido, dizia: ''Não venha com essa maluquice não que não vou botar um nome pra estarem cantando o nome dela no meio da rua''. Mas depois Zeca fez um sorteio com um bonezinho que ele usava. Disse que cada um sugerisse um nome e depois pediu a Caetano que tirasse. Quando tirou veio Maria Bethânia. Pois é (risos)... Se não fosse era Maria-não-sei-de-que, eu disse Maria Gilda, depois apareceu Maria Gislene, cada um deu um nome, mas venceu Maria Bethânia.
OP - Como foi a infância de Bethânia numa cidade de inteior, quais eram as brincadeiras e os passatempos diletos?
Dona Canô -Bethânia frequentou primeiro o Convento dos Humildes, fez as primeiras letras lá, depois foi para o ginásio. Fez muita coisa porque ela foi bandeirante, tomava parte em festinhas do colégio, só não cantava porque tinha a voz feia (risos)...
OP - Tinha a voz feia?
Dona Canô - Pelo menos era o que diziam (ri). Naquele tempo, voz bonita era voz de soprano, né? E ela não tinha, a voz dela sempre foi grave. Mas ela tinha jeito pra apresentar, pra tudo. Chegou a jogar vôlei, ela gostava muito. Era uma criança mais viva de que os meninos. Com eles, tomava parte nos brinquedos, mas gostava de fazer as artes dela: cantar, dançar, representar, jogar bola... O pai gostava muito de futebol e ela jogava com ele, que deu uma bola a ela, de futebol mesmo e os dois jogavam. Zeca era um homem de uma natureza muito forte, mas para os filhos nunca suspendeu a mão, nem deu um grito. Eu também nunca bati. Foram criados sem pancada, sem grosseria, sem castigo. Meus filhos nunca foram obrigados a fazer nada. Era estudar só. Caetano pintava muitos quadros lá pra dentro, lá pra cozinha, ninguém via, quando via já tava pronto. Pintava muito, desenhava muito. Tem ainda um quadro que ele pintou aqui, está na sala. E a meninice de Maria Bethânia foi muito ativa, nunca foi encostada não. Quando ela foi bandeirante viajou, foi a cidades aqui perto. Todo papel ela fazia quando os bandeirantes faziam festa. Até saci-pererê ela fez (risos).
OP - Já cantava em casa desde menina?
Dona Canô - Cantava em casa muito, sentava na janela para cantar pro quintal. Nós morávamos em um apartamento que tinha uma janela pra estrada e ela ficava cantando (ri). Ela ouvia tudo no rádio e aprendia com facilidade, decorava tudo. Juju, minha cunhada, Juvina, cantava muito bonito. Todos aprenderam música e tocavam piano, Bethânia também. O piano era de Juju, mas quando ela morreu diz que era dos meninos. Tiveram uma educação boa, viu? Tudo o que puderam aprender aprenderam. Por isso é que todos são apegados à família.
OP - Vocês se vêem com muita frequência?
Dona Canô - Só Caetano é que não vem, não é? Caetano é mais difícil. Mas ela quando vem a Salvador, vem até Santo Amaro. E os outros todos constantemente estão aqui comigo. Agora mesmo a mais velha está aqui comigo porque Rodrigo precisou viajar. É assim: quando um vem o outro vai. Nicinha, que trabalha com Bethânia, está comigo o tempo todo. Mas quando está viajando com Bethânia, fico só. Aí vem um. A idade não permite mais que eu fique sozinha, 97 anos...
OP - A senhora cantava para ninar seus filhos, dona Canô?
Dona Canô - Cantava muito, eu e Juju, minha cunhada, ela cantou na Igreja por 50 anos. Gostava muito de cantar, deixei de cantar porque fui perdendo a voz com a idade, mas ainda canto. Tem um coral aqui de que faço parte, mas não é mais como antigamente não.
OP - E como era a relação entre irmãos? Quem era mais chegado a Bethânia, por exemplo?
Dona Canô - Não, todos eram muito unidos, brincavam todos juntos, inventavam festinha, brincadeira de teatro. Tinham muitos vizinhos e todos tinham filhos, mas ninguém saía pra brincar. Era dentro de casa que brincavam. Sair pra brincar na casa dos outros não! Era aqui! Mas desde pequena Bethânia dizia: ''Vou ser artista, meu pai!''. O pai achava graça nas coisas que ela dizia de repente assim (risos)...
OP - Quais as primeiras músicas que a senhora lembra ela cantando?
Dona Canô - Não me lembro... Eram tantas, ela decorava todas.
OP - Bethânia era o xodó do pai ou da mãe?
Dona Canô - Ela tinha muita coisa com o pai e o pai com ela. Mas claro que ficou mais apegada comigo, porque, afinal, eu sobrei, né? (ri) Gostava de ouvir minhas histórias antigas, que hoje não se conta mais. Aliás, Mabel agora está contando historinhas nos colégios e já fez uns livros de histórias, de sapo, de macaco...
OP - E era uma menina vaidosa, gostava de se enfeitar?
