Foto: Luiz Paulo Machado |
“Dá a impressão que nós da música popular
continuamos adotando uma posição elitista que mantém o peso semântico da
palavra poesia como algo erudito, sério, importante. Eu acho a música mais
importante que a poesia. Muitas pessoas, no entanto, querem conferir um status
à música popular dizendo que ela chega a ser poesia. É como as pessoas que
estudam música erudita e dizem: "Realmente, a invenção melódica deste
samba chega ao nível de música erudita". Na verdade, o problema da divisão
entre música popular e música erudita é muito mais de áreas objetivas de ação
que de algo perceptível pela criação.
(…) Nós, compositores da classe média, não fazemos
uma arte erudita mas também não fazemos uma arte popular - "popular"
entendido como algo que sai do povo. O povo é tido como uma espécie de produtor
puro de coisas não contaminadas por algo que não seja a sua essência. Ver o
povo dentro desses moldes é uma atitude medieval.”
[Caetano Veloso, 1977]
Debate
SUPLEMENTO ESPECIAL - CHICO, CAETANO, EDU e ALDIR
BUARQUE, Chico; LOBO, Edu; BLANC, Aldir & VELOSO, Caetano. “A MPB se Debate”. Suplemento Especial da revista Homem, set. 1977 [Participaram do debate Sérgio Cabral, Nelson Silva e Fernando Pessoa Ferreira]
BUARQUE, Chico; LOBO, Edu; BLANC, Aldir & VELOSO, Caetano. “A MPB se Debate”. Suplemento Especial da revista Homem, set. 1977 [Participaram do debate Sérgio Cabral, Nelson Silva e Fernando Pessoa Ferreira]
Foto: Luiz Paulo Machado |
UM PEGA QUE DUROU UMA NOITE INTEIRA
Dez anos depois dos festivais, como está a música popular brasileira? Se
vocês pensam que para Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo e Aldir Blanc
esta pergunta é simples de responder, fiquem sabendo que eles se reuniram
discutindo sobre isso das 22h de uma quarta-feira até às 4h da madrugada
seguinte.
Eles estavam ali, reunidos no bar particular que Chico montou em sua
casa do Alto da Gávea, porque sem dúvida são os nomes mais importantes da
geração mais talentosa que a MPB já produziu (Milton Nascimento, Gilberto Gil e
Paulinho da Viola, de igual geração e talento, não puderam aparecer: estavam
viajando). O pega começou sem Caetano, que ensaiava seu show e só apareceu lá
pela meia-noite. E, com a missão de botar mais lenha na fogueira, também
participaram do debate o crítico, produtor musical e compositor Sérgio Cabral
(e mais Nelson Silva, da sucursal carioca da Abril) e Fernando Pessoa Ferreira,
de Homem). Marieta Severo, mulher de Chico, preferiu nem ficar por perto: pegou
Wanda, mulher de Edu, e as duas foram conversar lá embaixo, bem longe da linha
de tiro.
HOMEM — Várias tendências têm surgido ultimamente na
MPB, através de novos compositores, isolados ou em grupos. Apareceram os
mineiros, os cearenses, os pernambucanos, estão aparecendo os gaúchos. O que
vocês acham desses novos, os que estão pintando depois de vocês?
ALDIR BLANC — Tenho uma crítica a fazer à geração que apareceu
depois da minha e que, prejudicada por um excesso de publicidade, não acha
meios de se encontrar, de ser ela mesma. Esse pessoal tende a um caminho
imitativo e jamais conseguirá construir um trabalho estético de valor se não
sair dessa para se compreender. O cara tem de pensar: "Moro num quarto na
Pavuna e é a partir daqui que eu escrevo". Se ele não fizer isso nunca
conseguirá escrever algo de valor. Cada um de nós, aqui, provavelmente tem seus
seguidores, embora abominemos a existência deles. O que desejamos é que cada um
consiga a mais plena criação possível, pois só assim será possível manter a
vitalidade do processo.
HOMEM — Esse não é um problema exclusivamente de hoje. Na geração de Chico e Edu houve gente imitando a geração anterior, assim como na geração do Aldir houve gente seguindo a geração do Chico. Isso sempre aconteceu. E acontece até surgir alguém que cria uma linguagem nova.
EDU LOBO — São as pressões das próprias fábricas de discos
que levam as pessoas a fazerem coisas já consumidas e aceitas.
ALDIR — Isso cria um dilema terrível para nós: como
poderemos lutar por um tipo de trabalho estético e ético, contra o domínio da
multinacional à qual cada um de nós está ligado? O fato é que não temos
controle sobre uma parte da produção, o valor de uso hoje foi maquiavelicamente
transformado em valor de troca. A multinacional pega um sujeito no subúrbio,
veste-o bem e muda seu nome, de Aníbal da Silva para Joseph McLean. Essa transformação
do valor de uso em valor de troca é feita dentro de nosso próprio país, sem que
os brasileiros tenham qualquer tipo de lucro. Aliás, há um que lucra: aquele
suburbano em que investem, mas isso à custa da sua despersonalização.
Precisamos tomar uma posição a respeito disso porque é uma política cultural.
SÉRGIO CABRAL — Só discordo de colocar isso como um fato novo,
mas não acho que por ser antigo não deva ser combatido.
HOMEM — Essa política afeta sobretudo a quem pretende começar a divulgar seu trabalho. Mas vocês estão acima disso, já superaram essa fase, não?
ALDIR — Sim.
EDU — Acontece que o cara que topa essa jogada das
gravadoras é aniquilado no mesmo momento em que. aparece, mesmo que dê certo.
Pode até ser um cara com algum talento, uma pessoa que poderia fazer alguma
coisa boa, mas ao entrar nessa onda artificial fica completamente acabado. Dura
dois, três anos, mas será varrido no momento em que a onda mudar. Quando a onda
acaba ele acaba junto. Não sobra nada desse cara, que logo é trocado por outro.
HOMEM — Mas muitas pessoas não querem mais que
aproveitar a onda até que ela acabe.
ALDIR — O problema é que são as gravadoras que decidem
quando a onda vai acabar e ser substituída por outra.
HOMEM — A Jovem Guarda, por exemplo, foi inventada e planejada. Pelo que se sabe, Roberto Carlos está consciente de que foi um ídolo inventado pelo Magaldi e pelo Carlito Maia.
ALDIR — Esse é um caso diferente.
HOMEM — A diferença não seria que Roberto Carlos, por acaso, tem talento e pôde sobreviver ao passar da onda?
ALDIR — Não. É que na televisão a dinâmica é outra.
Lembro-me quando escolheram Ivan Lins para ser ídolo. Ivan é um cara
extremamente competente e canta bem, mas o Boni (NR: José Bonifácio Sobrinho,
diretor da TV Globo), ao escolhê-lo como parâmetro de um programa musical,
tirava o som da tevê que tem em seu escritório, guiando-se apenas pela imagem.
Considero isso uma grave deformação do critério de respeito ao ser humano que
deveria existir em relação aos que fazem música. Por que não protestar contra o
fato de um cantor ter a sua voz anulada num aparelho que é transmissor de som e
imagem? É que aquilo obedecia rigorosamente à estética da Globo na época.
EDU — Que permanece até hoje.
ALDIR — Mas hoje a tendência é para a vaselinagem. Querem
nos fazer supor que temos o domínio da técnica, ou, se não o domínio, um certo
conhecimento. Cada um de nós pode fazer um disco e opinar sobre a casa, sobre
censura, sobre uma série de detalhes. Entretanto, sei de vários compositores de
valor que estão sendo censurados não por Brasília ou pelas censuras estaduais,
mas pela política das gravadoras.
EDU — Das multinacionais.
ALDIR — Isso vem acontecendo em todos os níveis, de
Edu a Sueli Costa. É uma denúncia que considero muito grave: a gravadora pode
barganhar num nível que foge ao nosso controle. A barganha é feita entre o
advogado da gravadora e uma área específica do governo, que confia a essa
figura o poder de dizer quais são as coisas graváveis ou não. Recuso esse
direito a quem quer que seja e estou certo de que todos aqui recusam.
HOMEM — Por que você não cita nomes?
ALDIR — Cito. Por exemplo, o trabalho que é feito hoje na
RCA Victor pelo Dr. Duran e na Odeon pelo João Carlos Muller não tem qualquer
relação com o trabalho artístico e não favorece em nada a criação.
HOMEM — A que eles se propõem?
ALDIR — A uma barganha industrial. É preciso gerar
dinheiro a qualquer preço, a roda não pode deixar de girar. Eles se propõem a
olear ainda mais essa roda. Isso tem um preço para o criador, para a cultura e,
conseqüentemente, para aquele que ouve.
HOMEM — Todos vocês sofreram esse tipo de pressões?
CHICO BUARQUE — Não sinto exatamente "pressões". O
negócio é feito agora num nível mais sofisticado do que era há três ou quatro
anos. A censura naquela época era ostensiva e hoje ela é vaselinada.
HOMEM — Como é essa censura vaselinada?
CHICO — Há hoje um interesse menor em proibir uma música
minha, por exemplo, ou do Caetano, do Gil ou do Edu. Essa preocupação não
existia antes...
HOMEM — Esse interesse é da censura ou das gravadoras?
