2004
Revista ISTOÉ
07/04/2004
Edição n° 1800
Pág.
86-90
CULTURA
MALÚCIDO
Mistura de maluco
e lúcido, nas suas
palavras, Caetano Veloso
continua o mesmo
provocador nas
opiniões e no trabalho,
como prova seu recente
álbum A foreign
sound, uma primorosa
viagem por clássicos
americanos
e lúcido, nas suas
palavras, Caetano Veloso
continua o mesmo
provocador nas
opiniões e no trabalho,
como prova seu recente
álbum A foreign
sound, uma primorosa
viagem por clássicos
americanos
Apoenan
Rodrigues
Colaborou:
Luiz Chagas
07/04/04
Durante os verões quentes da
sua infância na cidade baiana de Santo Amaro da Purificação, onde nasceu,
Caetano Veloso lembra que ouvia tocar no rádio, nas festas, nos bailes, uma
música em inglês cheia de ginga latina, hoje entendida como a idéia que os
americanos fazem do que seja uma música latina. “Assim meio cubana, meio
querendo ser brasileira, sem saber o que é isso”, intui o cantor e compositor.
A canção chama-se Carioca (The carioca) e é parte da
trilha sonora do filme Voando para o Rio (1933), protagonizado pela lendária
dupla de atores-dançarinos Ginger Rogers e Fred Astaire. Excessiva como todas
as fitas de Hollywood daquele tempo, os dois rodopiam à frente de uma réplica
do mítico hotel Copacabana Palace fazendo da cena um acontecimento alegre e
extremamente brega que até hoje fascina Caetano. Tanto que é o carro abre-alas
do aguardado disco A foreign sound, todo composto de
canções americanas que estão no imaginário de qualquer pessoa. Com lançamento
simultâneo no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos e no Japão previsto para a
quinta-feira 8, o CD aporta rebocando mais uma vez a destreza de Caetano Veloso
para tirar o pó de clássicos sonoros, destampando belezas encobertas e criando
novas leituras com interpretações cada vez mais lapidadas que já o
transformaram num dos melhores cantores nacionais.
É também um trabalho que marca
ineditismos na sua carreira. Pela primeira vez ele terá um lançamento com plano
de marketing, incluindo prioridade no Exterior, como afirma o diretor-geral da
gravadora Universal Music, Jose Éboli.
Neste esquema de divulgação, da
segunda-feira 5 até a sexta-feira 9, Caetano recebe em Londres jornalistas
enviados de 13 países interessados em entrevistá-lo sobre o novo álbum.
E nos dias 16 e 17 estará no
Carnegie Hall de Nova York. “Caetano é um dos ícones da música brasileira e
para a Universal é o maior artista brasileiro de todos os tempos”, derrama-se
Éboli. “Independentemente da importância histórica, ele é um artista que sempre
surpreende, que continua provocando.”
Parte desta provocação está
contida no disco que, na definição de Caetano, mistura o refinamento da bossa
nova com a ironia do tropicalismo. São 23 faixas de puro deleite, apresentando
um repertório eclético, porém coeso, que inclui de Cole Porter a Nirvana, de
Bob Dylan a Irving Berlin. Na Europa, além do CD corriqueiro, será lançado um
Superaudio CD de tecnologia de ponta com 24 faixas. No Brasil, chega às lojas
um DVD Audio – aquele com menu interativo para quem tem home theater –, também
de 24 faixas. É o segundo na carreira do artista. O primeiro faz parte da caixa
Todo Caetano, de janeiro de 2003. Em maio, acompanhado de
orquestra, ele ainda grava um DVD de imagens na luxuosa Sala São Paulo,
arrematando o pacote A foreign sound, cujo show deverá
sair em excursão pelo País.
