2017
Revista
Revista
Delírio Tropical,
AMARELLO
# 26
Abril
Abril
BÁRBARO E NOSSO
Dedicado a
Oswald de Andrade, Rosa Magalhães, Eucanaã Ferraz, e principalmente
ao argonauta Caetano Veloso.
de
Guilherme Abud (*)
Foto Vânia Toledo
Foto Vânia Toledo
“Quem descobriu o Brasil,
foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval”, enredo que
coroou a Imperatriz Leopoldinense, campeã do desfile das escolas de samba de
2000, hoje
se desdobra e redobra na
folia, que, dois meses antes de Cabral, já era orientada por Caetano Veloso. “O
Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner
submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso” – assim disse Oswald de Andrade!
ANDRADE, Oswald de disse “Só a Antropofagia nos une. Nunca fomos catequizados.
Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de
Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses…
…Antes dos portugueses
descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.” Caetano tinha
orientado o carnaval e organizado o movimento! Contra o índio de tocheiro. O
índio filho de Dona Canô é a prova da alegria dos nove no matriarcado de
Panamérica.
A Cruzada Cafona caminha à
Terra Santa contra a Intelligentsia. Há Cruzada. Pecado é o julgamento da nossa
cafonice. Da sua cafonice. Você é cafona. Caetano nunca teve preconceito em
pecar contra os bons costumes de uma classe que se satisfazia em tocar apenas
um acorde. Só. E o sol, dilacerando contra o vento, nos apresentou a síntese a
queimar os nossos pés, da grande geleia geral que vinha a descer o morro de
Mangueira, em verde e rosa nos parangolés tropicalistas, ao som daquele
surdo-mór.
És matéria em obra do famoso
oriki de Exu: “Ele matou um pássaro ontem, com uma pedra que somente hoje
atirou”. Caetano surge a atirar pedras hoje para atingir as lógicas canônicas
de ontem, e a cada novo passo, na sua obra, atira uma pedra rumo ao seu próprio
espelho, que se espedaça, e retalha um caleidoscópio fundamentalmente quebrado.
Requebrado. É Mulata ta ta, é Irace- ma ma ma. É a obra de Alencar, que
sedimenta Oswald, a construir o vale de Joias, acalentando o ébrio Celestino em
seu Coração Materno.
“…o contrassenso deve ser o
mandamento de quem precisa disfarçar o mal-estar após mostrá-lo sem pudor…”, já
dizia Eucanaã Ferraz em seu poema “1”, que está incrustado na orelha do livro Escuta.
Caetano alegoriza o mal-estar para escancarar o contras- senso. Alegoria do
Brasil real. Brega em sua essência. Messiânico. Esmiúça uma produção despida de
preconceitos, vaga na sua fundamentação musical.
A inebriar a multidão,
Angela Maria, Nora Ney e Nelson Gonçalves cantarolavam aquela canção de
Celestino, sob o atento violão de Caymmi. Aquela canção de amor embalava o
beijo de Marilyn Monroe no “eu” tridimensional onipresente de José Agrippino de
Paula, transformando Santo Amaro em uma nova Panamérica, a Panamérica
alegórica que agora pertencia a Caetano Veloso. Santo Amaro, o santo, viu a
multidão, em procissão, por lá adentrar. Clarice Lispector de mãos dadas a João
Gilberto com sua bossa, Bob Nelson vestido de caubói, e Elvis Presley a
misturar seu chiclete na banana de Jackson do Pandeiro. Herivelto, Ary e
Pixinguinha sambavam ao som da bateria de mestre André.
O transe entrou em Transe:
um país e sua alegoria. Uma alegoria que ganhou vida e, como nos filmes mais
tenebrosos, passou a assombrar seus entes alegorizados. Como recurso, sua Terra
torna-se estrangeira. A Ter
ra Transa em London. Em London, o experimentalismo existencialista
existe. É a guitarra. É a vanguarda. É a sintaxe sintética misturada no
caldeirão nostálgico de uma triste Bahia. Torna-se assim Demiurgo nas mãos do
bruxo Mautner.