CHICO — As duas coisas caminham juntas. Não podemos
deixar de levar em conta a força da opinião pública. Hoje, quando uma peça do
Plínio Marcos é proibida há uma grita muito maior do que havia há cinco anos
atrás. Sentimos que há uma preocupação liberal em diversos setores. Há cinco
anos esses setores já estavam insatisfeitos, mas hoje eles se manifestam
abertamente.
EDU — Até os setores capitalistas estão chiando.
CHICO — E assim como o presidente da federação
não-sei-de-quê chia, a Philips, representante da rainha da Holanda, chia
também.
HOMEM — Vocês poderiam dar exemplos dessa ação repressiva das gravadoras? Digamos que ao gravar um disco vocês queiram incluir certas músicas que não interessam à gravadora. O que é que ela faz?
EDU — Já fui aconselhado várias vezes assim:
"Pega um troço teu de cinco anos atrás, algo que funcionou, e regrava
isso". São pedidos, conselhos, ditos de forma aparentemente afetuosa.
Acontece que não me interessa repetir o mesmo de cinco anos atrás.
ALDIR — Depois que o meu disco "Galos de
Briga" saiu, o advogado da RCA escreveu pra Brasília dizendo que não havia
motivo de preocupações, pois a gravadora seria mais comedida no lançamento
seguinte. Ele pretende exercer sua atuação ao nível de criação, determinando o
expurgo das faixas onde possam existir equívocos. "Os equívocos saídos no
'Galo de Briga' não mais acontecerão neste ano". Essa carta existe nos
arquivos da RCA, é só pedir uma cópia.
CHICO — Há uma série de artimanhas às quais lançamos mão
para facilitar a liberação de nossas músicas. São tantas que até podemos falar
nisso. Nesses casos, a gravadora, que encaminha a música para a censura, teria
de ser um cúmplice, mas descobri que, na verdade, a gravadora abria o jogo.
Tinha medo de represálias e boicotava meu talento de simulador.
EDU — O cara da gravadora tenta tudo que puder para te
convencer a fazer alguma coisa mais fácil de vender, mas você tem ainda a
garantia de que ele prefere não te perder. É com essa garantia que você joga.
Se dissermos a ele que queremos fazer um disco com duas faixas somente, uma de
cada lado, vai ser terrível para ele, mas ainda assim preferirá que o disco
seja feito na sua gravadora. Não dizem: "Se você não fizer como eu quero,
caia fora". Apenas dão conselhos sobre o que "devemos" ou não fazer.
ALDIR — Eles sabem que, no mínimo, teu disco venderá
cinco mil cópias. Em geral isso já será o suficiente para cobrir o investimento
feito na produção. A partir daí tudo é lucro e, além desse lucro, boa parte do
dinheiro vai reverter pra Socimpro, onde as gravadoras recolhem, como
produtoras, 50% do apurado nas vendas em lojas.
HOMEM — O que é a Socimpro?
ALDIR — Uma sociedade de produtores de discos.
Acontece que os produtores filiados à Socimpro são as próprias gravadoras. Um
verdadeiro produtor jamais receberá da Socimpro, embora ela seja, oficialmente,
uma associação de produtores. Mesmo que a Socimpro falhe, mesmo que o esquema
montado a partir de cinco mil cópias também falhe, a gravadora ainda descontará
o prejuízo no ICM. É um grande negócio...
SÉRGIO — Fazer discos no Brasil é um grande
negócio?
ALDIR — Um negócio onde o prejuízo é impossível.
SÉRGIO — Então poderíamos dar essa dica aos
leitores: montem gravadoras que ficarão ricos.
CHICO — Eu jamais daria esse conselho. Como é que
se conseguiria entrar no esquema da distribuição? Iria brigar com a RCA, com a
WEA, com a Philips, com a Odeon e com a TV Globo? Seria uma luta inglória.
EDU — Principalmente a briga com a TV Globo, pois a
Som Livre não é brincadeira.
HOMEM — Até que ponto a Som Livre tem prejudicado
ou favorecido a música popular brasileira?
EDU — Só tem prejudicado.
CHICO — Concordo.
HOMEM — Por quê?
EDU — Os caras são tão gananciosos que não têm
cuidado algum com a música popular brasileira. Para eles só interessam as
músicas das novelas e a execução imposta. Essas músicas são mesmo tocadas, são
cantadas pelo povo, mas ninguém sabe quem são o autor e o cantor. São músicas
dos personagens da novela. Antigamente tínhamos o problema da "música da
cantora". A gente dava a música pra cantora interpretar e ninguém sabia
que o autor era a gente, mas, pelo menos, sabiam quem era a cantora.
CHICO — Hoje em dia só sabem que a música é da
"Marcela", personagem da novela tal.
EDU — A Som Livre faz isso todo o tempo, dispondo
de uma máquina poderosíssima, e vende mais discos que todo o mundo. Pode impor
e põe tudo na parada de sucessos.
ALDIR — Não conheço qualquer critério de música
popular brasileira na Som Livre. Seu único critério é rigorosamente comercial.
Quando uma novela vai ser lançada, a Som Livre dá uma geral, procurando apanhar
os lançamentos nacionais mais significativos de cada gravadora. Isso não tem o
menor critério cultural.
EDU — Cultura é a última coisa que passa pela
cabeça deles.
ALDIR — Sob esse aspecto a Som Livre é muito mais
nociva que qualquer outra gravadora, até mesmo porque todas as outras abaixam
sistematicamente a cabeça para poderem colocar faixas suas nos elepês da Som
Livre, que são previamente preparados à guisa de promoção.
CHICO — Nesse esquema desleal não estão só as
músicas de novelas, mas também aqueles discos em que a Som Livre encaixa vinte
músicas. Poderia encaixar até trinta, se quisesse, mas sucede que, para isso,
tem de comprimir os sulcos da gravação e o disco não presta. Essa jogada não é
invenção brasileira, existe também lá fora, mas é uma vigarice. O cara pensa
que está levando a maior vantagem se comprar um disco com vinte faixas,
julgando-se mais malandro que o otário que compra um disco só com dez. Acha que
está recebendo mais por seu dinheiro. Só que a qualidade de som do disco vai
pras picas. O sulco fica tão estreito que a agulha já não chega ao fundo...
EDU — O som se achata, os graves e os agudos
somem...
CHICO — O malandro bota esse som na aparelhagem que
a TV Globo convenceu ele a comprar e ouve aquela porcaria. E depois de ouvir o
disco umas dez vezes a agulha já começa a pular...
ALDIR — e a agulha também se acaba!
CHICO — Se formos olhar na lista dos discos mais
vendidos encontramos só Vários, Vários. Ou é música de novela ou é Os Grandes
Hits de/// é Os Grandes Hits
HOMEM — Recentemente, alguém falou que a qualidade das músicas das novelas só não é melhor porque muitos compositores se recusam a trabalhar pra novela, desconhecendo que ela é hoje o grande meio de comunicação.
ALDIR — Isso é uma mentira deslavada. A verdade é
que ninguém faz música pra novela. As gravadoras é que cedem determinadas
faixas para as emissoras de televisão.
CHICO — A última trilha sonora encomendada para uma
novela foi feita por Toquinho e Vinícius para O Bem Amado. Como saía bem mais
caro, deixaram de encomendar trilhas. Fazê-las dava o mesmo trabalho que uma
trilha de filme ou de peça de teatro e era pago igualmente.
ALDIR
— As emissoras achavam isso um mau negócio.
CHICO — Hoje elas pegam todas as músicas de graça e
ainda conseguem um conjunto mais variado. Há uma música minha e do Caetano,
gravada por Miúcha e Tom Jobim, abrindo a novela das oito na Globo. A música
toca, toca, toca, e isso é bom para a RCA - que está lançando o LP de Miúcha e
Tom -, é bom também para a Sigla, que está lançando o disco da novela. A RCA
cedeu essa faixa inteiramente de graça, para com isso tentar empurrar as outras
faixas do elepê para o público. No caso de O Bem Amado, pelo menos a emissora
contratou Toquinho e Vinícius. Depois foi lançado um elepê com as músicas
deles, mas para isso tiveram de pagar músicos, estúdios e os direitos autorais
para os dois.
HOMEM — Você recebe alguma coisa por essa música sua que está na novela?
CHICO — Recebo os direitos de execução, como recebo
de qualquer outra música minha que esteja sendo tocada numa boate ou numa
rádio.
SÉRGIO — Menos do que se fosse tocada em rádio,
porque o que a televisão paga é ridículo.
CHICO — Agora parece que melhorou, mas ainda é
menos que no rádio. Quando eu morei na Itália, e estava lá no maior perigo, um
amigo meu veio me contar, entusiasmado, que uma música minha iria entrar como
prefixo num programa de televisão. Esse programa iria ao ar quatro vezes e,
assim, minha música seria tocada quatro vezes. Mas, por essas quatro vezes eu
iria receber uma ótima grana... a música era Roda Viva.
HOMEM — O desgaste excessivo de uma música tocada em novela, dia após dia, meses a fio, não é também um fator prejudicial?
CHICO — Acho que é. Se eu pudesse escolher não
daria música minha para novelas. A música que está nessa novela é antiga e foi
usada sem me consultarem. Quem autoriza a execução da música é o editor e não o
autor.
SÉRGIO — Estou em desacordo com vocês, pois acho
interessante ter música em novelas. A Som Livre, de fato, vai com muita sede ao
pote. Acho que ela deveria pagar uma taxa pelo uso do tema. Mas acho também que
colocar uma música numa novela é vantajoso, não só pela divulgação, como também
pelo fato de que a emissora está ocupando aquele horário com música brasileira.