A idéia de gravar um álbum só
com canções em inglês é acalantada há muitos anos. Bem antes do incensado Fina
estampa, de 1994, no qual ele canta 15 clássicos em língua espanhola. Com
paixão e modéstia, Caetano Veloso, hoje com 61 anos, falou a ISTOÉ sobre o novo
disco, amenidades e vida cultural em meio a uma maratona de ensaios. Foram dois
encontros, um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo, ambos à noite. Quando não
está de férias, ele costuma dormir pelo menos até às cinco da tarde. “Gosto
muito de conversar à noite, das luzes da noite”, diz. “Adoro a boêmia, adoro
cerveja, embora não beba. Só no Carnaval, bebi durante uma noite inteira e não
fiquei de porre.” Cerveja talvez seja uma das poucas bebidas alcoólicas para a
qual Caetano faz concessão. Vinho, para ele, é a pior que existe. “Champanhe,
então, acho horrível. Vodca, já bebi com muito prazer, mas vivia de ressaca.”
Verdadeiramente, a bebida que nunca saiu da sua carta é Coca-Cola.
Feras – Foi entre pequenos
goles no copo do refrigerante morno, que ele ensaiou no estúdio de Gilberto
Gil, no Rio, em companhia de um time de cinco instrumentistas feras comandados
por Jaques Morelenbaum, com quem divide a direção musical do CD. Para chegar ao
repertório final, o artista passou por um processo dolorido. Ficaram de fora
canções de gente como Prince, James Taylor e Bob Marley. O maestro Morelenbaum,
que há 13 anos trabalha com o cantor, é testemunha. “Caetano detesta álbum
duplo, e este é um projeto muito amplo, de um universo gigantesco que durante
nove meses causou nele um sofrimento enorme, até nascer este filho
multifacetado.”
Estar sob o crivo de Caetano
Veloso às vezes também pode ser extremamente prazeroso. Para deixar o ambiente
relaxado, não raro ele caça no baú de memórias histórias da sua vida, quase
sempre associadas à música, como a que ele contou no estúdio carioca entre uma
e outra passagem da canção Nine out of ten, originalmente
gravada no disco Transa (1972) e que estará no
repertório do show nova-iorquino. A música tem uma forte levada reggae.
Lembrou, então, dos seus primeiros contatos com o ritmo quando, exilado, morava
em Londres perto de Portobello Road, local de encontros multirraciais e
multiculturais. “Ficava um monte de gente preta tocando aquela música e eu me
perguntava ‘que bloco é esse?’ Os skinheads adoravam. Eles batiam em viado, em
paquistanês, só não batiam em preto por causa do reggae. Eu morria de medo
deles. Com cabelo comprido e essa cara de paquistanês, mudava de calçada cada
vez que via um bando de skinheads.” Bem ao seu estilo, Caetano também gosta de
comentar assuntos que o incomodam. Nestes momentos, frisa Morelenbaum, ele se
insufla, eleva o tom de voz. “É como se estivesse falando para uma multidão e
são apenas dois companheiros de música ouvindo.”
Aberto a novas experiências
musicais – ele conhece a maioria das bandas novas de rock –, Caetano procura se cercar de músicos jovens. Entre eles o guitarrista
Pedro Sá, 31 anos, os multiinstrumentistas Kassin, 30, Domenico e o filho
Moreno Veloso, ambos de 31. Todos de alguma forma ligados ao novo
empreendimento sonoro. “Ele é muito caxias e cobra o melhor de todo mundo”,
conta o monossilábico Moreno. “Caetano é muito perfeccionista e leva este
astral para toda a banda”, endossa o moderno Domenico, que tem tatuada no braço
direito a palavra Liublio (algo como amo o som), título de um poema de Maiakovski,
escrita em caracteres cirílicos.
Além da antena plugada nas
novidades, Caetano continua detalhista. Assim como fez em Fina estampa, caprichou no sotaque das canções em inglês. No
processo, contou com a ajuda de Duncan Lindsay, irmão do cantor e compositor
Arto Lindsay, como ele um americano criado em Pernambuco. Queria entender
melhor quais são as expressões consagradas e quais o autor inventou. Um bom
exemplo é o título do disco, A foreign sound (som estrangeiro)
–perfeito para o conceito e intenção do trabalho – que foi tirado de um dos
versos da quilométrica canção It’s alright, ma (I’m only bleeding), de Bob Dylan. É uma expressão de força mais poética do que
corriqueira. “Duncan quis trabalhar meu sotaque, mas eu não o ajudei muito”,
brinca.
