1996
Revista PLAYBOY
Ano
XXI - nº 256 - Novembro 1996
Editora Abril
Entrevista: Norma Couri
Uma conversa franca com a voz mais impressionante da MPB sobre o
vale-tudo no amor, a solidão da Xuxa, o chuveiro do Mastroianni e aquele cujo
nome não pode ser dito.
Dizem que, num de seus delírios pós-tropicalistas, o empresário
artístico Guilherme Araújo tentou colocar Maria Bethânia vestida de fada no
palco, com varinha de condão e tudo. A idéia não colou - afinal, estamos
falando de uma cantora que só faz o que quer, capaz de atirar o microfone longe
quando o ensaio vai mal. Mas até que esse toque de fantasia tinha a ver.
Bethânia carrega uma personalidade mística que não escapa às pessoas mais
íntimas. É uma "sacerdotisa" para Caetano Veloso, o mais ilustre de
seus sete irmãos. "Iansã viva" no palpite do jornalista e produtor
cultural Nelson Motta. "Esfinge Baiana" para outro jornalista, o já
falecido Ronaldo Bôscoli. "Um orixá”, na opinião do escritor Jorge Amado,
ele próprio cada vez mais próximo de se parecer com uma entidade nagô. Nem a
nova amiga, a gaúcha e modernete Adriana Calcanhoto, deixa de fazer um
comentário esotérico: "Ela tem um fogo sagrado", avisa Adriana,
autora da música que deu nome ao mais novo pacote de disco e show de Bethânia,
Âmbar.Para não perder o hábito (e dar mais gás a sua aura elegante odara), esta
senhora de 50 anos, a primeira mulher brasileira a esbarrar em um milhão de
cópias vendidas de um dos seus 35 discos, Álibi, de 1978, vive batendo na
madeira para espantar os maus espíritos. Precisar, não precisa. Maria Bethânia
Viana Telles Velloso, faz tempo, vive no Olimpo das grandes intérpretes da
música popular brasileira. Tudo porque, como queriam os deuses, aos 18 anos
saiu da Bahia e substituiu Nara Leão, musa da Bossa Nova, num célebre
espetáculo do Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, em 1965. Franzina, tímida,
caladona, a ilustre desconhecida puxou para baixo os queixos da platéia quando
soltou a voz grave e selvagem para cantar Carcará, de João do Vale e José
Cândido. No refrão - "Pega, mate e come" - , quem engoliu o musical
foi ela, uma estrela desde o começo. Da cidade natal, Santo Amaro da Purificação,
até o paco Olympia de Paris, Bethânia foi aspergindo seu pó mágico de grande
dama. Entre patuás e discos de ouro, entre oferendas às divindades do candomblé
e o dom para endeusar compositores - Djavan, Gonzaguinha -, a cantora fez fama,
fortuna e folclore. Hoje ela é uma diva que mora encastelada na Estrada das
Canoas, zona Sul do Rio, protegida por duas cadelas Boxer e abraçada por
jardins e cachoeiras artificiais. Anti-social, célebre por manter a vida íntima
guardada em mistério, tornou-se um desafio que playboy propôs a experiente
repórter Norma Couri, de volta ao Brasil ao cabo de oito anos como
correspondente do Jornal do Brasil em Lisboa.
PLAYBOY - Qual o segredo do seu
fascínio, tendo um tipo que foge dos padrões de beleza?
MB - E o que adianta ser a Xuxa se
ela vive reclamando que não arruma namorado? [risos] Não penso nisso, mas gosto
de ver o brasileiro apanhado por padrões que não foram impostos pelos europeus.
PLAYBOY - Que mulher é bonita para você?
MB - Billie Holliday. Uma delicadeza. Sempre com a alma à
mostra, saindo pelo nariz, pelos lábios, pelo olho, tudo muito forte. É esse
tipo de beleza que me convence. A sensualidade mora na alma da gente.
PLAYBOY - Alguns homens dizem que a
sensualidade vem de quem menos se mostra.
MB - Veja o caso dessa louraça que está fazendo o maior
sucesso no cinema…
PLAYBOY - A Sharon Stone?
MB - Pois é, outra que não consegue um namorado, nem
convite para jantar ela recebe [risos]. Não é estranho? Isso é que é solidão! A
Sharon Stone é a Xuxa americana.
PLAYBOY - Que há de errado com elas?
MB - Tem um segredo mal passado aí…Não é sensual. É uma
coisa gelada, derrubada pela farsa. Passa pelo fingimento e pela mentira. Mas,
como o público em geral não percebe, elas acabam virando mito.
PLAYBOY - Por que você nunca se casou?
MB - Quando eu era menina, achava lindo o casamento dos
meus pais e queria ter filhos. Tinha muita vontade. Eu tinha 18 anos e
conversava com Gal, que também tinha alucinação por filhos. “A gente tem que
ter, mana”, ela dizia. Depois, entendi uma coisa na minha personalidade: eu sou
solitária. Gosto de viver sozinha. E entendi Deus.
PLAYBOY - O que Deus tem a ver com
isso?
MB - É quem determina tudo e foi muito claro comigo. Ele
não me deu filhos. ele me deu a VOZ, que é femimina. Quando eu falo que lido
com minha voz com uma atenção fora do normal, que não gasto minha voz à toa,
nem com nomes, nem com pessoas ruins, é porque acho que ela é um dom sagrado
que não me pertence. Nesse meu corpo mora isso que Deus plantou na terra.
PLAYBOY - E quanto ao casamento?
MB - O casamento estabelecido pela sociedade e
religiões, um homem, uma mulher, tudo aquilo, não dá. Durante algumas horas
acho bonito, depois fico aterrorizada com as dificuldades, o perigo, as dores.
[pensando]. Você começou e entrevista dizendo que eu não tenho nada que é
considerado padrão: beleza, nariz, voz. A cabeça, muito menos.
PLAYBOY - Não é chato ficar sozinha?
MB - Eu sou solitária, mas não sou sozinha. Não sei
viver sem paixão. Preciso de estímulo para poder cantar, ou começo a ficar
esvaziada, fria. Uma pessoa, duas, várias paixões, o que eu vejo com os meus
olhos, o que sinto, é tudo alimento.
PLAYBOY - Você já reclamou de ter sido
abandonada pelas pessoas que amava…
MB - O que na verdade foi um plágio da Fátima Guedes,
que diz numa canção: [Desacostumei de Carinho, do disco Lápis de Cor]: “Eu
nunca fui paixão de ninguém e sempre a tola apaixonada” Acho lindo uma mulher
dizendo isso. É maravilhoso, não precisa ser a história dela nem a minha. Mas
que é lindo uma mulher dizendo isso, é. Corajoso.
PLAYBOY - Quem abandonou você?
MB - Muita gente, Ave Maria! Me abandona, mas volta. De
outro jeito, mas volta. Mas tenho fama de ter tido muitos casos de amor e
abandonado tudo quando bem me dava na telha.