CHICO — Sérgio, você precisa ver que mesmo uma
produção cinematográfica modesta concorda em pagar para ter sua própria trilha
sonora. E o que é um produtor de cinema brasileiro comparado com a Rede Globo?
Uma titica. No entanto, esse produtor faz questão de convidar compositores
brasileiros para comporem música especialmente para o filme. Isso significa
mercado de trabalho, além de uma série de outras vantagens. Já a Rede Globo,
que tem tudo na mão, pega a coisa já pronta.
ALDIR — Mesmo admitindo que o compositor brasileiro
tenha sido divulgado e prestigiado com a inclusão de sua música nas novelas do
horário nobre, não devemos esquecer que não basta ele ser divulgado ou
prestigiado: acima de tudo ele deve ser pago pelo trabalho que faz.
CHICO — Não há compositores por aí que ainda não
são conhecidos e não têm onde gravar? Por que a TV Globo não os contrata? Por
que a TV Globo não encomenda mais trilhas sonoras para as suas novelas? Não
digo que seja o caso de encarregar só uma ou duas pessoas de fazer toda uma
trilha, mas por que não encomendar composições a várias pessoas e pagar a elas
por esse trabalho?
SÉRGIO — Eu acabo de fazer uma música especialmente
para uma novela.
CHICO — E eles te pagaram?
SÉRGIO — Não. Mas o que posso falar? Vou ganhar com
uma vendagem maior de meu disco.
EDU e ALDIR — Tá errado!!
CHICO — É claro que você tem de cobrar! Não
cobraria se fosse para um filme ou uma peça? Teatro paga, cinema paga... e a TV
Globo? Não paga?
EDU — No momento em que você aceita uma proposta
dessas está sendo logrado. Posso afirmar isso de cadeira, porque já me fizerarn
três propostas para fazer música especial para três novelas diferentes. A minha
resposta foi: "Perfeito, custa tanto". "Mas custa o quê? Você
vai receber direito autoral, tua música vai virar sucesso... " "Nada
disso, custa tanto." Como o Chico disse, se um cara sem grana se vira para
pagar 200 ou 300 mil cruzeiros para a gente fazer uma trilha sonora para um
filme, por que a Rede Globo, que é milionária, não vai pagar? Quem topa isso
está sendo logrado.
CHICO — Seria a mesma coisa que eu gravar um disco
e a Philips me dizer: "Não vamos te pagar porque essa música vai fazer
sucesso e você vai ser convidado para fazer shows".
ALDIR — Seria o mesmo que a revista Homem me dar
uma coluna sobre música popular e me dizer: "Você não vai receber coisa
alguma porque essa coluna já vai te dar muita projeção".
HOMEM — As gravadoras, se pudessem, não fariam o
mesmo que as emissoras de tevê?
ALDIR — Fazem o que podem. Nós estamos acostumados,
por exemplo, a considerar a gravadora, a editora e a arrecadadora como três
entidades diferentes. Mas hoje os interesses da gravadora confundem-se com os
da editora, que se confundem com os da arrecadadora. E esses interesses vêm
sendo enfrentados pelo trabalho do Conselho Nacional de Direito Autoral. Esse
trabalho, embora venha recebendo algumas críticas, pelo menos tenta eliminar o
vínculo entre aqueles interesses. Podemos voltar nossas baterias para a
gravadora, representante de uma multinacional, e para a editora, representante
da gravadora. O tempo das editoras independentes já passou.
HOMEM — O que fazer para contornar esse problema?
EDU — Se ao menos tivéssemos o direito de não
liberar o fonograma (RN: som gravado. No jargão dos meios musicais, a palavra é
usada para designar a gravação de uma faixa de disco), não permitindo que ele
fosse transado pela gravadora, a coisa mudaria por completo.
HOMEM — Não passariam a botar só música importada nas novelas?
EDU — Mas aí a coisa começaria a ficar ruça. Eles
acabariam precisando de nós. Os compositores deveriam poder cobrar por seu
trabalho e ter o direito de recusar ou não o seu uso.
HOMEM — Qual seria o meio de obter esse direito de veto?
EDU — Não sei. Quando você grava uma música, a
gravadora passa a ser proprietária do fonograma. Outro dia conversei com
Menescal (NR: Roberto Menescal, diretor artístico da gravadora
Philips-Phonogram) sobre isso e pedi uma garantia de que uma música minha não
seria jogada em novela. Ele me respondeu que a Philips adota a política de não
ceder as músicas sem o consentimento do autor. Assim como há peças que eu não
sinto vontade alguma de musicar, existem novelas nas quais não gostaria de ver
uma música minha.
HOMEM — A coisa então se resume numa relação entre o autor e a gravadora? O autor não tem outra maneira qualquer de fazer respeitar seus direitos?
EDU — Taí, tem sindicato que dá até carteirinha...
ALDIR — Mas o nosso, como tantos outros, é um
sindicato manipulado. Qualquer reivindicação apresentada por nós provavelmente
seria solapada por uma série de esquivas. Só será possível mudarmos essa
situação se tomarmos o controle dos sindicatos dos compositores e dos músicos
e, a partir daí, estabelecermos uma política de defesa dos interesses da
classe. Quem impediu os compositores brasileiros de se unir foram eles, os
atuais dirigentes dessas entidades. Adotaram uma política planejada dentro das
editoras e arrecadadoras. Adoto como princípio não poupar nome algum que esteja
ligado e essa máquina, por maior que seja o valor de seu trabalho artístico.
Humberto Teixeira, na minha opinião, é um gangster. Tem uma obra contra a qual
não posso falar coisa alguma, mas na sua atuação no processo do direito autoral
brasileiro ele é meramente um gangster.
SÉRGIO — Acontece que a única coisa que durante
certo tempo uniu os compositores foi a luta contra a censura. Aí surgiu a
Sombrás, o primeiro movimento de verdadeira união entre os compositores. Até
então eles só se uniam dentro de suas sociedades de direito autoral. Na Sombrás
descobriu-se o seguinte: há muito tempo existe um sindicato dos compositores,
mas nenhum de nós era filiado a ele. E havia pessoas tirando vantagem disso.
ALDIR — O importante pra nós é tomar esse
sindicato.
EDU — Vou dar um exemplo de como funciona um
sindicato de músicos nos Estados Unidos, para que vocês tenham uma idéia de
como é diferente a coisa por aqui. Lá, cada cidade tem a sua Union e qualquer
trabalho que você fizer é pago através dela. Se o empregador não pagar, fecha
em 24 horas - mesmo se for a Columbia, a maior gravadora americana. E você
recebe o justo valor de seu trabalho. Para poder trabalhar por lá você tem de
ser filiado a esse sindicato. Há pessoas trabalhando clandestinamente...
estrangeiros... mas se forem apanhados serão postos para fora do país. O fato é
que não há essa safadeza aqui, de contratarem um músico menos conhecido para
poder pagar um preço mais baixo. Se conseguíssemos ter um sindicato desses aqui
seria ótimo...
ALDIR — É um modelo que podemos tentar seguir.
CHICO — A idéia da Sombrás é essa.
HOMEM — Mas não é evidente que esse tipo de sindicato não foi doado?
EDU — Foi uma conquista dos músicos. O diretor de
cada Union é um músico.
HOMEM — No Brasil, é possível alguém viver só com o trabalho de compositor?
ALDIR — No momento tenho outra transação que não
tem a ver com música, mas não tem a ver só até certo ponto. Foi em conseqüência
do fato de minhas letras fazerem sucesso que fui convidado a escrever no
Pasquim. Devido ao meu trabalho no Pasquim fui convidado a escrever para Homem.
Vivo exclusivamente do meu trabalho como letrista e do meu trabalho
jornalístico. A questão de "dar ou não dar para viver" é sempre
relativa. O fundamental é saber se o que ganho corresponde ao trabalho que fiz.
Quando reclamei da SICAM, minha arrecadadora, fui expulso e fiquei um ano sem
receber praticamente nada. Nesse período eu tive Dois pra Lá, Dois pra Cá, O
Mestre-Sala dos Mares, Kid Cavaquinho e De Frente pro Crime, entre outras músicas.
Não recebi nada por elas durante um ano inteirinho. Mas vi que sempre dá para
esperar mais da nossa própria capacidade de resistir. Cheguei onde estou porque
me decidi a dizer não. Resistir não é só uma opção nossa: é tudo que nos resta
para que possamos continuar sendo nós mesmos. É o único caminho para sair desse
mato. Mas não venham nos rotular de heróis, pois essa resistência nos tem
custado a pele e dificultado as coisas, mas o que queremos é o inverso disso:
tornar mais fácil o acesso de todas as pessoas que compõem aos meios de
comunicação. Todos nós conhecemos compositores ótimos que não conseguem sequer
gravar um compacto.
EDU
— Nem sequer um jingle.
ALDIR — Sei que, no momento, minha situação dentro
do panorama musical é privilegiada. Mas faço questão de pôr fogo no capim
debaixo de meu cavalo, pois sei que a longo prazo serei um dos primeiros a
pegar fogo. Daqui a três anos, quando escolherem as novas caras, os novos
cabelos, as novas barbas, talvez não sobre nada de mim. Se alguma coisa sobrar
de nós será a nossa música, a letra, e não o marketing da fábrica. Cada vez a
roda gira mais rápido e a gente não tem como fazê-la parar.