Dona Canô - Era uma menina que não gostava nem de muita roupa. Era um horror pra Maria Bethânia fazer uma roupa. Gostava de ficar à vontade (ri), mas fazia porque não tinha jeito. Ia sair e precisava de um vestidinho melhorzinho. Aí mandava fazer, um, dois... Porque também não tinha condições de fazer muita coisa. Zeca, meu marido, era telegrafista, inspetor dos Correios e Telégrafos aqui em Santo Amaro, por 40 anos. Eu, nada. Fui sempre doméstica. Tive seis filhos e criei duas. Mas todos foram criados iguais, não houve diferença, continua até hoje a mesma coisa. A mais velha é Eunice, Nicinha, que trabalha com Maria Bethânia; depois Clara Maria; depois Maria Isabel, que hoje é Mabel; Rodrigo Antônio; Roberto José; Caetano Emanuel, Maria Bethânia e Irene.
OP - E na escola, Bethânia foi boa aluna, era estudiosa?
Dona Canô - Foi... Estudou no convento até ir pro ginásio, era uma boa aluna, mas quando tava terminando o ginásio foi chamada para o Rio de Janeiro. Mudamos pra Salvador quando todos precisaram estudar. As duas mais velhas pro colégio Santa Bernadete. Caetano pro Severino Vieira com Maria Bethânia. Nicinha tinha uma professora muito boa e fez o curso completo aqui. Irene frequentou o colégio de Nossa Senhora da Conceição. Todos aprenderam o que puderam aprender, o que se pôde dar.
OP - A senhora assistiu à estréia de sua filha no Teatro Vila Velha, em Salvador?
Dona Canô - Foi um show muito grande e muito bom, muito bem organizado. Era ela, Gal, Caetano, Gil. O primeiro espetáculo foi Nós, por Exemplo. O padrinho dela, um grande médico, doutor Eduardo Mamede, chegou junto de mim e disse: 'Perdemos Bethânia'. Eu disse: 'Que é isso, meu compadre?'. E ele: 'É isso mesmo, não deixe ninguém ouvir ela cantar'. (risos). Era padrinho dela, queria muito bem... Eu achei que ela tinha gosto por aquilo. Era natural, sempre gostou. Mas nunca tive a pretensão de dizer que ela ia ser artista de fama não. Normal, né? Já via ela cantando em casa... Mas todos os espetáculos que ela deu aqui eu acompanhei. Ela e Caetano. E os companheiros: Gil, Gal... eram muitos, já morreram vários. Tem uns 15 dias que morreu o fundador do Teatro Vila Velha, Carlos Petrovik, era o orador da turma.
OP - Foi bem aceito em família a decisão de Bethânia em seguir carreira artística?
Dona Canô - Ela não decidiu nada! Decidiram por ela! (Ri). Você deve se lembrar daquela grande cantora... como é o nome? Nara Leão. Tava fazendo o show ''Opinião'' no Rio. Adoeceu da garganta, perdeu a voz, aí perguntaram a ela: 'Quem você quer que lhe substitua?'. Ela disse: 'Se vocês pudessem mandar buscar uma menina em Salvador, essa eu queria'. Porque ela ouviu Maria Bethânia ensaiando em Salvador, quando veio fazer um espetáculo viu o ensaio dos meninos. Mandou então um recado pra Nilda Spencer (atriz baiana), que é nossa amiga de muitos anos, conhecia Bethânia do Teatro Vila Velha. Veio falar com a família para ela ir. Zeca respondeu que ela não ia, que tinha 17 anos e que não podia ir, porque ele não podia viajar, nem eu também. Dois dias depois, tornaram a telefonar. Caetano estava aqui numa fazenda. Bethânia veio a Santo Amaro pra casa de Mabel, recebeu o recado e disse: 'Minha mãe, isso é trote'. Mas Caetano disse: 'É trote não, minha mãe. Eu levo Bethânia'. E foi ele quem levou. Já era mais velho que ela, já conhecia o Rio de Janeiro... foi, ficou. Zeca disse: 'O que a gente vai fazer? Deixa a carreira dela, deixa'. Entregamos a Deus. O que tem de ser traz força.
OP - O que mais lhe chama atenção ao ver a cantora Maria Bethânia no palco?
Dona Canô - A força que ela tem. A força. Porque ela é forte. É uma força que transmite a qualquer pessoa. Ela sabe interpretar uma música. Sabe dizer o que sente na música. O show ''Opinião'' foi o mais importante. Porque foi a primeira vez que vi Bethânia no palco assim cheia de novidade, né? Uma menina, 17 anos, naquele ambiente, cheio de gente aplaudindo. A abertura foi com ''É de Manhã'', de Caetano. E terminou cantando ''Carcará''. Impressionou todo mundo, até a mim. Eu não esperava que tivesse tanta força aquele 'carcará'!
OP - Dona Canô, na época da ditadura militar no Brasil, Caetano acabou exilado em Londres e a classe artística era alvo constante de repressão. Como a família lidou com isso?
Dona Canô - (pausa) Minha filha, não posso lhe descrever isso porque, quando dei conta de mim estava com a cabeça branca. O cabelo embranqueceu. Não posso dizer nada, nada. Ele mesmo não gosta que se fale. Dois anos e meio exilado. Mas a força de Nossa Senhora da Purificação trouxe ele de volta pra cá.