PLAYBOY - E de ser muito mandona,
agressiva, tirana.
MB - Isso sou, posso ser, em algumas situações. Sempre
sabendo o meu lugar e respeitando o do outro. Agora, invadiu, levou. O que não
dá é ser covarde. A coragem é a maior qualidade de uma pessoa.
PLAYBOY - Cite uma mulher corajosa.
MB - Adriana Calcanhotto: essa é guerreira e tem posição
de ataque mesmo quando fala nas derrotas amorosas. Fala com humor, dando a
volta.
PLAYBOY - Você não gosta de quem
sucumbe?
MB - Na divisão do mundo em dois, faço parte do grupo
que batalha para vencer, se respeita e, em conseqüência, respeita os outros.
PLAYBOY - Na hora do abandono, você é
igual a qualquer mulherzinha?
MB - Ahhhhhh….eu canto, fico quieta, trabalho, ouço
música, escrevo. Gilete no pulso, não!
PLAYBOY - Quem são as pessoas que você
amou?
MB - Não posso dizer nomes nem expor ninguém.
PLAYBOY - Mulher? Homem?
MB - Quando eu amo, pode ser mulher, homem, bicho,
cachorro, pode ser tudo, o que for, eu deixo a fantasia passear bem.
PLAYBOY - Mas certa vez um admirador
mandou um bilhete para o seu camarim, “Hoje eu quero a rosa mais linda que
houver”, e você respondeu: “Acho que o cavalheiro errou de show!”
MB - [Gargalhada] Lembro não.
PLAYBOY - De que tipo de mulher ou
homem você gosta?
MB - Um homem ou uma mulher educados. Tendo educação, já
pode começar a conversar. Não é chegar assim e ir entrando.
PLAYBOY - O que atrai você?
MB - Inteligência, beleza.
PLAYBOY - E os fetiches?
MB - Mãos expressivas. E tenho obsessão por pés.
PLAYBOY - Os seus pés foram a obsessão
do poeta Vinícius de Moraes, não é?
MB - Ele adorava! Quando fiz o show “Rosa do Ventos”, em
1971 e quebrei duas vezes o dedo do pé, levei uma bronca furiosa dele. E eu
disse: Vinícius…não foi por querer…[risos]
PLAYBOY - O que as pessoas por quem
você se apaixonou têm em comum?
MB - Inteligência, delicadeza…
PLAYBOY - Isso muita gente tem.
MB - …e a flecha do cupido. Acredito nisso. Flechou,
acertou, matou. Tive paixões tão estranhas que duram até hoje e que não sei nem
contar. Mas foi tão intenso…nem cheguei a viver com essas pessoas, mas guardo
com paixão. Me aquecem.
PLAYBOY - Dizem que seus amores mais
intensos foram Gal Costa, Leina Crespi, Renata Sorrah, Ângela Ro Ro.
MB - [sem se alterar] Dizem muita coisa, publicam muita
coisa toda vez que eu faço sucesso. Mas não ligo, de algum modo, Deus me
protege. Essa coisa se esvazia porque é tão acintosamente um recalque, um
rancor, as pessoas ultrapassam, perdem a mão…
PLAYBOY - A fofoca é mais pesada
quando é feita por homem ou mulher?
MB - Esse tipo de coisa já veio dos dois lados.
PLAYBOY - Você nunca cita nomes de
pessoas que amou?
MB - Nunca. Acho isso uma indelicadeza, tenho de
respeitar as pessoas com quem vivo, vivi, viverei, com quem não vivi, não
viverei.
PLAYBOY - Disseram que você contou que
a apresentadora de TV Márcia Mendes era tomada pela Pomba-Gira.
MB - Meu Deus…
PLAYBOY - E que Ro Ro disse: “Me
apaixonei pela Bethânia quando a vi. No fundo ela é underground, subversiva,
tresloucada, louca”.
MB - Não sinto nada disso, mas você perguntou, vou
responder: Acho uma deselegância dizerem que eu disse isso dessa moça, Márcia
Mendes, que já morreu. Fui muito próxima, muito amiga, tive uma relação afetiva
muito intensa com ela. Era uma pessoa totalmente deslocada do mundo, teve uma
morte horrível [de câncer generalizado], sofreu a vida inteira. Conheci Márcia
casada com [o produtor fonográfico] André Midani, quando eu era contratada da
Polygram. Era uma moça de beleza rara. Acho uma covardia falar dessa moça, que
já morreu.
PLAYBOY - Mas a Ângela Ro Ro está
viva.
MB - Está viva, pode falar o que quiser e eu posso me
defender. Ângela é uma compositora por quem eu tenho um profundo respeito,
cantei canções dela, cantarei sempre que fizer canções muito boas, e me
oferecer. Agora, não quero ter contato pessoal nenhum com a Ângela, porque é
uma pessoa que não me interessa. Não me interessa conversar, não me interessa o
que ela pensa, o que ela faz, como ela age. A compositora que ela é me
interessa, e muito. Agora, se para compor o que compõe ela tem que viver o que
vive, problema dela, coitada dela, vire-se! Existem pessoas que têm necessidade
de se desagregar, e, como não têm coragem para fazer isso sozinhas, precisam
bater em alguém para ter uma resposta. E enfim serem ajudadas a se atirar no
fundo do poço.
PLAYBOY - Esse é o comportamento do
suicida.
MB - Ângela é suicida. A cada seis meses tenta um
suicídio. Não que ela corte os pulsos, mas faz uma cena para se matar. Quer ser
desrespeitada, detestada, abandonada, destratada. Isso pra mim é suicídio.
Agora, é problema dela que seja assim. Não sou amiga de Ângela Ro Ro. Mas isso
não me bota cega diante de sua música, que em muitos momentos é extraordinária.
PLAYBOY - Ro Ro disse que você tem
medo da sua sexualidade, que ela é fêmea e que você também é, não precisa ter
dúvidas sobre a sua sensualidade.
MB - Não sei onde ela se apóia pra dizer isso. Ela só
pode fazer interpretações artísticas, que é onde ela me vê. Nunca foi à minha
casa, nem eu à dela…
PLAYBOY - Além da sua sensualidade,
como é que você consegue ficar há tanto tempo no coração do público?
MB - A explicação é uma: a verdade. É aí que está o
segredo de tudo. E no palco você não pode mentir. Chico Buarque, Milton
Nascimento, Elis Regina, Gilberto Gil, Caetano, Gal e Eu somos uma geração de
muito poder. Os compositores foram os melhores, até hoje não conseguimos nada
melhor que o Chico.
PLAYBOY - O Brasil parou em vocês?
MB - Não foi isso que eu disse. O Brasil está andando, a
música popular brasileira cintilando, e pela primeira vez em muito tempo veio
uma onda de compositores com qualidade. Nesse meio tempo surgia um Djavan, ficava
um pouco, virava um pouco americano, sumia, voltava. Vinha um Alceu Valença…mas
acontecia esporadicamente. Agora, não. Sem fazer comparações, sem dizer se é
melhor ou pior, integrei uma enxurrada muito elegante a este meu último disco,
“Âmbar”. Chico César, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Adriana Calcanhotto.