HOMEM — Em que medida a concorrência da música
popular importada tem afetado a nossa música?
EDU — Voltamos ao problema dos discos com 20
faixas. Esses discos custam 50 mil cruzeiros à gravadora e vão concorrer com
discos produzidos no Brasil que custam 400 mil cruzeiros. Citamos a Som Livre,
mas esses pacotes são feitos por todas as gravadoras. Um disco do Stevie Wonder
sai por uma ninharia para ser lançado no Brasil e vai competir com um disco de
Chico que custa 400 mil contos. A concorrência é nesse plano.
CHICO — Esse problema também existe no teatro e no
cinema. No teatro, em geral escolhem uma peça que já vem de sucesso na
Broadway, pegam dois ou três atores que estejam fazendo sucesso em novela... e
formam uma companhia. O texto custa só um direito autoral pequeno, não tem
problema com a censura e já vem com o aval da Broadway.
HOMEM — Na entrevista de Carlos Manga que publicamos em nossa edição de maio, ele propôs taxar os filmes importados como se taxa outros produtos que têm similar nacional. Os automóveis, por exemplo...
EDU — É preciso ver também que, embora não seja
cobrada taxa alguma das gravadoras pela importação de matrizes de discos
estrangeiros, é cobrada uma taxa de 180% sobre instrumentos musicais. Para
importar uma palheta de saxofone o músico brasileiro paga uma fortuna. O
resultado disso é uma péssima qualidade musical. O Brasil só fabrica um saxofone,
o Weril, que é uma porcaria.
SÉRGIO — O maestro Marlos Nobre já declarou
publicamente que o Weril é uma josta.
EDU — O som dele é horroroso mesmo. E a única opção
é comprar um sax importado, que é caríssimo - por causa das taxas. E tem de
continuar usando a palheta velha, já cheia de baba. E tem mais: há
instrumentos, como o fagote, que não têm similar nacional, mas são taxados do
mesmo modo.
CHICO — A respeito dessa taxação sobre produtos que
tenham similar nacional, temos de lembrar que o similar nacional nem sempre é
nacional. Como não interessa pra Ford - que fabrica o Corcel aqui - que venham
carros dos Estados Unidos, cria-se essa proteção. Que proteção tem o produto
genuinamente nacional?
ALDIR — Eles não vão permitir que tenhamos acesso à
técnica e aos instrumentos que ela gera. Teremos de usar mesmo o saxofone
fabricado aqui para termos de reconhecer a hegemonia deles: "Tá vendo como
fazemos melhor que vocês?" Se formos verificar, é capaz de a fábrica
nacional ser apenas um tentáculo da estrangeira. Eles sabem jogar.
CHICO — Isso mostra que a nossa briga é muito mais
inglória que a que os músicos americanos tiveram para criar as suas Unions. A
gente tem de se unir não para auxílio mútuo ou para não prejudicar os colegas,
mas sim para enfrentar o dragão. Talvez nem seja mais possível a gente se
juntar, porque o dragão está de olho. Lá nos Estados Unidos as condições são
outras. A concorrência de música estrangeira que enfrentam é mínima e eles têm
muita força.
EDU — Eles são o dragão.
CHICO — E nós somos a matéria-prima desse dragão,
ou melhor, de subdragões. Nossas gravadoras são todas empresas estrangeiras.
EDU — Nem podemos falar de mercado brasileiro, se a
gente for comparar com o deles... lá aparece de repente um cara como o Peter Frampton,
que vende 16 milhões de elepês. Naquele mercado americano, que comporta tantos,
só existem duas sociedades arrecadadoras, a ASCAP e a BMI. No nosso mercado
existem cinco.
HOMEM — Diante de problemas tão sérios, vocês
colocariam em mesmo plano o problema da censura?
EDU — Muitos caras que são só músicos dizem que a
censura não os afeta porque eles transam só com sons e a censura só se preocupa
com as letras. Acho isso uma grande basbaquice. A censura também afeta esses
caras na medida em que os impede de ver certos espetáculos, de ler certos
livros e de ter acesso a uma série de coisas.
HOMEM — O que é mais grave: a censura ou a auto-censura?
SÉRGIO — A auto-censura só existe por causa da
censura.
CHICO — Mas a auto-censura é mais grave porque existe
ao nível pessoal de cada um. A TV Educadora diz assim: "A gente não pode
porque tá proibido", e quando a gente vai ver não está proibido coisa
alguma. Nas outras emissoras, nas revistas, nos jornais, a auto-censura já se
implantou na cabeça das pessoas. Muitos portugueses sentiram-se incapazes de
criar alguma coisa após o 25 de abril porque já não sabiam como. No Brasil, a
censura ostensiva torna-se quase desnecessária. Eles perceberam que uma
proibição direta às vezes desgasta mais. Proibiram uma peça minha e do Ruy
Guerra, chamada Calabar. Mas Gota d'Água, embora enfrentando mil problemas, foi
liberada. Tenho consciência de que ela foi liberada em parte por causa da
proibição de Calabar. Essas coisas acontecem: "Chico é chato, vai chiar,
vai dar nota no jornal, já proibimos uma peça dele... " Pô, eu tenho de
chiar porque os caras atrapalham a gente paca. É um pouco como o programa do
MDB na televisão: "Como é que não temos liberdade se permitimos esse
programa?" Sempre conseguem faturar em cima dos fatos. A TV Globo também
fez isso com A Longa Noite de Cristal. uma peça de Oduvaldo Viana Filho,
anunciando que os atores de suas novelas trabalhavam nela. O sistema dá a volta
por cima, diluindo o que as pessoas dizem. Então nós temos de dizer sempre.
EDU — Falar da censura não é uma moda.
CHICO — Ela está mais branda mas daqui a um ano
pode endurecer de novo. Hoje ela pode liberar porque tem seus meios de
neutralizar.
SÉRGIO — As pessoas já estão habituadas com a
repressão. Já acham normal que alguém que fale mal do governo seja preso.
Começa a ser formado um tipo de opinião pública habituada com a violência.
CHICO — Eu nunca fui "jovem"... No meu
tempo diziam que eu era "moço", ou "garoto". Jovem, naquela
época, era adjetivo e não substantivo. Mas quando eu era mais moço a minha
geração se conscientizava para enfrentar uma barra pesada. Hoje os jovens
colocam-se distanciados e não querem participar de nada. Tudo pra eles é velho,
velho é sinônimo de ruindade... e acabou. Ficam lá "na deles",
simplesmente ignorando qualquer coisa que tenha a ver com a realidade, da qual
mais cedo ou mais tarde serão obrigados a participar. Ou veste paletó e
gravata, ou vai pro Pinel, ou vai trabalhar na Rede Globo... não podemos
culpá-los, porque são pessoas desinformadas. são vítimas da situação. Não lêem
jornal. O cara vive de saco cheio e não vai ler a Coluna do Castelo.
EDU — Não estão desiludidos porque nem chegaram a
ser iludidos.
CHICO — Consideram de muito mau gosto falar de
Arena, MDB... E no dia em que forem obrigados a entrar na realidade estarão
perdidos.
HOMEM — Sua tese não é demasiado pessimista?
CHICO — Pelo contrário, acho que esta situação não
vai durar muito tempo. É algo cíclico: a garotada que está vindo agora está
novamente no embalo. Eu me referia àquela faixa dos que pintaram entre 1969 e
75.
EDU — Você falava da garotada que adotou valores
estrangeiros.
CHICO — Agarraram-se onde puderam.
HOMEM — Gilberto Gil considera o Black Rio um negócio muito mais saudável e espontâneo que as escolas de samba, que estariam corrompidas pelo comercialismo. Qual a correlação entre esse movimento, a onda do soul, e a chamada realidade nacional?
ALDIR — Não vejo correlação alguma. O Black Rio foi
insuflado meramente por uma mudança na política das grandes fábricas de discos.
Quando Midani saiu da Philips e foi para a WEA, resolveu estimular esse tipo de
coisa que nem sabia direito o que era mas que culminou no Black Rio. Esse movimento,
a rigor, não tem e jamais terá qualquer importância cultural. Não há como
comparar o Black Rio com a história e as tradições das escolas de samba, mesmo
com tudo o que haja de discutível dentro delas. As críticas às escolas de samba
partem do próprio meio, partem do Candeia, por exemplo. Nelson Cavaquinho só
aceitou desfilar recentemente. A escola de samba, por mais questionada que
seja, é uma força real e uma cultura legítima.
HOMEM — Mas o Black Rio não é também um fenômeno de massa?
ALDIR — É evidente que não.
EDU — O Black Rio não chega a ser fenômeno nenhum.
Não há como discutir isso.
ALDIR — O Black Rio não existe, a não ser como uma
banda.
HOMEM — E esses bailes onde vão 20 mil pessoas?
ALDIR — Elas vão como eu fui recentemente, para ver
soltar um balão com 33 metros de altura. Tudo bem. O que é que as pessoas foram
ver naquele clube em Cachambi? Foram dançar soul ou foram ver um balão
gigantesco? Não vi quase ninguém dançando na quadra, ao passo que ao lado, num
terreno baldio, havia uma multidão enorme preparando as lanterninhas do balão.
É claro que havia lá muito nego que mora em Ramos, usando boné e camiseta com a
palavra "Massachusetts". Acho saudável que esse cara não goste de
morar em Ramos...porque Ramos é uma m...