Prestígio – Ao contrário do que
se possa imaginar, Caetano afirma não estar cultivando grande expectativa em
relação ao CD. “Apesar de ser um disco muito sincero, com um comentário
implícito da minha vivência dessas músicas no Brasil e do Brasil através da vivência
dessas músicas, e da altíssima qualidade dos músicos, não olho para ele como
sendo um incremento da minha popularidade. Se eu quisesse estar atento à
manutenção do status conseguido, talvez evitasse fazer um negócio assim”, diz
ele, que há algum tempo desfruta de prestígio junto à crítica internacional e
às pessoas ligadas em sons alienígenas.
Ao longo dos anos, além de
créditos Caetano conquistou amizades com pessoas de altíssima importância na
formação de opinião. Uma delas é David Byrne. “Acho que Caetano fez este disco
à sua maneira idiossincrática e não está seguindo o modelo Julio Iglesias. Para
um nova-iorquino, sua seleção de canções é parte surpreendente, parte óbvia
(Cole Porter) e parte peculiar e até perversa (Feelings)”, disse Byrne a ISTOÉ. Outro amigo-fã é o cineasta espanhol Pedro
Almodóvar, que invariavelmente passa temporadas na espaçosa casa de veraneio
que o compositor mantém em Salvador. “Quando escutei sua versão de Love for
sale (eu diria subversão, por conta do risco) fiquei paralisado como Anjelica
Huston em Os vivos e os mortos, quando ela desce uma escada e escuta uma canção que
a faz lembrar um amor de juventude que a amou até ficar doente e morrer. Mas
minha paralisia era de gozo e assombro”, contou Almódovar a ISTOÉ. A lista de
celebridades internacionais em sintonia com o trabalho de Caetano Veloso ainda
se estende à atriz Candice Bergen, à escritora indiana Gita Mehta e até a
Richard Gere, que o conheceu no início da década de 1980, quando era casado com
a pintora brasileira Silvinha Martins. A admiração de Gere é tamanha que na
festa da revista Vanity Fair – acontecida depois da entrega do Oscar de 2003,
quando Caetano cantou o tema do filme Frida –, o ator não só se entregou aos rapapés como beijou a mão do baiano.
Capri – São muitos os
admiradores mundo afora, especialmente na Itália e na França, países onde ele
tem maior penetração. O cantor italiano Lucio Dalla já o ciceroneou em uma
cinematográfica visita a Capri, com direito a passeios em superlancha pelos
mares azuis-andorinha da região. Michelangelo Antonioni, que nos anos 1990 o
conheceu no Brasil, num jantar na casa do diretor Cacá Diegues, tornou-se seu
fã após ouvir uma de suas canções. Depois ficaram amigos. Caetano até compôs em
italiano a música Michelangelo Antonioni, incluída
no disco Noites do norte (2000). A retribuição aconteceu de imediato. Quando
completou 89 anos, em 29 de setembro de 2001, o diretor de A noite produziu uma
grande festa de aniversário na sua residência de verão em Trevi. Na capa do cardápio
estava impresso: “Almoço de gala para Caetano Veloso em casa de Michelangelo
Antonioni no dia de seu aniversário.”
O êxito e o crescimento
profissional, evidentemente, se calçam no talento do artista. Mas a ascensão
financeira, contam nos bastidores, em muito se deve ao seu casamento com Paula
Lavigne, que sabiamente abandonou a carreira de atriz para se dedicar à de
empresária. Dona da Natasha Produções, ela hoje mantém um selo musical próprio,
se embrenha na produção de cinema – vem com sua marca o sucesso Lisbela e o prisioneiro – e empresaria o marido, entre outras atividades.
