O GLOBO
8/1/2012
Ainda cá
Caetano Veloso
“A Bahia está viva ainda lá”, mandava dizer a Adalgisa do samba de Caymmi. Estou em Salvador desde a
véspera de Natal e tenho a irresponsável sensação de que a Bahia ainda está
viva aqui. A arquitetura feia e caótica que tomou conta das cidades brasileiras
domina; o Pelourinho parece que virou uma cracolândia; o Porto da Barra não é
tratado como uma joia, como deveria, mas como um depósito de lixo; as praias
que dão para o mar aberto se livraram das barracas fixas, mas, sem um
planejamento que acompanhasse a decisão do errático prefeito, os vendedores não
ambulantes vão se ajeitando devagar e sem método, o que deixa os visitantes
entre o desconforto e o medo de invasões mais perigosas; os vereadores votaram
lei que permite a subida do gabarito para as construções na região em até 50%, assegurando
sombra de prédio na areia antes das dez da manhã e depois das duas da tarde;
enfim, o mundo acabou.
No entanto, comi acarajé da
Cira à brisa da tarde no largo da Mariquita, fui à missa do Rosário dos Pretos
(que continua sendo celebrada na igreja do Carmo, já que a da Irmandade do
Rosário dos Pretos — aquela azul que domina a vista do Largo do Pelourinho —
continua com a restauração inacabada, uns dizem que por causa das chuvas
grandes que houve antes do verão, outros, que por causa de brigas entre Iphan e
Ipac, sei lá), simplesmente olhei o mar azulmarinho cercando a cidade como um
muro muito concreto e sobrenatural.
Essa imagem do mar como um muro
me ocorreu quando me mudei para Salvador, em 1960. A essa altura eu conhecia
melhor o Rio do que Salvador: tinha morado o ano de 1956 todo em Guadalupe — e
ia ao Centro toda semana, a Niterói de vez em quando (para tomar banho de mar
no Saco de São Francisco) e, com menor frequência ainda, à Praia Vermelha.
Leblon, Ipanema, Arpoador, Copacabana — nessa ordem —, visitei algumas vezes,
quando meu primo Carlos Alexandre, escrivão de polícia, resolvia fazer um
passeio que ia, passando por Realengo, Bangu e Jacarepaguá, até o Recreio dos
Bandeirantes, onde nos banhávamos, e voltava pelos bairros da Zona Sul.
Eu e todos os meus parentes
baianos que viviam no Rio achávamos o mar do Rio menos azul do que o da Bahia.
Não era exatamente isso: era a névoa permanente da Guanabara que deixa os
horizontes embaçados, o céu com uma cor menos precisa e as pedras que rodeiam a
Baía — e as que encaram o mar aberto — parecendo montanhas distantes. Em suma:
há menos nitidez no Rio. Fui ao Arizona e vi que há menos nitidez na Bahia do
que no Arizona.
Pois bem: há menos nitidez nas
paisagens vivas do Rio do que nas de Salvador. Isso se expõe de forma marcante
na linha dura do horizonte marinho soteropolitano. Na primeira metade dos anos
1960, estudando e namorando em Salvador, eu me surpreendia com um sólido muro
azul que de repente aparecia entre duas casas de uma ladeira: o mar. Escrevi
uma canção para Gal, encomendada por Arto Lindsay para o belo disco que ele
produziu para ela, “O sorriso de gato de Alice”, chamada “Bahia, minha preta”,
em que essa imagem do muro aparece em verso e melodia. Pois hoje à tarde,
olhando da varanda de minha casa no Rio Vermelho, Catarina, a namorada de meu
filho, me disse que, ao acordar e sair para o pátio, achou que o mar fosse um
muro azul. Quer dizer: viva ainda.
Por que um prefeito não toma o
Porto da Barra como assunto de grande importância? Por que nenhum dos que
passaram pelo cargo adotou essa praia? Uma pequena enseada entre os fortes de
Santa Maria e de São Diogo, em perfeito anfiteatro mirando o pôr-do-sol, com
águas de temperatura fria mas não gelada e de teimosa limpidez, o Porto tem
sido a praia do povo da Cidade da Bahia. Um trecho tão pequeno e tão
privilegiado deveria ser tratado como uma preciosidade.
Claro, viriam os idiotas da
objetividade chiar porque estarse-ia dando atenção especial a um local da
cidade, gastando nele (em limpeza, iluminação, policiamento e mesmo
facilitações para negociantes) o que deveria ser poupado para resolver as
carências de áreas mais necessitadas. Não sou idiota, nem mesmo da objetividade, portanto
não penso assim. Amei o filme “Trampolim do Forte”, em que os meninos que
saltam do mini quebra-mar de Santa Maria aparecem no ar, sob a água, na
superfície — e a praia do Porto tem sua crônica e seu retrato emocionado. Nesse
filme, na cidade vista do mar, até os prédios que oprimem o Corredor da Vitória
fazem de Salvador um lugar tão lindo quanto Istambul — ou como a Salvador do
filme inacabado de Orson Welles.
O filme de João Rodrigo Matos é
poderoso em sua revelação do quanto pode a Cidade do Salvador. Tudo nele tem a
força que sinto aqui. Força teimosa que está na resposta dada a Glauber pelo
profeta Edgar Santos quando este, reitor da UFBA, sabedor de que Glauber fazia
campanha contra Martim Gonçalves, o diretor da Escola de Teatro, ouviu do
futuro cineasta um pedido de contribuição para não sei que projeto: “Você não
entende nada de teatro, mas passe aqui amanhã para pegar o dinheiro”.
Isso está no livro de Nelson
Motta (é a grande cena do livro). O resto é história: o Cinema Novo, os atores
da Escola e seus descendentes Lázaros e Wagners, a sede do Olodum construída
por Lina Bardi, Daniela, Ivete e Magary Lord. Rumpilezz, Cascadura, Neojibá,
Sanbone. Apesar da fase sombria (com muito sol) e de ter tanto a deplorar, não
tenho outro jeito senão mandar dizer que a Bahia está viva ainda.
17/8/2010 - Sorveteria da Ribeira, Caetano e Fafa |
17/8/2010 - Sorveteria da Ribeira, Fafa e Regina Casé |
17/8/2010 - Sorveteria da Ribeira, Vanessa da Mata, Fafa e Caetano |
"Sempre
que eu posso vou a Sorveteria da Ribeira, para mim é como renovar a alma, os
sabores dos sorvetes são maravilhosos, os turistas voltam para suas origens com
o gosto da Bahia incorporado no seu viver." (20/1/2012)
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