EDU — Então esse nego acha que o Harlem é uma
boa...
ALDIR — Ele quer trocar a quadra de futebol do Confiança por uma quadra de
basquete do Harlem, sem saber que lá ele iria levar muito mais porrada. Não
tenho nada contra esse cara. Mas insuflar esse tipo de política em termos
comerciais é que é uma calhordice sem tamanho.
HOMEM — E essa súbita redescoberta do chorinho?
CHICO (rindo) — Tem alguma coisa por trás disso,
Aldir? Eu adoro choro, mas de repente tá todo mundo chorando...
EDU — O choro é um gênero riquíssimo, que dá muita
possibilidade de improvisar. É um material fascinante para qualquer músico. Se
o choro está pintando agora é porque os caras já estão transando há muito
tempo. Choro não se aprende a tocar em uma semana... exige um estudo e um
treino de execução. Quer dizer, demora às pampas.
SÉRGIO — A palavra súbita só é válida para os
ouvintes, não para quem faz.
ALDIR — Não existe nada súbito para músico algum.
Quando um músico começa a tocar um instrumento é fundamental que pretenda tocar
cada vez melhor. Precisa assimilar novas técnicas e novos gêneros. Mas, quando
constata que a realidade musical nacional oscila entre uma submúsica
pretensamente regionalista e uma submúsica aculturada pelas multinacionais -
como as do tipo Feelings -, esse instrumentista não sente estímulo algum para
continuar preso a essa faixa e acaba se voltando para o que aconteceu no
passado. Aí é provável que vá se debruçar sobre a bossa-nova ou o choro e
prosseguir por aí. Quando esses garotos vão ao choro dão o melhor de si como
instrumentistas. "Redescoberta" realmente não é a palavra mais
adequada. O que houve foi uma desmistificação de valores que não tinham a menor
importância cultural.
HOMEM — Há alguma jogada comercial por trás disso?
ALDIR — Bem, as multinacionais vão jogar com o
choro porque jogam com qualquer coisa. Se eu beber mal e fizer um strip-tease
posso até ser sucesso...
EDU — A bossa-nova também tem um requinte harmônico
riquíssimo. Não se aprende a tocar bossa-nova numa semana.
ALDIR — Esses garotos chegam ao choro através da
bossa-nova. Todos eles perseguiram desesperadamente os acordes de João
Gilberto. Mas hoje já acharam o bandolim ideal na loja tal e estão tocando
choro. José Ramos Tinhorão vai ter de engolir essa, igual a espinha de
bacalhau: o responsável por essa onda de choro foi João Gilberto.
HOMEM — Mais direta e menos remotamente, não se pode esquecer o peso do trabalho de Paulinho da Viola, sem dúvida o grande nome da nossa música que mais divulgação deu ao chorinho. E Paulinho é daqueles raros artistas populares que atingem o público da classe A à classe Z. Aliás, as pessoas sempre começam fazendo música à maneira de quem acham que faz melhor. Há casos em que é picaretagem, mas também pode ser uma coisa espontânea. Qualquer artista começa à maneira de seus ídolos.
ALDIR — Mas só quando percebem que é preciso deixar
de imitar é que conseguem tocar sua arte pra frente. Isso não significa negar
as influências porque todos as têm.
CHICO — Eu passava horas, dias, meses, tentando
tocar violão igual a João Gilberto, até que um dia descobri que poderia fazer
algo diferente.
HOMEM — Digamos que você não tivesse essa sua capacidade auto-crítica e que atingisse um nível de imitação razoável. Aí poderia aparecer alguém dizendo: "Puxa, que genial, vamos gravar um disco com você!" Se você se empolgasse poderia partir para uma de imitador de João Gilberto.
ALDIR — E não estaria aqui hoje neste debate.
HOMEM — Chico, você sabe que há um cara aí cantando e compondo à sua maneira?
CHICO — Sei; há algum tempo ele vem me perseguindo.
Isso é diferente, é picaretagem. Não tem nada a ver com o jovem que está
começando a fazer música. Assim como tem Martinho da Vila, agora tem Jorginho
do Império.
EDU — Depois de Zumbi apareceram uma série de
músicas que a imitavam e que inclusive vendiam mais que ela. Aquela imitação
que Chico Anísio faz, 0 Baiano e os Novos Caetanos, vende muito mais que os
discos do próprio Caetano.
CHICO — Nesse caso é uma sátira aberta. A
picaretagem a que me referi não é sátira.
HOMEM — Esses imitadores não seriam apenas ingênuos e imaturos?
EDU — Não. Conheço um que trabalha muito mais que
nós, porque tem de mudar de personalidade a cada três meses. Tem época que é
Chico, tem hora que é Jorge Ben...
HOMEM — Você se refere ao Abílio Manuel ?
EDU — Esse mesmo.
HOMEM — Atualmente, qualquer livro de poesia que venda uns cinco mil exemplares é considerado um sucesso. Assim, quando um poeta descobre que se musicar seu poema ele poderá ser ouvido por 200 mil pessoas ou mais, passa a ser estimulado a fazer poesia musicada. Há quem diga que uma nova geração de poetas - entre os quais vocês-escolheu cantar os seus versos.
CHICO — Há rnuita discussão sobre isso e há até
certo ressentimento dos poetas em relação a isso. Mas eu não me considero poeta
nem pretendo ser.
HOMEM — Essa opinião não impede que você seja.
CHICO — Não, eu não saberia escrever poesia. Tenho
resistido a publicar livros com as letras de minhas músicas porque elas não
resistem como poesia, não foram feitas para isso. Por minha vez, desafio os
poetas a fazerem letras pra música. A jogada é outra.
EDU — Acho que são profissões diferentes.
CHICO — O Aldir escreve letras para João Bosco
musicar, mas eu nem isso faço, pois ponho letras em músicas já prontas. Já
coloquei músicas em letras, mas isso o Edu faz melhor que eu, porque é mais
músico. Ou faço música e letra ou faço a letra para a música de outros. Neste
último caso o melhor que posso fazer é procurar sentir a música como se ela
fosse minha...
EDU — É a importância da sonoridade.
CHICO — Aldir e João Bosco, por exemplo, são uma
coisa só. Enfim, o que quero dizer é que escrever poesia é uma coisa e fazer
letra de música é outra completamente diferente. Para fazer letra você tem de
ser musical.
HOMEM — E o Vinicius de Moraes?
CHICO — É um caso à parte. Pode ser que o Aldir
também seja um caso à parte e seja também poeta. Mas eu não o sou, sou
letrista.
SÉRGIO — Quando Vinícius é letrista não é poeta.
CHICO — Quero dizer que ser poeta é outra jogada. E
é muito difícil um poeta - mesmo um grande poeta - colocar letra numa música.
EDU — Assim como o músico encontra dificuldade para
musicar poemas. Nem todo poema é musicável. Fiz várias tentativas para musicar
poemas de João Cabral de Mello Neto e quebrei a cara em todas elas.
CHICO — Eu também quebrei a cara em Morte e Vida
Severina. João Cabral não conseguia entender por que eu havia cortado certos
trechos, cortes que pareciam arbitrários para ele, mas que para mim, como
músico, eram trechos impossíveis de musicar. Manuel Bandeira é um poeta mais
musicável, mas é interessante observar que era um cara que transava música.
EDU — João Cabral, inclusive, não gosta de música.
ALDIR — Hoje em dia existe um grande folciore em
torno de caras que apresentam qualquer quadrinha e já se dizem letristas. Não é
bem isso, ser letrista é mais complicado: tem de obedecer à parceria e entender
a alma e o som. Senão, não tem letra.
SÉRGIO — Você faz suas letras pensando que o João
Bosco vai musicar?
EDU — Pensando na sonoridade de cada palavra?
ALDIR — São coisas técnicas, como saber se o som
vai pra baixo ou pra cima, saber quando abre em a ou quando fecha, embora não
sejam coisas complicadas demais. O que o candidato a letrista precisa é ouvir e
aprender mais.
[Nesse momento, chegou Caetano Veloso. O debate foi interrompido por alguns instantes. Chico foi até a despensa apanhar mais uísque. Voltamos a fita alguns minutos para Caetano ver em que altura estava a discussão. E ele entrou exatamente no ponto em que ela havia parado.]
CAETANO — Esse negócio de passar do livro pro disco, da poesia impressa pra poesia cantada, não aconteceu necessariamente com a nossa geração. Nunca escrevi poesia, comecei mesmo fazendo letras de música. A questão de saber se poesia é o que está impresso ou o que está gravado é mais uma conseqüência do status atribuído à palavra poesia, que ganhou tal respeitabilidade que dizemos: "Puxa, essa letra do Luiz Gonzaga é um poema!" Como se isso a qualificasse melhor.
CHICO — "Isso não é letra, é uma poesia!"
CAETANO — Dá a impressão que nós da música popular
continuamos adotando uma posição elitista que mantém o peso semântico da
palavra poesia como algo erudito, sério, importante. Eu acho a música mais
importante que a poesia. Muitas pessoas, no entanto, querem conferir um status
à música popular dizendo que ela chega a ser poesia. É como as pessoas que
estudam música erudita e dizem: "Realmente, a invenção melódica deste
samba chega ao nível de música erudita". Na verdade, o problema da divisão
entre música popular e música erudita é muito mais de áreas objetivas de ação
que de algo perceptível pela criação.
SÉRGIO — São coisas tão juntas...