OP - A senhora teria um disco de sua predileção ou uma música gravada por Bethânia que a emociona particularmente?
Dona Canô - Eu disse a ela, quando fez Brasileirinho: 'Minha filha, você fez um disco que nunca mais faz igual'. E é verdade. É um disco brasileiro extraordinário. Ela tem feito muita coisa bonita, mas Brasileirinho pra mim suplantou. Agora, queria lhe dizer que tudo o que ela canta eu gosto. Sou admiradora de minha própria filha. Como de Caetano também. Agora, Caetano às vezes tem umas músicas que eu não gosto e digo a ele: 'Ó, não gostei dessa música, meu filho'. Mas tem umas duas, só. (risos).
OP - Quais são, dona Canô?
Dona Canô - Uma é ''Cajá''. Não suporto ''Cajá''. A outra não me lembro não, é dessas aí... e as americanas que eu não entendo, né? Que ele gravou um disco todo em inglês. Bethânia é mais brasileira. O disco de Nossa Senhora é lindo (Cântigos, Preces, Súplicas a Nossa Senhora dos Jardins do Céu, 2000), quando chega gente e quer comprar eu vendo. Porque eu participei também, cantando a ladainha, né?
OP - É verdade, a senhora reza. Bethânia é muito religiosa, dona Canô?
Dona Canô - Dentro do possível, ela é bastante religiosa. Mas a vida dela não dá tempo pra frequentar igreja, nada dessas coisas. Mas ela gosta. Perto da casa dela tem uma igreja, sempre vai lá. Foi educada num convento, né? Como é que não aprende? Sempre que vem, ainda que não assista à missa, faz uma visita à igreja aqui de Nossa Senhora da Purificação. É a nossa riqueza, essa igreja. Uma vez, o reboco do teto caiu em cima do altar. Eu já vinha pedindo ajuda a um e a outro, essas fábricas todas, eu fui pedir, mas ninguém fez nada. Todo mundo que tinha poder, nada. Foi quando telefonei pra ela. Mas antes, muito antes de acontecer isso, o dr. Antônio Carlos Magalhães veio a Santo Amaro, fazer uma inauguração de um hospital. E ele sempre me considerou, por causa de Maria Bethânia, que ele gostava muito de vê-la cantar, então se aproximou de mim. Ele entrou sozinho na igreja, olhou, quando saiu passou o braço no meu ombro e disse: 'Olhe, dona Canô, eu e a senhora vamos consertar essa igreja'. Eu disse: 'Ô, dr. Antônio, se o sr. fizer isso nunca mais sairá de meu coração a sua bondade'. Bom, ficou nisso, ele foi embora. Mas no dia em que caiu, ela telefonou pra ele e disse: 'Olha, dr. Antônio, chegou a hora de cumprir a palavra que o senhor deu a minha mãe. Caiu o reboco da igreja'. Ele mandou consertar. Ele é modo de dizer. Ele que ordenou. Deu ordem e foi feito.
OP - Bethânia também ligação com candomblé?
Dona Canô - Não sei, não me meto com isso não. Mas gosta. Candomblé é uma religião como outra qualquer. Quem não acreditar pode acreditar porque é. Tem gente que fala: 'candomblé é isso, é aquilo'. Candomblé é uma religião de muito respeito. Melhor do que essas outras todas inventadas.
OP - E ela ainda vai muito a Santo Amaro? O que gosta de fazer quando está aí?
Dona Canô - Gosta de ficar em casa, com a gente, ficam todos os irmãos juntos, conversando, ela pouco vê a gente, né? Por exemplo, ela não veio no Dia das Mães. Ela vem assim: Semana Santa, Dia das Mães, Natal esse ano ela não passou comigo, mas Ano Novo passou, vem no meu aniversário, no aniversário dela, quando não está trabalhando. E quando vem à Bahia, aparece por aqui. Caetano nunca vem assim pra acontecer os dois. É difícil. Caetano não tem tempo. Caetano Emanuel é uma criatura que não sei como ele vive. Agora, viaja que é um horror! Ano passado passou 70 dias na Europa, correndo aquilo tudo. Viaja agora de novo. A última vez que veio foi pra novena de fevereiro, que ele gosta muito. Veio, assistiu à novena, jantou e foi-se embora. Às vezes chega de tarde, quando é de madrugada vai embora, não dorme aqui não.
OP - É a novena de dona Canô, que ele cita na canção Reconvexo?
Dona Canô - É. A novena de Nossa Senhora da Purificação, no dia 2 de fevereiro. Uma novena muito bonita, mas que muita gente não ligava. Vinham só pra farra, viu? Porque tem a lavagem do adro da igreja com trio-elétrico, blocos carnavalescos, as baianas saem daqui de casa. Então, depois da música de Caetano passaram a lembrar da novena e não só da festa. Agora todo mundo conhece e vem rezar a novena de Dona Canô. No Dia da Luz, mesmo dia de Nossa Senhora das Candeias, para onde vão muitos romeiros também.
OP - Bethânia gostava de ler? Esse amor pela poesia, enxertada em discos e shows, vem da infância?