PLAYBOY - Antes só tinha Chico e
Caetano…
MB - Eles abasteciam nossas carreiras. Só que, agora não
dá. Eles têm que trabalhar muito para eles mesmos. Caetano não pára de fazer
show. E quando o Chico, coitado, consegue fazer oito, dez, doze faixas
inéditas, faz o disco dele. Como o Brasil sempre foi mais generoso em
intérpretes do que em compositores, as vozes são muitas…
PLAYBOY - E raras como a sua…
MB - Voz de contralto.
PLAYBOY - Algum cuidado especial?
MB - Tem um segredo que uma professora de voz me deu no
teatro Opinião, ela tinha 80 anos e eu, 18: não fazer nada! Disse apenas:
“Menina, nunca deixe ninguém mexer na sua voz. Ela tem uma cor única”. Nunca
estudei nem fiz curso de canto…
PLAYBOY - Mas exercícios você faz…
MB - Só para não ficar rouca. A cantora lírica Maria
Lúcia Godoy também foi ao meu camarim há uns dez anos para me ensinar uns
execícios de respiração na testa.
PLAYBOY - Como é isso?
MB - O som sai da testa, e não da garganta, a gente não
sacrifica as cordas vocais. Mas a testa dói muito. Esse exercício abre o
terceiro olho.
PLAYBOY - Então cantar, para você, é
um ritual místico?
MB - O palco é minha casa, minha água, é onde eu existo.
O sentido de estar viva na terra. Tudo o que sinto, percebo, pressinto, intuo e
vivo é canalizado para o palco.
PLAYBOY - O resto da vida é acessório?
MB - Fico fazendo hora para o tempo passar, para poder
subir no palco outra vez.
PLAYBOY - Você acha que passa isso
para o público?
MB - Tem casos de pessoas que assistiram 36 vezes ao
mesmo show. Uma vez, fui procurada por uma mulher com uma expressão
desesperada, no final do show. Ela dizia: “E agora, o que é que eu faço com
tudo isso? O que é que eu faço, pelo amor de Deus”…
PLAYBOY - O que você respondeu?
MB -- Não tem resposta. São coisas que passam sem a gente
perceber. Eu sei de gente que vai assistir ao show calibrado com um drinque
antes e o motel reservado pra depois. Bebem a energia, ela não termina quando o
show acaba.
PLAYBOY - E você, como sai?
MB - Exausta [risos]. Desabo na cama e durmo.
PLAYBOY - É como se tivessem tirado
tudo de você?
MB - Não, EU é que dei tudo. Minha irmã Nicinha, que eu
chamo de babá, já sabe. Quando chego depois do show, ela diz: “Bom, até já, que
eu vou guardar a bolsa”, e não volta mais. Sabe que eu não volto muito normal.
É isso há anos.
PLAYBOY - Redondos: 50 de vida, 35 de
carreira, 35 discos.
MB - Já passei por todas as gravadoras do Brasil. Sou o
contrário da Fafá de Belém, que, num programa de TV em que os quatro convidados
dela eram presidentes de gravadora, dizia, muito orgulhosa, que nunca tinha
brigado com eles. Eu brigo com todos e vou-me embora [risos]. Gravadora é para
vender, e eu, para criar. Tem que haver desentendimento.
PLAYBOY - Você também não levaria ninguém
à televisão, porque detesta, não é?
MB - Eu não rendo em TV. É fria e tem regras assumidas,
quem entra num estúdio de televisão, tem de gritar. Ninguém diz: “Por favor,
você poderia sentar ali?” Não, é assim [aos berros] “Maria Bethânia, senta ali”
[risos]. Não é humano. Você está cantando, o câmera erra alguma coisa, o
diretor grita, estremece o mundo e seguem-se muitos palavrões. Todo mundo é
poderoso. O diretor fala: “corta”! e você some. Fico desse tamanhinho.
PLAYBOY - Por causa da sua aparição no
programa da Hebe, há dois meses, você foi incluída entre os espantalhos da TV,
junto com a primeira dama Ruth Cardoso e o cirurgião plástico Ivo Pitanguy.A
audiência caiu dois pontos…
MB - A Hebe me convidou tanto que eu fui. Só que não
agüentei, na hora de entrar pedi para ir embora. A Hebe implorava e eu
chorava…É ruim porque TV é obsessão no Brasil e preciso divulgar meu disco.
PLAYBOY - Você vê televisão?
MB - Só esporte. Sou louca pelo Chicago Bulls, não perco
um campeonato.
PLAYBOY - E novela, você acompanha?
MB - Quando o par romântico era Dina Sfat e Francisco
Cuoco eu não perdia [risos]. A Dina chegava a me ligar no Canecão, em pleno
show, para avisar: “Não perca a cena de amanhã, vai ter camisola preta”
[risos]. Eu adorava as cenas em que ela punha camisola preta. De lá para
cá…Santo Antônio!, piorou tudo nas novelas, até a luz. Claro, tem o Raul Cotez,
o Lima Duarte, que é gente de teatro. Esses valem a pena.
PLAYBOY - Você se inspira em alguém? A
musa não era a Janis Joplin?
MB - A gente se conheceu, ela gostava de mim, fez
questão de vir á minha casa quando esteve no Brasil em 1970, mas já estava
catatônica com a heroína. Mas o desconforto que ela e o guitarrista Jimmy
Hendrix expressavam, tinha a ver com o tropicalismo. Era aquela alegria por
trás, um querer bem ao Brasil e o lema “não parecemos com ninguém, mas temos
estilo”. Sem a humilhação que o brasileiro normalmente ostenta, sem botar
tapete vermelho pra estrangeiro.
PLAYBOY - Foi isso que você comentou
sobre o terceiro disco da Marisa Monte, dizendo que era a primeira vez que ela
parecia contente em ser brasileira?
MB - E sem mostrar que fala inglês! Ela se vendeu assim:
sou bem-nascida, só me identifico com Nova York, a minha música, a minha
maneira de vestir e de andar têm uma raiz nova-iorquina. Os discos
nova-iorquinos dela são ótimos, só não me tocam o coração como esse que elogiei
[Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão, de 1994]. Não se iluda, ela não
deixou de ser nova-iorquina, não. Mas jogou com o charme do Paulinho da Viola e
o violão do Gil.
PLAYBOY - Você não canta em outra
língua?
MB - Não. Quando enfio umas canções espanholas no
repértório é porque têm a cara da gente. Agora, não sei quando, vou fazer um
disco – UM disco – com canções francesas, porque sou apaixonada.
PLAYBOY - Por Paris?