Conhecida nas internas como General, tal o pulso firme com que leva adiante sua
empresa e seus contratos, Paula abriu os olhos de Caetano para cultivar um bom
legado. Ele é dono de um apartamento na avenida Vieira Souto, em Ipanema, zona
sul do Rio, um dos mais caros metros quadrados do Brasil; da bela casa em
Salvador; e de um apartamento no sul de Manhattan, só para citar alguns dos
seus bens. No Rio, circula num Audi blindado – Paula num BMW, também blindado.
Seu cachê hoje varia entre R$ 80 mil e R$ 100 mil, o que o entroniza entre os
artistas mais poderosos do País.
Caetano Veloso também é nome de
status na relação comercial de interesses. Quando está em São Paulo, seu
endereço e o de Paula é o exclusivo hotel Fasano, onde se hospedam na
nobilíssima suíte número 1701, que permanece trancada com as roupas do casal.
Pelos 120 metros quadrados de luxo e conforto, normalmente paga-se a diária de
R$ 2.655. Mas pela amizade de Paula com João Paulo Diniz, sócio dos
empreendimentos Fasano, a hospedagem é total cortesia. Assim como os jantares
com vasto número de amigos no restaurante do hotel, onde a conta de uma
refeição pode exceder os R$ 500 para um casal.
Cinema – Sagacidade e tino
comercial fazem parte do caráter empresarial de Paula Lavigne. São
características que, de certa maneira, suprem a falta de pragmatismo de Caetano
no assunto. Ele é essencialmente um pensador, que adora discutir e palpitar em
todas as áreas, sempre com frases veementes e idéias defendidas com rugidos
leoninos. Quando a conversa chega no cinema, arte da qual foi crítico na
juventude, é capaz de ficar horas dissertando sobre o trabalho de diretores
nacionais e internacionais. “Apesar da minha grande admiração por Glauber
Rocha, eu tinha muitas reservas em relação ao conjunto da obra dos
cinemanovistas. Achava que eles estavam atados a questões do nosso
subdesenvolvimento que não conseguiam superar. Se escoravam numa atitude
intelectual e política exigentes ou pretensiosas. Era uma ambição desmedida,
mas chamou a atenção da crítica européia e acabou formando cineastas de
trabalhos relevantes. Todos eles se adestraram mais dos anos 1970 em diante,
passando a fazer filmes mais bem-acabados e mais comerciais. Cacá Diegues, por
exemplo, tem uma obra de peso. De todos os filmes destes últimos dois anos, o
que mais me tocou é Deus é brasileiro.”
Seus pensamentos sobre a sétima
arte podem ser melhor destrinçados no único filme que dirigiu, O cinema falado, um exercício verbal em imagens cujo recente
relançamento em DVD ele coloca no mesmo patamar de importância do novo disco. É
neste filme que Caetano destila seus questionamentos estéticos e declara sua
paixão pelo diretor italiano Federico Fellini, por ele colocado entre os
grandes de todos os tempos. Há algo de religioso na visão de arte de Caetano.
Religioso no sentido da prática, do exercitar artístico com determinação,
porque em relação às crenças o cantor já se assumiu publicamente um ateu. Em especial
na inédita canção Diferentemente, apresentada às
exclusivas platéias que, em dezembro passado, pagaram R$ 500 por cabeça para
vê-lo de perto em shows beneficentes no paulistano bar Baretto.
A convicção atéia pode até ser
interpretada como uma contradição, quando se pensa na sua ligação atávica com o
candomblé. “Tenho um temperamento místico, cresci em ambientes impregnados de
rituais católicos. Assumi responsabilidades ritualísticas, mas isso não me
transformou numa pessoa religiosa”, justifica. Aliás, definir o compositor,
cantor, escritor, pensador, cineasta, ator e artista plástico esporádico é
tarefa difícil até para o próprio. Para facilitar, Caetano Veloso se
autodenomina um malúcido – neologismo com as palavras maluco e lúcido. Sua
pátria é sua língua
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