Dona Canô - Zeca, meu marido, gostava muito de poesia. Recitava muito. Ninava os meninos recitando (Ri). Artur de Sales, Coelho Neto, aquele Mangabeira, grande poeta... Francisco Mangabeira. Fernando Pessoa, Maria Bethânia é louca! Ela lê, mas não tem muito tempo. Quem gosta de ler sou eu, a vida toda. Tudo o que cai nas minhas mãos eu leio. História, revista religiosa, verso, tudo, gosto mais do que televisão. Quando é um livro bom eu me esqueço de tudo... Tem os de Mabel que leio, ela escreve também. Agora mesmo escreveu Irmã Dulce, vai lançar dia 24. Caetano lê demais. Li o primeiro livro que ele fez, antes desse Verdade Tropical, que é pra quem entende muito desse negócio de tropicalismo. Eu não entendo muito, mas ele escreveu, eu li tudo. Só que Alegria, Alegria eu gostei mais, porque ele contou a vida dele.
OP - Como é seu dia-a-dia hoje, dona Canô?
Dona Canô - Acordo às 5 horas da manhã. Hoje mesmo teve uma alvorada aqui por conta da festa do candomblé, que me acordou quatro horas da manhã. Uma alvorada de foguete, que é um horror! Pronto, não dormi mais. Então, não faço mais nada, até doce que eu fazia não faço mais porque não deixam. Tô me encostando, já me aposentei. Tenho quatro empregadas ótimas. A única coisa que faço hoje é ler e ver televisão, isso quando me interessa. Quando não, desligo e vou dormir.
OP - É verdade que a senhora faz pilates?
Dona Canô - É, uma novidade, né? Porque levei uma queda e deslocou uma vértebra. Eu não posso fazer nada de exercício, então mandaram eu fazer isso. Estou fazendo. Faço tudo o que mandam agora. Mas gosto. É um exercício simples, bom pra velho mesmo. Aliás, pessoas moças também podem fazer, porque é um exercício que não cansa e melhora muito o movimento da gente. Mas mesmo assim não posso ficar muito tempo em pé. Nem me dobrar.
OP - A senhora gosta de escrever?
Dona Canô - Nem gosto de escrever porque minha letra é muito feia. Gosto demais é de ouvir música. Mas também não é toda música. Eu gosto daquelas que são bonitas e bem-feitas. Esse negócio de batuque, axé, não. Pagode, nada disso eu gosto. Arrocha, misericórdia! (Risos).
OP - E quem a senhora gosta de ouvir?
Dona Canô - Gosto muito de... como é o nome dele? Dominguinhos... Esse negócio de forró eu gosto muito, vez em quando tocam e eu assisto. Não gosto é dessa zoada. Não é todo mundo que eu gosto não. Tem esses rapazes que cantam bonitinho e eu gosto. Como é? Leonardo... Tem outra dupla que também eu gosto. Mas não sei distinguir muito não.
OP - Entendi: a senhora gosta mesmo é de Caetano, Bethânia...
Dona Canô - Quando botam. Porque eu tenho aqui e raramente boto (Ri). Também faz tempo que ouço, tenho todos os discos deles dois. Gosto muito de Chico (Buarque), muito. Daquela menina que é a melhor cantora do mundo pra mim: Dalva de Oliveira. Tenho todos os discos dela. De vez em quando eu boto.
OP - Dona Canô, dos presentes que Bethânia deu para a senhora, qual o que mais agradou?
Dona Canô - Ela comprou uma casa em Cabuçu, numa praia aqui perto de Santo Amaro, que é muito bonita e calma. E a casa diz que é minha. Então, é um presente que gosto imensamente porque me divirto, vou pra praia, ela é alta, dá pra ver toda a extensão do mar da Bahia. E a água do mar é morna, uma beleza. Mas hoje em dia só boto os pés dentro d'água. Não tenho mais coragem de entrar porque já perdi quem me acompanhava. Zeca era louco pelo mar. Passava o dia inteiro na água, só saía a pulso para almoçar, depois descansava e tornava a voltar. Sem ele não faz mais sentido.
OP - E músicas dedicadas à senhora por Bethânia e Caetano?
Dona Canô - De Caetano eu sei que tem. Ela não compõe, não é? Mas eu cantava muito ''O Senhor da Floresta''. E ela gravou. Tem uma outra que eu cantava, que até Caetano gravou - e parece que ela também... como é, meu Deus? De Augusto Calheiros. Não me lembro o nome...Em ''Genipapo Absoluto'' ele fala de Santo Amaro e de mim, não é? ''Mamãe-Coragem'', ele fez quando foi embora. Eles nunca se esquecem não.
Da filha, pensa o contrário. ''Maria Bethânia tem uma personalidade muito forte. Ela comanda as coisas sem mandar. Todo mundo sente o comando dela, entendeu? Tem uma força'', avisa. Quando se refere aos filhos, é como se não tivessem crescido. Para dona Canô, são ''os meninos''. Assim, quase reclama das ausências de um atribulado Caetano Emanuel - ''é uma criatura que não sei como vive'' - e derrete-se com a fé em Nossa Senhora compartilhada com a filha artista educada em convento. Em relação a ela, o convencional sonho de toda mãe não é o seu: ''Maria Bethânia sempre foi independente. Tem a casa dela, não falta nada, se vira sozinha. Casar pra que? Nunca estimulei filho nenhum a se casar, minha filha. Fui casada por 53 anos e sei que casamento é coisa muito séria. O segredo é a união. E é muito difícil a gente ver um casal unido''.