MB - Queria até fazer o clipe de Âmbar cantando “Chão de
Estrelas” com cenas de Paris à noite. Você viu alguma coisa mais parecida com
Paris do que “Tu pisavas nos astros distraída/Sem saber que a ventura dessa
vida/É a cabrocha, o luar e o violão”…? Não dá uma força enorme numa canção
carioca, que se refere ao morro do Salgueiro, com imagens de Paris? Mas a
gravadora cancelou.
PLAYBOY - Paris é tão familiar assim
para você?
MB - É igual a Santo Amaro da Purificação [risos].
Sempre tive fixação por Paris. Quando dizia que ia viver viajando para lá, meus
amigos baianos diziam: “Oxente, essa menina é pequena, mas fita os Andes”.
Chego lá e é como se estivesse em casa, ando sem parar, e tropeço nos astros
distraída…no lobby do hotel.
PLAYBOY - Onde você costuma se
hospedar em Paris?
MB - No L’Abbaye
PLAYBOY: Não é lá que ficava Jorge
Amado?
MB - É, e meu companheiro de quarto, o Mastroianni! Quer
dizer, ele se hospeda no mesmo quarto que uso quando vou a Paris, e fica
tomando champagne na lareirinha lá de baixo, rodeado de um monte de atrizes
francesas maravilhosas, todas ex-mulheres dele, Catherine Deneuve entre elas.
PLAYBOY - Você se senta lá também?
MB - Não, mas divido o chuveiro com ele. Só tem um
quarto no L’Abbaye com chuveiro normal, os outros são aqueles europeus, estilo
telefone de mão, que você tem que ficar segurando. Então, só me hospedo no
quarto 3. Mas teve um reveillon em que eu estava no meu quarto e o Mastroianni
chegou querendo ficar ficar ali. Falei com o porteiro e soube que aquele chuveiro
em pé foi o Mastroianni quem mandou instalar. Achei que ele merecia que eu
cedesse o quarto, eu ia passar a noite fora de qualquer jeito. Ele me mandou um
recado dizendo que voltava dia 2 para a Itália. E eu mandei um bilhetinho:
“Mastroianni, pode ficar” [risos]. Não é pra me sentir em casa?
PLAYBOY - Vamos voltar pra cá. Ficou
em todo mundo uma dúvida, desde 1965, quando você cantava Carcará…Era um ato
político que tinha a ver com o marechal Castello Branco, na presidência depois
do golpe militar de 1964? Afinal, Castello era fei e, como o carcará,
nordestino.
MB - Carcará é um pássaro feio, forte, violento, que tem
o poder de carregar até mesmo uma águia. E o autor da música, João do Vale, é
um cara intuitivo, estávamos numa ditadura em 1965, ele sabia que a música ia
ser usada no espetáculo do Opinião contra a maldade e o poder dos militares.
Era também a força do nordestino, do homem brasileiro dizendo: sai de baixo que
eu também sou carcará”
PLAYBOY - Você disse que não mistura
arte com política…
MB - Mas, como todo artista, sou uma esponja, assimilo,
chego no palco e boto pra fora. Foi isso que aconteceu no panorama musical
daquele período. Depois, não melhoramos muito. Saímos desses anos negros para
cair numa cilada perversa capaz de causar danos iguais ou piores. Como eleger
aquela quadrilha que nos desducou, desnorteou e tirou tudo do lugar.
PLAYBOY - Você está falando…
MB - …daquele presidente que a gente botou pra fora.
PLAYBOY - Fernando Collor.
MB - [Bate na madeira 3 vezes e sopra]. Não digo o nome
dessa miséria.
PLAYBOY - Você fez campanha por
Tancredo Neves, não foi?
MB - Achava o Tancredo um velhinho maravilhoso e torci
por uma idéia, “Diretas Já”. Campanha mesmo foi só para Fernando Henrique em
1994. Nunca mais faço outra…
PLAYBOY - Por Quê? Você se
decepcionou?
MB - Está sobrando miséria, violência, desemprego e as
pessoas fingem que não estão vendo. Lembro-me do julgamento dos “anões do
orçamento”, no qual aquele deputado descarado, Genebaldo Correia, aquele
moleque lá da minha terra, olhava para um cheque dele mesmo e respondia: “Não
lembro, não” [risos]. Ele “esqueceu” de ter comprado uma fazendinha de 1 milhão
de hectares. Pois o poder brasileiro hoje é Genebaldo.
PLAYBOY - E quanto ao senador Antônio
Carlos Magalhães, que apóia o governo?
MB - O Tonico? Ele é como sarapatel: ou se ama ou se
odeia. Adoro ele, é supermaravilhoso, a gente se envia telegramas nos
aniversários. Antônio Carlos é um homem poderoso, que mexe com emoções
exageradas, sentimentos extremados. Todos os estados têm seus caciques, ele é
louco pela Bahia, faz uma campanhas no jornal e na rádio, com: “orgulho de ser
baiano”! E é machão, desacata todo mundo e divide os baianos. Em todos os
espetáculos que fiz, desde a estréia no Rio, dentro ou fora do Brasil, ele
estava na platéia.
PLAYBOY - Você vota nele?
MB - Nós somos uma família de esquerda, não temos
formação para apoiar o pensamento do senador, que é de extrema direita. Além do
quê, voto aqui no Rio. Mas esse homem trata o artista com respeito e distinção.
E sempre reverencia minha mãe, Canô, da maneira mais nobre e clássica. Esse
gesto de delicadeza tem de ser agradecido, porque é educação que está faltando
no Brasil. E olha, quando a igreja da minha cidade, que tem 400 anos, caiu, não
houve político de esquerda que desse jeito. Telefonei para o Tonico e foi na
hora! E eu não posso pensar em viver sem a Igreja da Nossa Senhora da
Purificação de pé.
PLAYBOY - O presidente também é um
homem distinto?
MB - Fernando Henrique, que conheci há muitos anos em
Paris, na casa da minha amiga Violeta Arraes, é inteligentíssimo,
bem-humoradíssimo, honestíssimo e tem uma conversa bacaníssima. Agora, como é
que ele permite que no governo dele as escolas exijam avalista para matricular
uma criança?
PLAYBOY - O Lula seria um presidente
melhor?
MB -- Votei nele, em 1989. Chorei na hora do voto, fui
criada ouvindo meu pai, funcionário dos Correios, carteiro e porta, dizer que
queria um trabalhador na Presidência do Brasil.
PLAYBOY - E o que acha do envolvimento
de artistas em outro tipo de campanha, como a que Daniela Mercury fez para a
Antarctica?
MB - A conta da antarctica é do publicitário Nizan
Guanaes, que é baiano. Ele patrocina e usa a Daniela. Agora a Daniela está com
uma música na novela [À Primeira Vista, de Chico César, na trilha de 'O Rei do
Gado'], até que está tocando bem. Mas soube que o segundo disco foi um
equívoco. Eu não suporto a axé music, acho um cão. Mas a Daniela tem talento.
PLAYBOY - E a Adriana Calcanhotto?