CAETANO — E se correspondem. Acontecem coisas na
música popular que podem ter influências sobre a música erudita. A forma
popular de canto é uma revolução no modo de cantar. Não foi o caminho do canto
erudito que criou um João Gilberto, um Chet Baker ou uma Ella Fitzgerald.
EDU — O comportamento erudito não é necessariamente
melhor que o popular.
CAETANO — Há sempre aquele problema da separação de
áreas delimitadas.
EDU — Porque elas não são comparáveis. Comparar
João Gilberto com Stravinski é uma loucura. Dá pra dizer quem é o melhor?
CAETANO — No fundo é um problema de formação.
EDU — Não, é de informação.
CAETANO — Nós, compositores da classe média, não
fazemos uma arte erudita mas também não fazemos uma arte popular -
"popular" entendido como algo que sai do povo. O povo é tido como uma
espécie de produtor puro de coisas não contaminadas por algo que não seja a sua
essência. Ver o povo dentro desses moldes é uma atitude medieval.
EDU — Assim, a música do Hermeto - que é popular
-acaba sendo definida como não popular.
CAETANO — O problema da poesia está ligado a isso.
Estamos numa época de mudanças nos conceitos dos modos de criação artística.
ALDIR — A partir de uma informação
não-revolucionária o povo pode vir a fazer uma forma revolucionária de poesia.
CAETANO — Isso não entendi bem.
ALDIR — O povo pode fazer uma síntese desses
elementos todos, criando um novo modo de cantar.
CAETANO — Sabe que o Zé Ramos Tinhorão escreveu um
artigo no Jornal do Brasil, onde conta corretamente a história da nossa
geração? Ele desce o pau na geração de autores letrados e universitários mas,
de uma certa forma, conta a nossa história.
SÉRGIO — A grande conquista desse papo seria
arranjar um nome para a música dessa geração, um nome que não seja
"popular" ou "erudita".
HOMEM — Para isso seria preciso convencionar o que é música popular e música erudita.
CAETANO — E a Banda de Pífanos de Caruaru, como
seria classificada?
SÉRGIO — Popular.
CAETANO — Mas é uma coisa bem erudita. O seu
consumo é o mais erudito possível.
EDU — O consumo de João Gilberto também é.
CAETANO — Mas o consumo popular do João foi maior.
Ele vendeu muito bem, fez sucesso, é uma figura de massa.
EDU — Não tanto assim.
CAETANO — Pô, a bossa-nova foi um acontecimento
popular, reconhecido por todos.
EDU — Pela massa não.
CAETANO — Mas, em comparação com a Banda de Pífanos
de Caruaru, João Gilberto é um Elvis Presley. E Egberto Gismonti, é músico
popular ou erudito?
SÉRGIO — Há tantas sutilezas no meio disso que se
acaba não definindo nada.
CAETANO — Então adotemos uma definição objetiva: é
músico popular quem trabalha na área da música popular.
HOMEM — Louis Armstrong afirmou certa vez que música popular é só aquela que serve para dançar. O jazz moderno não seria música popular porque não serve mais pra dançar.
CHICO — Definição reprovada.
ALDIR — O ato de compor uma sonata não é superior
ao ato de fazer um samba-canção.
CAETANO — Outro dia, Agnaldo Timóteo estava
conversando comigo e falou assim: "Ângela Maria, que voz linda ! Como
canta bem ! Ela deveria ter sido mais inteligente e ter aproveitado mais.
Quando ela surgiu não era como agora, tudo dividido. Vocês são considerados
classe A e eu sou classe C. Mas, na época da Rádio Nacional, ninguém colocava
se o fulano era classe A ou C. As músicas que fizessem sucesso no rádio eram de
todo mundo. Ângela deveria ter aproveitado para ficar na classe A".
SÉRGIO — Como faz normalmente Elizeth Cardoso.
ALDIR — Isso confirma a tese de que a arte, até
certo ponto, expressa um padrão determinado pela situação social e econômica da
época.
CAETANO — Esse determinismo eu não posso suportar.
ALDIR — É possivel que a grande arte ultrapasse as
fronteiras desse determinismo, mas ele existe e tolhe uma porção de
possibilidades artísticas.
CAETANO — A situação sócio-econômica das pessoas
que fazem arte numa determinada época é determinante para que ela seja feita
daquele modo, mas tenho a impressão de que a feitura da arte transcende a isso.
Eu acho que a arte - e não o pressuposto social - é que determina a arte.
Aliás, a arte determina também o social. Há uma inter-relação misteriosa e
dificil de se controlar ou acompanhar para dizer em que medida uma atua sobre a
outra. A verdadeira realidade da relação da criação de arte com a estrutura
social é algo muito protundo. Tudo isso são grandes dúvidas para mim.
ALDIR — Pra mim também. Acho gue a grande arte do
nosso tempo vai traduzir o conflito fundamental existente entre uma classe cada
vez mais minoritária em razão direta de seus privilégios e uma classe
majoritária cada vez mais relegada a um segundo plano. A tradução desse
conflito em arte será cada vez mais a arte verdadeira. Não é preciso ter
consciência desse conflito para fazer essa grande arte, mas a constatação de
sua existência pode ajudar o trabalho criador de cada um.
CAETANO — Concordo em que não é preciso ter essa
consciência, mas duvido de que a idéia da luta de classes seja o instrumento
fundamental para a avaliação da obra de arte. Os sentimentos provocados pela
vivência do dia-a-dia são importantes pra mim, mas não sei se meu pensamento
sobre isso determinará minha criação artística. Juro que não sei. O sentimento da
injustiça social é muito profundo em mim. Fiz uma música agora que diz:
"Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome". Isso é básico e talvez
nunca mude em mim.
HOMEM — Antes de você chegar, discutiu-se aqui o problema da sobrevivência do compositor popular brasileiro.
(Aldir resume as opiniões emitidas sobre o
assunto.)
SÉRGIO — Você nunca sofreu pressões para fazer
concessões?
CAETANO — Não.
HOMEM — Nem vaselinadas?
CAETANO — Nada. Nunca tive esse tipo de problema e
nem sabia que existe. Mas pelo que vocês disseram é uma coisa horrível. Não sei
até que ponto uma gravadora, por interesses puramente comerciais, impede um
artista de trabalhar, mas sei que jogam muito no escuro e usam os argumentos da
censura. Em Tenda dos Milagres, filme do Nelson Pereira dos Santos baseado no
livro de Jorge Amado, uma empresa de publicidade resolve financiar um evento em
torno de Pedro Arcanjo, um escritor mulato. Mas aí ela resolve que isso não
seria tão interessante para ela e então diz ao escritor: "Foi proibido".
Usam a censura como uma arma a mais. Preferem dizer que está proibido do que
confessar que nao querem gravar.
ALDIR — E deixam o artista em pânico diante da
afirmativa de que foi proibido.
CAETANO — Há dois lados na moeda. As gravadoras
também participam de tentativas para liberar as músicas. Há nisso uma relação
natural entre empresa e Estado.
ALDIR — Dificilmente um compositor novo, com um
disco de caráter mais experimental, receberá essa ajuda.
CHICO — A censura chegou inclusive a prejudicar
essas empresas financeiramente, mas hoje a coisa se acomodou de tal forma que
há uma cumplicidade.
CAETANO — Essa cumplicidade seria mais no sentido
de reprimir que de liberar?
CHICO — Não existe mais a aliança tácita entre o
artista e sua gravadora contra o que seria um inimigo comum.
CAETANO — Acredito até que essa aliança nem tenha
chegado a existir.
CHICO — Não estou sendo romântico nem ingênuo, mas,
naquela hora, os dois estavam juntos. A censura era mais nova e violenta e as
gravadoras estavam sendo realmente contrariadas de modo arbitrário. Hoje o
processo é vaselinado e não há mais aqueles atritos sérios.
CAETANO — Por quê? Há mais boa vontade por parte
deles?
CHICO — Porque os interesses estão se acomodando.
CAETANO — Não acompanho muito bem esse negócio de
política mas sinto alguma coisa parecida... O fato de estarmos aqui conversando
talvez seja resultado dessa acomodação.
(Aldir volta a falar sobre os métodos utilizados
pela gravadora para dominar o trabalho do artista)
ALDIR — Eu contava muito com a sua opinião sobre
isso.
CAETANO — Pra mim é difícil opinar sobre isso. Não
confio no acordo do artista com a empresa, mas ao mesmo tempo sei que há um
acordo real, no qual os interesses são comuns. É dificil para nós porque na
verdade começamos querendo apenas gravar e lançar um disco. Quando uma
gravadora aceitava nós achávamos bom. Isso ainda deve acontecer com a maioria
dos que estão começando a carreira. Nós, que chegamos à universidade, que temos
uma visão crítica e pretensiosa da realidade, criamos a ilusão de que entramos
nisso mantendo um certo controle, mas na verdade o que queríamos era poder
gravar, poder lançar nosso disco, que ele fizesse sucesso e que a gente pudesse
viver dessa profissão. Nós, as pessoas que fazem música popular no Brasil,
temos uma concordancia quase absoluta com a empresa gravadora e divulgadora. A
situação real de nossa classe é essa, embora afirmemos que fazemos isso mas
poderiamos não fazer. Temos um certo esnobismo mas, no fundo, o que queremos é
só gravar nosso disco.