O POVO - Começo pedindo que a senhora conte qual a origem do nome Maria Bethânia. É verdade saiu de um sorteio?
Dona Canô - Foi Caetano quem botou. Ele tinha quatro anos quando ela nasceu. E dizia todo dia que ia se chamar Maria Bethânia, porque gostava da música cantada pelo Nelson Gonçalves. Zeca, meu marido, dizia: ''Não venha com essa maluquice não que não vou botar um nome pra estarem cantando o nome dela no meio da rua''. Mas depois Zeca fez um sorteio com um bonezinho que ele usava. Disse que cada um sugerisse um nome e depois pediu a Caetano que tirasse. Quando tirou veio Maria Bethânia. Pois é (risos)... Se não fosse era Maria-não-sei-de-que, eu disse Maria Gilda, depois apareceu Maria Gislene, cada um deu um nome, mas venceu Maria Bethânia.
OP - Como foi a infância de Bethânia numa cidade de inteior, quais eram as brincadeiras e os passatempos diletos?
Dona Canô -Bethânia frequentou primeiro o Convento dos Humildes, fez as primeiras letras lá, depois foi para o ginásio. Fez muita coisa porque ela foi bandeirante, tomava parte em festinhas do colégio, só não cantava porque tinha a voz feia (risos)...
OP - Tinha a voz feia?
Dona Canô - Pelo menos era o que diziam (ri). Naquele tempo, voz bonita era voz de soprano, né? E ela não tinha, a voz dela sempre foi grave. Mas ela tinha jeito pra apresentar, pra tudo. Chegou a jogar vôlei, ela gostava muito. Era uma criança mais viva de que os meninos. Com eles, tomava parte nos brinquedos, mas gostava de fazer as artes dela: cantar, dançar, representar, jogar bola... O pai gostava muito de futebol e ela jogava com ele, que deu uma bola a ela, de futebol mesmo e os dois jogavam. Zeca era um homem de uma natureza muito forte, mas para os filhos nunca suspendeu a mão, nem deu um grito. Eu também nunca bati. Foram criados sem pancada, sem grosseria, sem castigo. Meus filhos nunca foram obrigados a fazer nada. Era estudar só. Caetano pintava muitos quadros lá pra dentro, lá pra cozinha, ninguém via, quando via já tava pronto. Pintava muito, desenhava muito. Tem ainda um quadro que ele pintou aqui, está na sala. E a meninice de Maria Bethânia foi muito ativa, nunca foi encostada não. Quando ela foi bandeirante viajou, foi a cidades aqui perto. Todo papel ela fazia quando os bandeirantes faziam festa. Até saci-pererê ela fez (risos).
OP - Já cantava em casa desde menina?
Dona Canô - Cantava em casa muito, sentava na janela para cantar pro quintal. Nós morávamos em um apartamento que tinha uma janela pra estrada e ela ficava cantando (ri). Ela ouvia tudo no rádio e aprendia com facilidade, decorava tudo. Juju, minha cunhada, Juvina, cantava muito bonito. Todos aprenderam música e tocavam piano, Bethânia também. O piano era de Juju, mas quando ela morreu diz que era dos meninos. Tiveram uma educação boa, viu? Tudo o que puderam aprender aprenderam. Por isso é que todos são apegados à família.
OP - Vocês se vêem com muita frequência?
Dona Canô - Só Caetano é que não vem, não é? Caetano é mais difícil. Mas ela quando vem a Salvador, vem até Santo Amaro. E os outros todos constantemente estão aqui comigo. Agora mesmo a mais velha está aqui comigo porque Rodrigo precisou viajar. É assim: quando um vem o outro vai. Nicinha, que trabalha com Bethânia, está comigo o tempo todo. Mas quando está viajando com Bethânia, fico só. Aí vem um. A idade não permite mais que eu fique sozinha, 97 anos...
OP - A senhora cantava para ninar seus filhos, dona Canô?
Dona Canô - Cantava muito, eu e Juju, minha cunhada, ela cantou na Igreja por 50 anos. Gostava muito de cantar, deixei de cantar porque fui perdendo a voz com a idade, mas ainda canto. Tem um coral aqui de que faço parte, mas não é mais como antigamente não.
OP - E como era a relação entre irmãos? Quem era mais chegado a Bethânia, por exemplo?
Dona Canô - Não, todos eram muito unidos, brincavam todos juntos, inventavam festinha, brincadeira de teatro. Tinham muitos vizinhos e todos tinham filhos, mas ninguém saía pra brincar. Era dentro de casa que brincavam. Sair pra brincar na casa dos outros não! Era aqui! Mas desde pequena Bethânia dizia: ''Vou ser artista, meu pai!''. O pai achava graça nas coisas que ela dizia de repente assim (risos)...
OP - Quais as primeiras músicas que a senhora lembra ela cantando?
Dona Canô - Não me lembro... Eram tantas, ela decorava todas.
OP - Bethânia era o xodó do pai ou da mãe?