MB - Não coloque Adriana no nível de Daniela, que não
tem nada a ver. A Calcanhotto é uma compositora muuuuuuito booooooa, uma menina
que tem um trabalho diferenciado, especial, nobre e com muito humor, sem perder
o pé no popular. Faz as performances mais loucas, as poesias mais absurdas, os
discos mais complicados. As gravadoras devem se arrepiar todas quando Adriana
entra no estúdio. Ela declarou que não gosta de música com princípio, meio e
fim, o que é, no mínimo, louco e maravilhoso.
PLAYBOY - E Daniela?
MB - É uma moça bonitinha, gostosinha, bem-feitinha, faz
essa linha pernoca-de-fora, tem talento, sabe dançar, sabe fazer tudo. Mas
canta uma musiquinha que não é nada.
PLAYBOY - Quem toca o seu coração?
MB - Nora Ney é chiquérrima. Dalva de Oliveira é campeã.
Hoje a voz que me comove no Brasil é a de Nana Caymmi.
PLAYBOY - A onda Mamonas Assassinas
não pegou você?
MB - Tive pena da morte dos meninos, mas tinha uma
grossura braba ali.
PLAYBOY - E o Tiririca?
MB - É a prova de que o brasileiro se identifica com
suas misérias: o palhaço sem dente, falando palavrão. Música sertaneja, baião,
festa junina, forró, repente, xaxado…tudo descambou para essa coisa porca.
Parece aquele filme horrível
com aquela atriz estranhíssima que ataca o Michael Douglas…
PLAYBOY - Assédio Sexual, com Demi
Moore?
MB - …a grande vedetinha, o maior salário de Hollywood,
essa mulherzinha que deu para fazer strip-tease e casar com aquele machão [o
ator Bruce Willis]. Pior mesmo, só 9 e 1/2 Semanas de Amor, nojento, medonho,
saí do cinema no meio do filme. Eu adorava o Waldick Soriano cantando “Eu Não
Sou Cachorro Não”, mas não acho a menor graça no fulano que canta hoje “Eu Não
Sou Corno Não”.
PLAYBOY - Como você escapa dessa
poluição radiofônica?
MB - Não ligando o rádio. E lendo Mônica, Cebolinha,
Pato Donald, Tarzan, Fantasma, Drummond, Pessoa, Verlaine, Baudelaire e Proust.
PLAYBOY - Nessa ordem?
MB - [risos] Na ordem inversa. Em quadrinhos eu me
viciei depois de grande. Agora, Proust eu lia com 14 anos porque um grande
amigo meu, Alvinho, me aconselhava: “Bethânia, você tem de ler Proust muito cedo,
para já arrancar na vida sabendo das coisas”.
PLAYBOY - Você entendia o que lia?
MB - [rindo] Dançava. Quando desembarquei no Rio, três
anos depois, minha amiga Teresa Aragão voltou a me aconselhar: “Esquece o que
você leu, leia tudo outra vez; você não tinha juízo para ler Proust”. Na época,
obedeci porque Alvinho era diretor de teatro. E tudo o que eu queria na vida,
era fazer teatro.
PLAYBOY - Você nunca fez?
MB - O que eu gosto no teatro são os extremos. De um
lado, circo, picadeiro, trapézio. Do outro, personagens como Electra ou a Adela
de “A Casa de Bernarda Alba”, de García Lorca.
Descobri que me realizo mesmo é
misturando teatro a circo no espetáculo…. e cantando.
PLAYBOY - Você nunca teve medo do
palco?
MB - Nenhum. Hoje tenho medo de tudo, até de avião.
Passei a ter medo das coisas de que mais gostava. Trovoada, por exemplo.
PLAYBOY - Seu orixá não é Iansã?
MB - Precisamente, a senhora dos raios, dona das
trovoadas e da tempestade. Tenho medo, horror, pavor também de…aquele inseto
nojento…que é igual àquela pessoa cujo nome eu não falo…
PLAYBOY - Barata?
MB - [Bate na madeira três vezes e sopra. Risos.] Tenho
horror de rato, também. O que eu era corajosa antes…acabou. Andava de moto a
150 km por hora. Enfrentei o Teatro Opinião sem sentir nada. O medo veio agora,
retroativo.
PLAYBOY - Quando foi chamada pelo
Opinião, aos 18 anos, você viajou sozinha?
MB - Caetano teve de me acompanhar, ou meus pais
proibiam…eu era virgem! Caetano e eu sempre fomos muito unidos, parecidos.
PLAYBOY - O escritor argentino Julio
Cortázar, quando viu um espetáculo de vocês dois, em 1975, no Rio, definiu:
“Ele e a irmã são a mesma pessoa”.
MB - Isso porque ele não viu o resto da família. Somos
oito irmãos, dois adotados, alguns muito parecidos…Mas Caetano e eu somos
grudados. Quando nasci, ele tinha 4 anos e me deu o nome.
PLAYBOY - Tirou de onde?
MB - De uma valsa linda do Capiba, compositor
pernambucano, gravada por Nelson Gonçalves. Meu irmão Rodrigo queria Mary
Gislene, nome de uma rumbeira do circo por quem estava apaixonado. Entre a
valsa e a rumbeira, meu pai agarrou um boné e fez um sorteio, cada um pôs um
nome. Saiu Mary Gislene [risos]. Mas Caetano fez birra.
PLAYBOY - Caetano disse que você se
atirava no chão, que era exótica, rebelde…
MB - [rindo] Me atirar, sempre me atirei. Enchia o
tanque de água e pulava, achando que era o mar. Dava saltos de trampolim da
cabeceira da cama, sonhava que estava dando um mergulho e ficava estática no
ar. Como tinha umas unhas gigantescas e pintava cada uma de uma cor, me achavam
muito exótica lá em casa. Me enchia de pancake na cara, tipo máscara de índio
americano, me enrolava numas roupas de cânhamo misturadas com fios de couro e
cobre que eu mesma fazia. E essas loucuras todas eu tripliquei, de rejeição e
raiva, quando meus pais me mandaram estudar em Salvador. Pasei a me vestir de
Fedra, copiando o filme da Melina Mercouri.
PLAYBOY - Você sempre foi assim?
MB - Engraçada, saudável e feliz. O ventre da minha mãe
é muito limpo. Todos os filhos têm muito humor, o que é fundamental.
PLAYBOY - Um humor um tanto alterado,
segundo dizem…
MB - Oscila, sim. Tenho um rubi no coração com 29
pontas, vai para todos os lados, dá para muitas pessoas e emoções. Por outro
lado, sou quieta, interiorana…
PLAYBOY - …e, por outro, arrumou
alguns desafetos. Todo mundo soube daquela corrida que você deu no Guilherme
Araújo, seu ex-empresário, na sua própria casa, saindo do banheiro, nua. É
verdade que você caiu de pancada em cima dele?
MB - [Séria]. Hoje ele é meu grande amigo. Tivemos uma
discusão muito violenta, mas foi ótima.
PLAYBOY - Problema de dinheiro?