CHICO — Não estamos discutindo aqui se as pessoas
querem ou não gravar um disco de qualquer maneira, mesmo de graça, mas sim que
o justo é que a gravadora pague por esse trabalho. É injusto que ela ganhe os
tubos em cima de um trabalho que não paga. Quem pode protestar contra isso não
é o cara que está tentando gravar agora o seu primeiro disco, mas quem já tem o
direito de esnobar e pretender alterar essa situação. Isso tem de ser feito já,
porque daqui a pouco você já era e não terá mais condições de fazê-lo. Acusam a
Sombrás de elitista porque reúne pessoas famosas, mas são justamente essas
pessoas que têm condições de reivindicar alguma coisa com um certo peso.
EDU — Para isso é preciso ter um mínimo de poder.
CHICO — Estamos aqui debatendo pra revista Homem
sobre os problemas da classe quando poderíamos estar nos lixando para esses
problemas. Os caras que estão começando lambem os pés da gravadora pra poderem
lançar aquele primeiro disquinho.
EDU — Você, Caetano, tem poder na medida em que vai
para a Phonogram e grava o seu Araçá Azul, que um cara novo nunca conseguiria
gravar.
CAETANO — Claro. Pode parecer, por tudo isso que eu
falei, que eu seja um cara desanimado. Não, acho que se deve lutar, mas devemos
também reconhecer a dificuidade até mesmo de formular pensamentos quanto a
isso. Nossa relação com a empresa é basicamente de concordância.
CHICO — Mas se a gente não se mexer isso nunca
mudará.
CAETANO — Também acho, mas sempre com uma
auto-desconfiança permanente. Nós somos profundamente comprometidos.
EDU — Somos dependentes dessa estrutura.
CAETANO — A ilusão de que estamos isentos é
perigosa. Tudo que fizemos, todas as músicas, todos os discos que fizemos são
resultados desse relacionamento. Mas Chico tem razão, porque esse
relacionamento tem um conflito interno, não é uma realidade fechada e
inabalável. Desse confíito é que virá a possibilidade de tomar atitudes
críticas, combativas, e lutar contra as injustiças.
EDU — E até de conceder.
CAETANO — Se você partir para um radicalismo maior
afastará a possibilidade de gravar discos. Vai ter de esperar que passe este
mundo imundo pra poder fazer suas músicas no reino da liberdade.
EDU — Pode não fazer nunca mais.
CHICO — Quem faz greve numa fábrica são os
operários dessa fábrica. Para agir dentro da TV Globo você tem de ser ator de
novela. Se largarmos nosso trabalho não vamos ter mais força nem expressão pra
dizer coisa alguma.
CAETANO — Mas o artista que nada concede já
concedeu tudo de início. A partir do momento em que quer ser conhecido já está
comprometido.
EDU — Tem de saber conceder inteligentemente.
HOMEM — Chico falou da necessidade de se alcançar uma certa situação de poder para ter condições de influir. Muita gente critica Pelé, por exemplo, porque ele ao invés de falar dos problemas de sua raça dedica o seu milésimo gol às criancinhas do Brasil. Com o prestígio e o poder que ele tem, poderia contribuir para combater a discriminação racial.
ALDIR — Não podemos desconhecer que hoje, reunidos,
a soma do nosso poder tem uma tremenda força. Isso ficou comprovado quando a
Sombrás derrubou facilmente todos aqueles anos de política autoral.
CAETANO — O que se falou há pouco sobre Pelé é
revelador. Quando você cobra de Pelé uma atitude em relação a problemas sobre
os quais você pensa de uma determinada maneira, você está se esquecendo de que
Pelé é uma pessoa que já fez muito. É dificil uma pessoa conseguir o que Pelé
conseguiu. Você está projetando em Pelé os valores utópicos que você tem, sem
analisar os fatores que levam um indivíduo a se tornar um Muhammad Ali ou um
Mao Tse-Tung. Como é que Pelé, jogando o futebol que joga, poderia ter uma
consciência politica? Não quero dizer com isso que não se deva pedir mais.
Porém temos de ver como Pelé chegou a esse nível de realização dentro desta
sociedade. Temos de ver o lugar onde nasceu, as condições de onde veio, como as
coisas se processaram. Não conheço nenhuma declaração importante de Pelé sobre
a situação do negro no Brasil e no mundo, sobre a situação do homem pobre,
sobre a situação do Brasil diante dos outros países, ou mesmo sobre a situação
jurídica dos jogadores de futebol. No entanto, todos esses assuntos foram
afetados por ele, Pelé, pelo simples fato de jogar o grande futebol que joga e
de ter chegado ao ponto em que chegou, abrindo uma imensa gama de
possibilidades. Pedir a ele mais que isso seria pedir energia demais a quem já
dá energia em demasia. Sem que Pelé dissesse uma só palavra, o jogador de
futebol no Brasil ganhou a possibilidade de dizer suas próprias palavras. Os
nossos jogadores eram escravos... é proibido vender gente no Brasil, mas os
jogadores de futebol eram vendidos e comprados e ninguém contestava isso. Eles
não tinham nenhuma respeitabilidade. Pelé conseguiu mudar coisas imensas pelo
simples fato de jogar no Brasil. A gente tem de parar e ver a carga de
informação cultural e a energia de liberdade e de verdade que emanam de Pelé,
ao invés de desrespeitá-lo. É uma humildade que temos de ter. Alguns jogadores
de futebol tentaram discutir politicamente a sua profissão e suas carreiras
pouco duraram, não só por causa da reação contra a sua tentativa de serem
conscientes, mas também por causa de sua própria formação psicológica. Penso em
Afonsinho e em Nei Conceição. Acho, por isso, que a armadura de Pelé é útil e
necessária. Ele é um homem que diz: "Eu não falo ! Não quero falar ! Não
posso! Não tenho nada a ver com isso! Quero ser uma pessoa grande!" Esse é
Pelé, um rei dentro de uma pessoa. Não me consta que João Gilberto tenha se
preocupado com direitos autorais, com relação dc produção nem com a estrutura
do poder. Nunca se ouviu ele dizer que a injustiça social está errada. No
entanto, estamos todos aqui por causa dele, porque cantou e tocou daquele
jeito, porque a energia de rei dentro daquele homem funcionou iluminando uma
porrada de coisas.
EDU — O que não vale para Roberto Carlos.
CAETANO — Roberto Carlos também mereceu a sua coroa
de rei. É um homem que disse assim: "Sigo incendiando bem contente e
feliz/ Nunca respeitando o aviso que diz/ "É proibido fumar' ". É
poesia tão boa quanto de Maiakóvski.
EDU — Mas você não gostava da música dele...
CAETANO — Não gostava até o dia em que gostei.
Quando digo estas coisas estou falando de mim também, eu também já pensei
aquelas coisas de Pelé.
SÉRGIO — O seu discurso sobre Pelé foi de fato
brilhante. Mas o que que explica o fato de um camarada ter uma atitude política
até um deterninado momento e a partir dai não ter mais?
CAETANO — Você está dizendo que eu era uma pessoa
política?
SÉRGIO — Exatamente.
CAETANO — Isso é uma mentira. Meu nível de
consciência política continua o mesmo de antes. Minha capacidade e minha
atuação política continuam as mesmas; reconheço que sempre foram limitadas.
SÉRGIO — impressão que você e o Gil me davam antes
era de que tinham outras atitudes.
CAETANO — Quando?
SÉRGIO — Por exemplo, quando você disse: "O
samba vai vencer / Quando o povo perceber / Que é o dono da jogada".
CAETANO — Naquela época você não me conhecia nem de
vista. Eu era estudante na Bahia e fiz essa música para uma escola de samba que
ia ser formada por uns colegas de universidade que eram de esquerda e se
interessavam por política. Eu nunca participei de qualquer grupo político. Foi
preciso provar isso oficialmente e provado está. Na universidade eu gostava
muito menos de política do que consigo gostar hoje por um esforço meu. Na
verdade, eu não reconheço no nível político nenhuma superioridade sobre os
demais níveis, acho que é apenas uma maneira de pensar e de agir. Até hoje não
vi nada que me provasse que esse nível de pensar e de agir seja prioritário ou
superior aos outros. Não sei, não consigo ver, sou um artista cujo nível de
pensar e de agir não é esse. Um homem pode se dedicar à política e depois mudar
por completo de vida, tornando-se simplesmente um pai de família. Está fazendo
uma coisa diferente e não quer mais se interessar por política. Pode se
interessar por religião e querer ser um santo.
HOMEM — Você admite que essa mudança agrada a determinadas camadas políticas e desagrada a outras?
CAETANO — Depende da época.
HOMEM — Então essa mudança é também uma atitude política...
CAETANO — Não há dúvida. Toda atitude é também
política.
CHICO — Eu respeito cada posição ou atitude
política das pessoas. É claro que não vamos ficar cobrando do Pelé porque ele
não tem obrigação alguma de colocar esses problemas. Mas é altamente negativo
dizer que se Pelé os colocasse poderia derrubar seu próprio sonho. Pelé é um
rei que cria ilusões em todos os engraxates, e não se manifestar deixa um vazio
muito sério. Eu adoro futebol, sou fã do Pelé e tudo bem. Mas o vazio existe.
Não concordo que Afonsinho ou Nei tenham deixado de ser Pelé porque se
preocuparam com isso. Você realmente acha que uma coisa prejudica a outra? A
consciência política prejudica o futebol?