Dona Canô - Ela tinha muita coisa com o pai e o pai com ela. Mas claro que ficou mais apegada comigo, porque, afinal, eu sobrei, né? (ri) Gostava de ouvir minhas histórias antigas, que hoje não se conta mais. Aliás, Mabel agora está contando historinhas nos colégios e já fez uns livros de histórias, de sapo, de macaco...
OP - E era uma menina vaidosa, gostava de se enfeitar?
Dona Canô - Era uma menina que não gostava nem de muita roupa. Era um horror pra Maria Bethânia fazer uma roupa. Gostava de ficar à vontade (ri), mas fazia porque não tinha jeito. Ia sair e precisava de um vestidinho melhorzinho. Aí mandava fazer, um, dois... Porque também não tinha condições de fazer muita coisa. Zeca, meu marido, era telegrafista, inspetor dos Correios e Telégrafos aqui em Santo Amaro, por 40 anos. Eu, nada. Fui sempre doméstica. Tive seis filhos e criei duas. Mas todos foram criados iguais, não houve diferença, continua até hoje a mesma coisa. A mais velha é Eunice, Nicinha, que trabalha com Maria Bethânia; depois Clara Maria; depois Maria Isabel, que hoje é Mabel; Rodrigo Antônio; Roberto José; Caetano Emanuel, Maria Bethânia e Irene.
OP - E na escola, Bethânia foi boa aluna, era estudiosa?
Dona Canô - Foi... Estudou no convento até ir pro ginásio, era uma boa aluna, mas quando tava terminando o ginásio foi chamada para o Rio de Janeiro. Mudamos pra Salvador quando todos precisaram estudar. As duas mais velhas pro colégio Santa Bernadete. Caetano pro Severino Vieira com Maria Bethânia. Nicinha tinha uma professora muito boa e fez o curso completo aqui. Irene frequentou o colégio de Nossa Senhora da Conceição. Todos aprenderam o que puderam aprender, o que se pôde dar.
OP - A senhora assistiu à estréia de sua filha no Teatro Vila Velha, em Salvador?
Dona Canô - Foi um show muito grande e muito bom, muito bem organizado. Era ela, Gal, Caetano, Gil. O primeiro espetáculo foi Nós, por Exemplo. O padrinho dela, um grande médico, doutor Eduardo Mamede, chegou junto de mim e disse: 'Perdemos Bethânia'. Eu disse: 'Que é isso, meu compadre?'. E ele: 'É isso mesmo, não deixe ninguém ouvir ela cantar'. (risos). Era padrinho dela, queria muito bem... Eu achei que ela tinha gosto por aquilo. Era natural, sempre gostou. Mas nunca tive a pretensão de dizer que ela ia ser artista de fama não. Normal, né? Já via ela cantando em casa... Mas todos os espetáculos que ela deu aqui eu acompanhei. Ela e Caetano. E os companheiros: Gil, Gal... eram muitos, já morreram vários. Tem uns 15 dias que morreu o fundador do Teatro Vila Velha, Carlos Petrovik, era o orador da turma.
OP - Foi bem aceito em família a decisão de Bethânia em seguir carreira artística?
Dona Canô - Ela não decidiu nada! Decidiram por ela! (Ri). Você deve se lembrar daquela grande cantora... como é o nome? Nara Leão. Tava fazendo o show ''Opinião'' no Rio. Adoeceu da garganta, perdeu a voz, aí perguntaram a ela: 'Quem você quer que lhe substitua?'. Ela disse: 'Se vocês pudessem mandar buscar uma menina em Salvador, essa eu queria'. Porque ela ouviu Maria Bethânia ensaiando em Salvador, quando veio fazer um espetáculo viu o ensaio dos meninos. Mandou então um recado pra Nilda Spencer (atriz baiana), que é nossa amiga de muitos anos, conhecia Bethânia do Teatro Vila Velha. Veio falar com a família para ela ir. Zeca respondeu que ela não ia, que tinha 17 anos e que não podia ir, porque ele não podia viajar, nem eu também. Dois dias depois, tornaram a telefonar. Caetano estava aqui numa fazenda. Bethânia veio a Santo Amaro pra casa de Mabel, recebeu o recado e disse: 'Minha mãe, isso é trote'. Mas Caetano disse: 'É trote não, minha mãe. Eu levo Bethânia'. E foi ele quem levou. Já era mais velho que ela, já conhecia o Rio de Janeiro... foi, ficou. Zeca disse: 'O que a gente vai fazer? Deixa a carreira dela, deixa'. Entregamos a Deus. O que tem de ser traz força.
OP - O que mais lhe chama atenção ao ver a cantora Maria Bethânia no palco?
Dona Canô - A força que ela tem. A força. Porque ela é forte. É uma força que transmite a qualquer pessoa. Ela sabe interpretar uma música. Sabe dizer o que sente na música. O show ''Opinião'' foi o mais importante. Porque foi a primeira vez que vi Bethânia no palco assim cheia de novidade, né? Uma menina, 17 anos, naquele ambiente, cheio de gente aplaudindo. A abertura foi com ''É de Manhã'', de Caetano. E terminou cantando ''Carcará''. Impressionou todo mundo, até a mim. Eu não esperava que tivesse tanta força aquele 'carcará'!