MB - Não. Aquela discussão maravilhosa, de trabalho, foi
porque eu sou muito ciumenta. Ele queria trabalhar com a Gal e o Caetano…Queria
que eu fizesse mais show do que eu podia…Foi construtivo.
PLAYBOY - Pode ter sido construtivo,
mas houve tapas.
MB - Não, já passou, somos amigos. Guilherme acabou foi
inimigo da Gal, com quem não fala até hoje. Pelo Caetano, tem respeito. As
pessoas têm é que entender o Guilherme, tudo nele é muito passional. A vida
dele não tem a distância do empresário, é relação de casamento. Mas ele gosta
de mim. Nos meus 50 anos, pegou uma foto minha aos 25, mandou fazer um cartão
lindo e deu para todos os meus amigos.
PLAYBOY - Mas você rasgou o contrato
que tinha com ele…
MB - Realmente, fui ao escritório dele e falei: “A
partir de hoje estamos rompendo nosso contrato. Nós não temos contrato de nada,
nem de trabalho, nem de amizade, nem de amor, nem de nada. A-ca-bou. A-deus.”
Ele chorou, disse que eu estava errada. Mas fui embora. Eu sou assim.
PLAYBOY - Com Ronaldo Bôscoli também
teve briga?
MB - Briga, propriamente, não. O Ronaldo, que Deus o
tenha, foi um jornalista que me perseguiu aaaaaaaaaaaaaanos, na coluna dele. De
repente, começou a dizer que eu era deusa. Nunca me aproximei dele.
PLAYBOY - Não foi com ele que você e
Caetano se desentenderam já no primeiro Festival Internacional da Canção, em
1966, no Maracanãzinho, no Rio? Era uma canção Do Caetano e do Gil, “Beira
Mar”?
MB - O Ronaldo Bôscoli, carioca, estava no júri e falava
pros jornais: “Ué, o que esses baianos estão pensando? Eles não conhecem Cabo
Frio, Saquarema, Araruama, Angra dos Reis? Estão falando que o mar da Bahia é o
mais azul do mundo?” E Caetano, que já era metido a galo de briga, se enfezou.
A música foi desclassificada, né?
PLAYBOY - Você não brigou também com a
Nana Caymmi?
MB - Nana? Não vive sem brigar com alguém [risos]. Morro
de medo dela, tremo…e morro de rir
PLAYBOY - Você teve outro desafeto:
Glauber Rocha.
MB - Briga não houve não. Mas quando Glauber fez o
“Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, eu cantei uma música no filme e
ele cortou. Era um verso, “Será que o sol quebra a vidraça/ Será que o sol vai
quebrar?”, só isso. Gravei durante dois dias, só porque amava o Glauber e minha
melhor amiga era a irmã dele, a Anecy Rocha. Glauber era um deus. Ficava
trabalhando nu em casa, criava um clima. A Anecy falava: “Bethânia, não vai lá
porque o Glauber está trabalhando”, e eu ja sabia que significava: Glauber está
nu. Eles morriam de rir, mas eu ficava muito tensa, aí a Anecy tentava relaxar:
“Vamos quebrar uma loucinha por aí” [risos] , o que, na época, significava
“vamos dar uns amassos”.
PLAYBOY - Por que o Glauber cortou a
cena da música?
MB - Não sei. A Anecy explicou que ele precisou tirar
toda a seqüência. Claro que eu nunca cobrei nada, imagina. O Glauber me
convidar? Um luxo! Só que um dia estava no bar Zepellin quando a Odete Lara,
que era atriz no filme, chegou à mesa e fez uns comentários muito ruins,
botando tudo pra baixo. E eu, claro, reagi, fiquei com raiva.
PLAYBOY - Você continuou amiga do
Glauber até a morte dele?
MB - A gente se via muito em Paris, ele e a mulher dele,
Juliet Berto. Era uma francesa linda que eu amava, com quem ele teve a última
casa na França, e que durante um show que fiz no Olympia, me deu todas as
relíquias do Glauber. Fotos, cartas, cartazes de filmes, recortes. ela confiou
isso amim e levei direto à mãe dele.
PLAYBOY - Você falou do seu humor
alternado, revendo seus desafetos, seus períodos negros. É verdade que, nos
anos 60, você tentou suicídio tomando Varsol e barbitúricos?
MB - Não importa se tomei Varsol, se não tomei, se foram
cinco ou dez comprimidos. Acho que quem tomou Varsol foi uma amiga minha, eu
fui só nos barbitúricos. De qualquer forma, estava num processo depressivo, por
nada, ia tudo bem, carreira, dinheiro….Eu morava numa cobertura na Rua
Nascimento Silva, em Ipanema, brincava muito nas areias das “Dunas da Gal”,
andava de boate em boate. De repente, foi tudo ficando triste e banal. Comecei
pedindo remédio pra dormir, fui tomando, paguei e não acordava mais. O que
importa é que não morri.
PLAYBOY - O que tirou você desse
buraco? Psicanálise?
MB - Foi. Passei por três psicanalistas. Fez brotar uma
coisa em mim, me despertar, jogar essa angústia fora, agüentar a dor. Depois
tive perdas muito fortes, meu pai morreu e o máximo que me aconteceu foi ficar
mancando.
PLAYBOY - Você tem medo de ficar
velha?
MB - Nenhum. Meu cabelo demorou a ficar branco e eu peço
aos fotógrafos que não disfarcem, nem na capa do meu disco. Também não vou
fazer plástica nenhuma. Foram 50 anos para chegar até aqui, pretendo me
divertir muito e não jogar nada fora. Até minha voz melhorou.
PLAYBOY - Qual é a parte do seu corpo
que você acha mais bonita?
MB - Gosto do meu corpo, minha cara, meus pés, minhas
mãos quando estou cantando. Fora do palco, eu me esqueço.
PLAYBOY - Você nunca quis ser
rechochuda?
MB - Nunca quis ser diferente do que eu sou. Convivo
muito bem comigo, não me atrapalho em nada.
PLAYBOY - Você gosta de ser sexy?
MB - Não me acho sexy.
PLAYBOY - Mas gosta de sexo. Sexo é
fundamental?
MB - Importantíssimo.
PLAYBOY - Só de olhar alguém você
saberia dizer se se trata de uma pessoa realizada no sexo?
MB - Ah, não sou assim craque, não, menina [gargalhada].
Como dizia uma amiga: às vezes é rebate falso! [gargalhando]
PLAYBOY - Mas você diria que sexo muda
as pessoas a ponto de outros notarem?
MB - Não acho que seja tão evidente assim. Depende.
Conheço pessoas de uma beleza, de uma profundidade, de uma expressão…que jamais
tiveram qualquer relação sexual na vida.
Pessoas de chorar de tanta
beleza. E conheço outras que transam, fazem muito amor, são muito dirigidas
para o sexo. Tem períodos mais animados para o sexo, mas, mesmo não praticando,
existe o sexo na cabeça.