CAETANO — Não, de jeito nenhum. O que eu quis dizer
é que o tipo de psicologia que propicia uma figura férrea como a de Pelé
dificilmente resultaria numa outra coisa. Produzir uma figura excepcional é
algo demais para uma sociedade, entende? Você até pode - e deve - pedir mais,
mas sem perder de vista que muito já está sendo dado e que talvez seja
necessário ser assim para que tanto pudesse acontecer. Você falou do engraxate
que sonha ser Pelé. Isso tanto pode ser negativo como positivo. Quando ele sonha
ser Pelé não pensa só no jogador de futebol mas também no homem respeitado, que
fala com presidente da República. Um dos nomes mais respeitados na África é o
de Pelé, e depois o de Muhammad Ali. Aquela gente vê Pelé como uma afirmação de
sua raça, independentemente do que se passe na cabeça dele.
CHICO — Qual a diferença entre esses dois, Pelé e
Ali?
CAETANO — Muhammad Ali tem mais consciência, né?
Mas não podemos amar nem medir as pessoas pelo que elas tenham de consciência.
A sociedade americana é outra, lá a luta racial é defiagrada. E Muhammad Ali
tem um esquema publicitário que cria esse clima.
EDU — Do jeito que você colocou, Pelé fica sendo
uma pessoa intocável, acima da sociedade.
CAETANO — Não, ele é um produto e um agente dessa
sociedade.
CHICO — E também ficou sendo um esquema
publicitário.
CAETANO — Qualquer um de nós que ficar famoso tende
a ficar assim.
EDU — O sucesso de Pelé, ou do João Gilberto, ou do
Roberto Carlos. exerce um grande fascínio sobre você?
CAETANO — Sem dúvida. Minha vontade de me
identificar com essas coisas é tão grande que hoje sou um artista famoso.
Incluo também nessa lista o Luiz Gonzaga.
HOMEM — Você não está entrando muito numa de que todo mundo é bonzinho?
CAETANO — Gostaria de estar, mas a verdade é que,
por exemplo, acho o Fagner uma bosta.
HOMEM — Outra questão debatida aqui na sua ausência foi a da utilização de músicas de vocês nas novelas de televisão, sem que nada seja pago por isso.
CAETANO — Quando em ouço Tigresa na televisão eu
acho uma maravilha.
(Chico repete o que havia dito antes sobre a
questão.)
CAETANO — Ao ouvir Tigresa meu prazer é estético. O
preço que pago por esse prazer estético é essa situação, mas não quero por
causa dele me colocar como reacionário, dizendo que as coisas devem continuar
como estão. Não, devemos criticar e tentar mudar. Mesmo assim não deixo de
sentir prazer estético em ver minha música numa novela.
CHICO — É claro. Se eu passar pelo Maracanã e
estiver tocando uma música minha não vou ficar triste por causa disso, mesmo
que não esteja recebendo direito autoral algum.
CAETANO — Nem por isso vai achar certo que esteja
sendo explorado injustamente.
EDU — Você pode estar feliz, achando tudo bonito,
mas estão te usando.
CAETANO — E além de eu estar sendo roubado, estou
permitindo que outras pessoas sofram o mesmo. Talvez para alguns artistas não
seja fundamental resolver essa questão. Preferem pagar o preço dessa situação
para terem esse prazer estético. Conhecemos muitos artistas assim.
HOMEM — E você compreende a posicão deles...
CAETANO — Esse tipo de problema não afeta só a
nossa profissão. Estamos falando sobre estrutura de poder, luta de classes,
justiça, uma série de coisas sobre as quais não somos os mais adequados para
falar.
CHICO — Eu discordo. Nesse momento não estamos
falando só como artistas, mas como testemunhas. Nós somos vítimas disso.
CAETANO — Ah, vocês estão falando como cidadãos?
Como cidadão o testemunho é válido, mas é dificil a gente livrar-se do artista.
CHICO — É difícil mas necessário.
CAETANO — Podemos teorizar sobre tudo isso mas
estamos um pouco despreparados.
EDU — É mais uma questão de saco que de preparo.
CHICO — O mínimo de preparo reunido ao máximo de
experiência pessoal dá um raciocínio útil.
CAETANO — Aí você está certo. Esse mínimo deve ser
incentivado. Mesmo que seja mal discutido, será algo que poderemos deixar para
as pessoas que estão surgindo. Mesmo que seja um fracasso poderá ser útil para
algumas pessoas. Felizmente gravar um disco hoje já não é uma coisa tão mágica,
tão dificil.
EDU — Pelo contrário. Nós fomos chegando e um ano
depois já estávamos gravando. Pros novos conseguirem gravar um disco hoje é
preciso uns oito anos de batalha.
CAETANO — Isso é até uma oportunidade para eles
terem um maior contato crítico com a relação entre os meios de produção e o seu
trabalho. As decepções profissionais não são inúteis. As preocupações com as
pressões da gravadora, com a censura, com a exploração das músicas na
televisão, com o modo de agir das sociedades arrecadadoras, são preocupacões
mais ou menos recentes para a nossa geração. Mas a geração que começa a
aparecer agora enfrenta esses problemas desde o início. E o fato de voltarmos
sempre a falar nesses problemas vai contribuir para amadurecer essas pessoas.
EDU — Não sei se posso concordar com você.
CAETANO — Se não houver isso, pra que discutir?
EDU — O que eu acho é que o ambiente não está
diferente.
CAETANO — Está. Mesmo os que não tem consciência já agem
de outro modo. Podem não saber de nada mas já encontram essa diferença. O
próprio cara da gravadora já tem um modo diferente de tratar.
EDU — Será?
ALDIR — Aí vocês tocaram na questão da conduta que
devemos assumir diante dos novos. Nós não pretendemos ditar nada. Qual é a
conduta que devemos assumir em face deles? Varia da preocupação mais narcisista
de não decepcionar até aquela, mais política, de como orientar. Podemos nos dar
o luxo de não decepcionar e não orientar?
CAETANO — Isso é um fio de navalha, é como a menina que,
aos oito anos de idade, diz: "Quero gravar um disco, quero ser a Gal
Costa". Essa menina diz isso lá em Belém e vem para o Rio ser a Gal Costa,
mas como se encontra com o Milton Nascimento, conversa comigo, acaba sendo a
Fafá de Belém. Estou fazendo uma metáfora e não dando um exemplo sobre Fafá de
Belém.
HOMEM — E a concorrência da música importada? É outro assunto que você ainda não debateu.
CAETANO — Minha opinião é que é péssima e precisa ser
mudada.
HOMEM — O que você sugere para mudá-la?
CAETANO — Não sei, não tenho certeza. A gente não pode
tomar a iniciativa de mudar de repente as leis de importação do país.
SÉRGIO — Você participaria de uma comissão para estudar
esse problema?
CAETANO — Não sei, seria preciso que alguém com uma visão
mais organizada participasse disso.
CHICO — Há quatro ou cinco anos atrás foi feita uma
coisa assim, foi nomeada uma comissão, que fez vários estudos que foram
encaminhados legalmente. Mas nada aconteceu.
CAETANO — A relação entre o Estado e a produção artística
tem nuances cambiantes. Em outro momento aquilo poderia ter sido oportuno. É
algo muito complicado, por isso eu digo que não entendo bem. Outro dia um amigo
meu, aliás uma pessoa espetacular, disse a mim: "Você não tem o direito de
dizer que não entende de política porque o cidadão tem obrigação de entender
disso". Mas eu não entendo mesmo, não sei qual é o lance das
multinacionais, do nacionalismo de certos países, não sei como podemos agir sobre
isso. É dificil, viu? Temos de saber como resultarão as coisas que pretendemos
fazer. Mas tenho interesse em falar dessas coisas porque como essas dúvidas são
de toda a nossa classe, devem ser compartilhadas. Agora, essa vontade de impor
taxação sobre a importação, por exemplo, apareceu nos países à medida que eles
iam atingindo um certo grau de desenvolvimento. Para um país ter vontade de
produzir filmes tem de ter um grau de desenvolvimento razoável, precisa ter uma
estrutura econômica tal que seja fluente. Achei Barry Lyndon uma obra-prima
extraordinária, mas é um filme que não poderia ter sido feito no Brasil. A
verdade é que acho necessária uma lei protegendo a importação de filmes assim.
A nossa formação depende dessa importação. A nossa atualidade, por mais críticos
que possamos ser em relação a ela, também está nessa importação. Discordamos
dela em resultado de uma consciência que se fortalece quando mais compreendemos
a carga inconsciente que está por trás de tudo o que pensamos ou fazemos. Nosso
inconsciente está ligado à importação e se não o virarmos pelo avesso nada
faremos.
SÉRGIO — Não sei como uma pessoa que entende dessas
coisas não entende de política.
CAETANO — O máximo que eu entendo são essas coisas que
estou falando aqui. Não acompanho política, não sei o nome do vice-presidente
dos Estados Unidos, não sei como anda a China, não sei se o homem deve caminhar
nessa ou naquela direção política. Muitas coisas são dúvidas para mim. Sou
sincero quando digo que não entendo de política.
HOMEM — O dia já vai amanhecer. Vocês acham que todo esse papo valeu a pena?
ALDIR — Se não valesse a pena eu não teria topado gastar
uma noite inteira nisso.
CAETANO — Acho que a resposta já foi dada pelo Chico, no
meio da discussão, quando falou que a gente não só tem o direito como também o
dever de querer, perguntar e pedir cada vez mais.
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