OP - Dona Canô, na época da ditadura militar no Brasil, Caetano acabou exilado em Londres e a classe artística era alvo constante de repressão. Como a família lidou com isso?
Dona Canô - (pausa) Minha filha, não posso lhe descrever isso porque, quando dei conta de mim estava com a cabeça branca. O cabelo embranqueceu. Não posso dizer nada, nada. Ele mesmo não gosta que se fale. Dois anos e meio exilado. Mas a força de Nossa Senhora da Purificação trouxe ele de volta pra cá.
OP - A senhora teria um disco de sua predileção ou uma música gravada por Bethânia que a emociona particularmente?
Dona Canô - Eu disse a ela, quando fez Brasileirinho: 'Minha filha, você fez um disco que nunca mais faz igual'. E é verdade. É um disco brasileiro extraordinário. Ela tem feito muita coisa bonita, mas Brasileirinho pra mim suplantou. Agora, queria lhe dizer que tudo o que ela canta eu gosto. Sou admiradora de minha própria filha. Como de Caetano também. Agora, Caetano às vezes tem umas músicas que eu não gosto e digo a ele: 'Ó, não gostei dessa música, meu filho'. Mas tem umas duas, só. (risos).
OP - Quais são, dona Canô?
Dona Canô - Uma é ''Cajá''. Não suporto ''Cajá''. A outra não me lembro não, é dessas aí... e as americanas que eu não entendo, né? Que ele gravou um disco todo em inglês. Bethânia é mais brasileira. O disco de Nossa Senhora é lindo (Cântigos, Preces, Súplicas a Nossa Senhora dos Jardins do Céu, 2000), quando chega gente e quer comprar eu vendo. Porque eu participei também, cantando a ladainha, né?
OP - É verdade, a senhora reza. Bethânia é muito religiosa, dona Canô?
Dona Canô - Dentro do possível, ela é bastante religiosa. Mas a vida dela não dá tempo pra frequentar igreja, nada dessas coisas. Mas ela gosta. Perto da casa dela tem uma igreja, sempre vai lá. Foi educada num convento, né? Como é que não aprende? Sempre que vem, ainda que não assista à missa, faz uma visita à igreja aqui de Nossa Senhora da Purificação. É a nossa riqueza, essa igreja. Uma vez, o reboco do teto caiu em cima do altar. Eu já vinha pedindo ajuda a um e a outro, essas fábricas todas, eu fui pedir, mas ninguém fez nada. Todo mundo que tinha poder, nada. Foi quando telefonei pra ela. Mas antes, muito antes de acontecer isso, o dr. Antônio Carlos Magalhães veio a Santo Amaro, fazer uma inauguração de um hospital. E ele sempre me considerou, por causa de Maria Bethânia, que ele gostava muito de vê-la cantar, então se aproximou de mim. Ele entrou sozinho na igreja, olhou, quando saiu passou o braço no meu ombro e disse: 'Olhe, dona Canô, eu e a senhora vamos consertar essa igreja'. Eu disse: 'Ô, dr. Antônio, se o sr. fizer isso nunca mais sairá de meu coração a sua bondade'. Bom, ficou nisso, ele foi embora. Mas no dia em que caiu, ela telefonou pra ele e disse: 'Olha, dr. Antônio, chegou a hora de cumprir a palavra que o senhor deu a minha mãe. Caiu o reboco da igreja'. Ele mandou consertar. Ele é modo de dizer. Ele que ordenou. Deu ordem e foi feito.
OP - Bethânia também ligação com candomblé?
Dona Canô - Não sei, não me meto com isso não. Mas gosta. Candomblé é uma religião como outra qualquer. Quem não acreditar pode acreditar porque é. Tem gente que fala: 'candomblé é isso, é aquilo'. Candomblé é uma religião de muito respeito. Melhor do que essas outras todas inventadas.
OP - E ela ainda vai muito a Santo Amaro? O que gosta de fazer quando está aí?
Dona Canô - Gosta de ficar em casa, com a gente, ficam todos os irmãos juntos, conversando, ela pouco vê a gente, né? Por exemplo, ela não veio no Dia das Mães. Ela vem assim: Semana Santa, Dia das Mães, Natal esse ano ela não passou comigo, mas Ano Novo passou, vem no meu aniversário, no aniversário dela, quando não está trabalhando. E quando vem à Bahia, aparece por aqui. Caetano nunca vem assim pra acontecer os dois. É difícil. Caetano não tem tempo. Caetano Emanuel é uma criatura que não sei como ele vive. Agora, viaja que é um horror! Ano passado passou 70 dias na Europa, correndo aquilo tudo. Viaja agora de novo. A última vez que veio foi pra novena de fevereiro, que ele gosta muito. Veio, assistiu à novena, jantou e foi-se embora. Às vezes chega de tarde, quando é de madrugada vai embora, não dorme aqui não.
OP - É a novena de dona Canô, que ele cita na canção Reconvexo?