PLAYBOY - O sexo ficou banal?
MB - Ficou. Para mim, não tem graça nenhuma. É fácil e
rápido? Não quero, obrigada. Eu gosto da coisa com tempo, é uma perna que
passa, é um olhar demorado, isso é que eu acho sensual e bonito.
PLAYBOY - Você acha, como tanta gente,
que sexo é pra se fazer todo dia?
MB - Tô fora. Parece que é escovar os dentes, o
Fantástico anunciando, “escovar os dentes todo dia, fazer sexo todo dia, comer
tomate, senão morre”. Menina, o povo vive doido!
PLAYBOY - Então a liberação fez mais
mal do que bem?
MB - Tem muita gente nova fazendo sexo assim, porque não
tem o que fazer. Isso é loucura. O namoro ainda é o grande momento.
PLAYBOY: E os complementos?
MB: Lençol de cetim claro. Adoro. Mas na verdade prefiro
linho. Sou apaixonada, não esquenta, e no lençol fica bom.
PLAYBOY - E roupa?
MB - Acho mais bonito uma mulher sob uma cachoeira
vestida do que nua, acho mais bonito tirar a roupa de uma pessoa do que já
encontrá-la sem. Tudo pra mim tem que ter teatro.
Você vai se sentar para
almoçar, não tem teatro nisso? Senta, desdobra o guardanapo, pega o copo…é
teatro. A mesma coisa numa relação de amor ou de amizade.
PLAYBOY - A vida é um cenário…
MB - E tem que ser bem feito, com boa luz. Um bom
espetáculo!
PLAYBOY - Você é ciumenta?
MB - Sou. Demais. De tudo.
PLAYBOY - Seus amores acabam por isso?
MB - No amor é onde sou menos ciumenta. Sou muito mais
com os amigos, família, trabalho. Para trabalhar comigo tem de ser 24 horas
para mim. Mas sou ciumenta também nas paixões…
PLAYBOY - Você namora duas pessoas ao
mesmo tempo?
MB - Já fiz.
PLAYBOY - Quando era jovem?
MB - [Rindo] Nem tão jovem…
PLAYBOY - Ontem mesmo?
MB - Não. A gente tem na cabeça a idéia de que pode
trair porque tem juízo e o outro não pode porque não tem. Já caí nessa, não
caio mais. Não tenho mais vontade de anarquia.
Já brinquei demais…[pausa] E
continuo brincando [gargalhada]
PLAYBOY - Mas não tem essa de viver um
amor de cada vez?
MB - Sempre que se ama, se vive um grande amor de cada
vez…
PLAYBOY - É um pouco coisa de mulher
só fazer amor com quem ama?
MB - Concordo ple-na-men-te.
PLAYBOY: Se você tivesse que dar um
conselho às mulheres, o que diria?
MB - Procurar ter prazer em tudo. quem está sendo
traído, que parta pra outra, esqueça…tem tanta mulher, tanto homem no mundo…
PLAYBOY - É fácil assim?
MB - Nada é fácil nesta vida. Mais difícil é ser
humilhada, traída, amargurada, se achando gorda, feia, velha, desprezível…Não!!
Segura a onda! Parte pra outra. Ou então agüenta essa numa boa. Se gosta tanto
que não pode viver sem, aproveita o tempo que tiver, todo mundo vai ficar mais
feliz.
PLAYBOY - Quem a AIDS penalizou mais:
o homem ou a mulher?
MB - Pior é a situação da mulher, a grande sofredora
dessa história. Porque homem não tem vergonha na cara, mesmo. Parece que achou
na lata de lixo, vai com homem, mulher, periquito, papagaio, de tarde, no
ônibus, no elevador, debaixo da mesa…e a mulher em casa, séria,
ajuizada…contaminada. E olhe lá se não vai ter júri por aí para dizer que foi a
mulher que contaminou, que é a vadia.
PLAYBOY - De qualquer forma, é cruel…
MB - O choque da AIDS veio como um castigo à leviandade.
Estava demais. Precisava de um freio, era um não-tinha-mais-onde-parar. O
castigo veio cruel e já perdi muitos amigos, fico apavorada, tenho sobrinhos,
sobrinhas, filhos de amigos jovens, e o Brasil não tem sequer uma campanha
digna, convincente, é uma misériao que vem sendo feito. Convivo com pessoas
instruídas e pergunto: Transou com camisinha? Não? Então tem que se internar,
porque é loucura. Isso porque a campanha no Brasil é assim: “Se possível, use
camisinha”.
PLAYBOY - Não é coisa de país macho? A
camisinha faz muita gente desanimar…
MB - Mas é um tipo de relação sexual que não é carregada
por nenhum sentimento ou atração mais forte, é a mecância do sexo. É a famosa
excitação artificial, para ter a relação naquele momento. Igual a parar no
posto de gasolina e trocar o óleo de um carro. Já ouvi de muitas amigas: “Até
pensar na camisinha, eu mesma já perdi a vontade”. Meu queixo cai.
PLAYBOY - Você acha que a Bahia tem a
ver com sua sensualidade?
MB - A Bahia é muito sensual e não estou falando só de
mim, não. O povo baiano tem languidez…um jeito ali…uma gingada aqui…
PLAYBOY - Dizem que é porque baiano
come muito marisco.
MB - Tem um específico: Mapé. Uma delícia. Muita
vitamina E. Dizem que é afrodisíaco. sobre o mapé brinca-se muito, porque os
pescadores da região vêm com umas histórias. Teve um que teve filho aos 100
anos, e a base da comida deles é o mapé. Que é pequeno, mas saborosíssimo. Quem
for à Bahia, não pode deixar de comer moqueca de mapé.
PLAYBOY - Que mais a Bahia tem de tão
especial?
MB - Acho que é tudo. Até o mar da Bahia é morno como a
barriga da mãe da gente. Nunca vou perder essa vontade de estar cercada das
águas baianas, mar, cachoeiras e rios, nunca vou perder essa saudade.
PLAYBOY - Como você cura essa saudade?
MB - A casa onde moro no Rio, há 21 anos, em São Conrado,
eu construí no estilo de uma antiga fazenda baiana misturada com o Japão
[risos]. Fica no pé da pedra da Gávea, que era uma ilha onde os fenícios
deixaram marcas, ou talvez fossem hieróglifos do Egito antigo gravados no
granito, porque ali era uma ilha. Quer dizer, morando na Estradas das Canoas,
estou no fundo do mar.
PLAYBOY - Tem cachoeira em casa?
MB - E controle remoto pra regular o jato! Não posso
viver sem isso, sou louca por água, é Iansã e Iemanjá em mim.
PLAYBOY - Quantos santos você tem?
MB - Muitos. Como fui criada na religião católica, na
minha casa tem Santo Antônio, Senhor do Bonfim, Santa Bárbara, Nossa Senhora da
Purificação, a Sagrada Família, Deus Menino, tenho de tudo que é para minha
adoração. E uma casa de santos para o candomblé, que não comporta imagens.