Dona Canô - É. A novena de Nossa Senhora da Purificação, no dia 2 de fevereiro. Uma novena muito bonita, mas que muita gente não ligava. Vinham só pra farra, viu? Porque tem a lavagem do adro da igreja com trio-elétrico, blocos carnavalescos, as baianas saem daqui de casa. Então, depois da música de Caetano passaram a lembrar da novena e não só da festa. Agora todo mundo conhece e vem rezar a novena de Dona Canô. No Dia da Luz, mesmo dia de Nossa Senhora das Candeias, para onde vão muitos romeiros também.
OP - Bethânia gostava de ler? Esse amor pela poesia, enxertada em discos e shows, vem da infância?
Dona Canô - Zeca, meu marido, gostava muito de poesia. Recitava muito. Ninava os meninos recitando (Ri). Artur de Sales, Coelho Neto, aquele Mangabeira, grande poeta... Francisco Mangabeira. Fernando Pessoa, Maria Bethânia é louca! Ela lê, mas não tem muito tempo. Quem gosta de ler sou eu, a vida toda. Tudo o que cai nas minhas mãos eu leio. História, revista religiosa, verso, tudo, gosto mais do que televisão. Quando é um livro bom eu me esqueço de tudo... Tem os de Mabel que leio, ela escreve também. Agora mesmo escreveu Irmã Dulce, vai lançar dia 24. Caetano lê demais. Li o primeiro livro que ele fez, antes desse Verdade Tropical, que é pra quem entende muito desse negócio de tropicalismo. Eu não entendo muito, mas ele escreveu, eu li tudo. Só que Alegria, Alegria eu gostei mais, porque ele contou a vida dele.
OP - Como é seu dia-a-dia hoje, dona Canô?
Dona Canô - Acordo às 5 horas da manhã. Hoje mesmo teve uma alvorada aqui por conta da festa do candomblé, que me acordou quatro horas da manhã. Uma alvorada de foguete, que é um horror! Pronto, não dormi mais. Então, não faço mais nada, até doce que eu fazia não faço mais porque não deixam. Tô me encostando, já me aposentei. Tenho quatro empregadas ótimas. A única coisa que faço hoje é ler e ver televisão, isso quando me interessa. Quando não, desligo e vou dormir.
OP - É verdade que a senhora faz pilates?
Dona Canô - É, uma novidade, né? Porque levei uma queda e deslocou uma vértebra. Eu não posso fazer nada de exercício, então mandaram eu fazer isso. Estou fazendo. Faço tudo o que mandam agora. Mas gosto. É um exercício simples, bom pra velho mesmo. Aliás, pessoas moças também podem fazer, porque é um exercício que não cansa e melhora muito o movimento da gente. Mas mesmo assim não posso ficar muito tempo em pé. Nem me dobrar.
OP - A senhora gosta de escrever?
Dona Canô - Nem gosto de escrever porque minha letra é muito feia. Gosto demais é de ouvir música. Mas também não é toda música. Eu gosto daquelas que são bonitas e bem-feitas. Esse negócio de batuque, axé, não. Pagode, nada disso eu gosto. Arrocha, misericórdia! (Risos).
OP - E quem a senhora gosta de ouvir?
Dona Canô - Gosto muito de... como é o nome dele? Dominguinhos... Esse negócio de forró eu gosto muito, vez em quando tocam e eu assisto. Não gosto é dessa zoada. Não é todo mundo que eu gosto não. Tem esses rapazes que cantam bonitinho e eu gosto. Como é? Leonardo... Tem outra dupla que também eu gosto. Mas não sei distinguir muito não.
OP - Entendi: a senhora gosta mesmo é de Caetano, Bethânia...
Dona Canô - Quando botam. Porque eu tenho aqui e raramente boto (Ri). Também faz tempo que ouço, tenho todos os discos deles dois. Gosto muito de Chico (Buarque), muito. Daquela menina que é a melhor cantora do mundo pra mim: Dalva de Oliveira. Tenho todos os discos dela. De vez em quando eu boto.
OP - Dona Canô, dos presentes que Bethânia deu para a senhora, qual o que mais agradou?
Dona Canô - Ela comprou uma casa em Cabuçu, numa praia aqui perto de Santo Amaro, que é muito bonita e calma. E a casa diz que é minha. Então, é um presente que gosto imensamente porque me divirto, vou pra praia, ela é alta, dá pra ver toda a extensão do mar da Bahia. E a água do mar é morna, uma beleza. Mas hoje em dia só boto os pés dentro d'água. Não tenho mais coragem de entrar porque já perdi quem me acompanhava. Zeca era louco pelo mar. Passava o dia inteiro na água, só saía a pulso para almoçar, depois descansava e tornava a voltar. Sem ele não faz mais sentido.
OP - E músicas dedicadas à senhora por Bethânia e Caetano?
Dona Canô - De Caetano eu sei que tem. Ela não compõe, não é? Mas eu cantava muito ''O Senhor da Floresta''. E ela gravou. Tem uma outra que eu cantava, que até Caetano gravou - e parece que ela também... como é, meu Deus? De Augusto Calheiros. Não me lembro o nome...Em ''Genipapo Absoluto'' ele fala de Santo Amaro e de mim, não é? ''Mamãe-Coragem'', ele fez quando foi embora. Eles nunca se esquecem não.
Hoy es un día triste. La conocimos a través de ellos: Bethania y Caetano. Quedará por siempre en nuestros corazones. Una palabra para definirla: sabia.
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