PLAYBOY - São as suas relíquias?
MB - Entre outras. Tenho, no altar dos meus troféus, um
par de sandálias douradas, de plataforma altíssima, que pertenceu a Carmen
Miranda, um vestido de Dalva de Oliveira e as pulseiras de Eliseth Cardoso.Tudo
é relíquia. Mas não se pode misturar candomblé com o resto.
PLAYBOY - Você tem medo de despacho de
macumba?
MB - Naquela época do suicídio disseram que tinha muito
despacho em cima de mim, mas eu nem conhecia candomblé. Sabe como eu conheci
Mãe Menininha? Por meio de Vinícius de Moraes.Foi ele que me apresentou a ela,
uma das maiores alegrias da minha vida. Paixão, paixão, paixão!! Eu, baiana,
não sabia de nada, tanto que encerrava o “Rosa do Ventos” vestida de preto da
cabeça aos pés. Foi a primeira coisa que o candomblé me proibiu. O preto não
combina com meus orixás.
PLAYBOY - Você curte igreja?
MB - Nunca deixei de celebrar meus aniversários com
missa, sempre na igrejinha de São Conrado, com o padre Djalma, um dos raros que
eu respeito e adoro, um padre de muito juízo, amor e vocação. Mas este ano a
capelinha estava em reforma e eu fazia 50 anos. Então, minha mãe fez a festa na
Bahia e encomendou a missa na igreja de Santo Amaro. Missa em latim! Olha, foi
de uma elegância, de um chique…com três padres, muita pompa, tudo a que eu
tinha direito.
PLAYBOY - Você fala muito em Deus.
MB - Quando eu era pequena e acreditava piamente em
Deus, Caetano chegou pra mim e disse que Deus não existia. “Acredita não, Deus
sou eu, mana, eu é que sou Deus” [risos]. Apesar disso, continuei acreditando
em Deus. O que não tenho é muita intimidade com ele. Me dá um pouco de
medo…Como fui criada em colégio de freiras, fui ameaçada com a imagem daquele
Ser que vê tudo, um perseguidor, um milico tirano me vigiando para me botar em
cana a qualquer momento. Intimidade, mesmo, eu tenho com Nossa Senhora, com
ela, tudo bem.
PLAYBOY - Quem trabalhou com você jura
que não pode ter ruga na roupa, o palco é purificado com sal grosso e você
chega para um show com menos de 3 horas de antecedência.
MB - Olha, tem muita fantasia e acaba ficando tudo meio
banal. Ruga na roupa não pode mesmo! E nunca chego com menos de 3 horas de
antecedência nos meus shows. Mas as coisas que são feitas dentro da religião
devem ser preservadas e respeitadas. Numa casa de candomblé se trabalha muito,
trabalho braçal, trabalho de concentração, monitoração. Não é nada dessas
pequenas bobagens. Mas estou convencida que devo estimular esse tipo de
história.
PLAYBOY - Por quê?
MB - Porque sou muito calada, na minha… O que eu NÃO
faço é que incomoda as pessoas. Não freqüento boate, não janto em restaurante,
não vou aonde tem foco para ser fotografada. Sou uma pessoa de dentro de casa e
saio quando dá vontade e para o que interessa.
PLAYBOY - Você vai à festa de Iemanjá?
MB - Acho imperdível. Quem perder a do Rio pode
recuperar os fluidos na festa da Iemanjá baiana, que é no dia 2 de fevereiro,
com saída de barquinhos cheios de presentes para a rainha do mar. É a feta mais
bonita do Brasil. mas também acho que ninguém deve perder o Boi-Bumbá em São
Luis do Maranhão, o Reisado, as nossas tradições para as quias, infelizmente, não
temos um ministério da cultura preparado.
PLAYBOY - É uma crítica ao ministro
Francisco Weffort?
MB - Eu nem sabia que ele existia. Mas vi o ministro
sendo entrevistado num programa de TV, o Roda Viva, e pensei: “Será que estou
ficando pirada? Esse ministro é da cultura ou da economia?” Durante 50 minutos
ele só falou em verbas, dinheiro e outros palavrões. Depois vi que ele foi
homenageado pelas tietas do Brasil, Betty Faria e Sônia Braga. Agora, de
tradição ele não entende nada!
PLAYBOY - Isso é um recado?
MB - Estou dizendo que a coisa mais bonita que o Brasil
tem é a cultura popular. Sabe quem está preservando esta cultura? Famílias
simples, como a minha, meu pai, que trabalhava nos correios e ensinou música
aos oito filhos. E gente como o Naná Vasconcellos. Ele junta 500 crianças de
rua no Recife, ensina todo mundo a tocar com caixa de fósforo, lata de cerveja,
tampa de panela. Ensina ritmos, percussão. Passado um tempo, ele elege 100
crianças e faz um disco. Isso é um ministério da cultura! E sabe com quanto
dinheiro trabalha? Nenhum! É maravilhoso, mas é dever do estado: preservar, não
ter vergonha. Para assimilar o que vem de fora a gente não tem de acabar com o
que é nosso. Eu faço o que posso.
PLAYBOY - Como?
MB - Por exemplo, fiz questão de colocar a Virgínia, a
voz afro-lírica-baiana mais bonita do momento, no meu novo disco. Também mando
reza missa todo dia de Reis, 6 de Janeiro.
Minha mãe foi porta-estandarte
desta festa durante muitos anos em Santo Amaro e outro dia passou o estandarte para
mim. Dancei um pouco na rua, morta de vergonha, mas cumpri a tradição.
PLAYBOY - E no Rio?
MB - Também tiro Reis para os amigos. É uma
festa-surpresa. A gente arruma os três reis magos, s pastorinhas, as
ciganinhas, os convidados, a orquestra, porta-estandarte, combino com as
pessoas e levamos tudo, comida, presentes, bebida. Aí, a gente bate á porta de
alguém, canta-se, canta-se, canta-se, até a pessoa abrir a casa e é festa até
de manhã. O amigo não gasta nada e se diverte.
PLAYBOY - Para quem você já fez?
MB - A última foi para o Caetano, no apartamento dele no
Leblon. A Gal anda enfurnada nessa casa que comprou em Trancoso, está mais
preguiçosa de sair da beira do mar. Meus amigos passaram a morar todos em
apartamento, andam meio desanimados, precisam levantar com essas coisas.
PLAYBOY - O que você deu?
MB - Camisetas. Mandei imprimir várias. Numa, o título
do primeiro romance que li, O Coração É um Caçador Solitário. Noutra, o final
de “Chão de Estrelas”, que me arrebata, ao fundo! Para o esenho da terceira,
escolhi uma menina africa da tribo gigante KAO com as mãos nas cadeiras, e por
cima estampei a frase de um cubano, que era tudo que queria dizer nos meus 50
anos: “APRENDI A NÃO ME ENTRISTECER COM POUCA COISA.”
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