Debaixo dos caracóis dos
seus cabelos, araçá azul fez ninho e avoou. E os discos viraram voadores a
apontar contra os chapadões dos nossos narizes. Viva Palhoça! Viva a vaia viva
da desilusão daqueles que não entenderam nada. Nada! Qualquer coisa não
significa nada, ou significa, a marca dada por Torquato, Capinan, Macalé,
Salomão e Leminski, em outras poucas palavras. De repente, na ver- dura eu vi a
cor mais verde, a cor mais alegre e mais triste de acordes do purgatório que me
levaram ao louvor a Jorge, aquele da Capadócia.
Seu caleidoscópio é a
múltipla coloração carnavalesca dos afetos, afinal são muitos carnavais… O
Tropicalista apedreja Deus e o Diabo, abraça a Divina Comédia, e se banha em
chuva, suor e cerveja. Araçá voou, e logo João de Barro pousou para ver a filha
da sua Chiquita Bacana entrar para “Women’s Liberation Front”. Desde que o
samba é samba, os clássicos despertam – com despertadores de pífanos e
pandeiros – como se nascessem feitos Macunaíma.
Circuladô, despista as
tréplicas narrativas formais. Ora, cinema é falado! Para Caetano Veloso, a
pedra despedaça a narrativa cinematográfica e abraça a poesia, a fala e a
filosofia. É a película de ensaios dos ensaios que reverberam o avesso do
avesso do avesso. Seus personagens são ícones que falam! Que verborragizam
experimentalismos. Circulador, circulando, despista o Genipapo Absoluto
estrangeiro onde ardia em fogueiras o vapor barato da nova ordem mundial.
Caetano foi encontrado dentro da nova ordem antropofágica, de tanga e cocar,
atirando pedras na ruína daquela escola em construção. É tropicália ainda viva,
é a terceira margem do rio. Pensaram que ele tivesse voltado americanizado, mas
jamais se esqueceu da Bahia. Caetano é a onisciência do beijo de despedida, no
cais, de Caymmi a Carmen Miranda.
No fio da navalha, valsa o
ano de 2000, e apresenta sua Verdade!
Categorizando tua ternura sedenta, em redes de balanço e em mosaicos de
palha. Meditou com Odara e Tieta a capacidade de estar só. E o sol agora é
ocultado pelo eclipse total. A vida nunca passou de um grão.
Mas é na virada do século,
já perdido no espaço de 2001, que Caetano apresenta ao vivo suas Noites do
Norte. É a confluência musical que abraça a qualidade de não ter lógica formal.
É o dom de iludir o espectador. Como Garrincha confundia seu marcador. De
flertar com o caso para trançar o acaso. Zumbi e Haiti são lutas que rebarbam
no último romântico que voa com Araçá Azul. Ele exalta a malícia de toda a
mulher, de toda tigresa, sob o funk encenado num tapinha só. Só um tapinha. Só
Eu e a Brisa à luz de Cajuína. É a desorganização de caminhos paralelos
cruzados. A encruzilhada é sua passagem fundamental.
E, assim, a liberdade passa
a ser compreendida na alegorização do país que nunca saiu de sua transe. Você
não vai reconhecer Caetano quando ele passar por você. “Cê” ele passar, you
don’t know me. Eu sou samba, desde que o samba virou rock. Quando me ouvir
cantar, passará por Zii e Ziê, e verá que tudo em volta está deserto assim como
dois e dois são cinco.
Sinótica. Diacrônica. É a
incompatibilidade de Gênios.
Gênio!
Deixo-te meu Abraçaço enquanto me deito na fazenda de areais. Teu coração vagabundo ainda
teima ser um Coliseu transcendental. Do alto do teu estandarte, do bloco que
reinaugura a cada carnaval, cintilam novas Lindonésias. O monumento segue
hiper- moderno, mas continuam a dizer nada do modelo do seu terno.
(*) GUILHERME ABUD é
cineasta, escritor, realizador e pesquisador cultural, e escreveu este artigo
para a edição Delírio Tropical, AMARELLO.
Página 13
Orelhas
1
Estão
certas todas as canções banais letras convencionais
seus
corações como são de praxe; estão certos os poemas
enfáticos
inchados de artifícios à luz óbvia da lua
ou
de estúpidos crepúsculos; os sonetos mal alinhavados
toscos
estão certos bem como as confissões íntimas
não
lapidadas reles nem polidas; ouçamos o que dizem
sobre
qualquer coisa; dizem não vai dar certo; repetem;
e
se o verso é trivial é o mais sagaz quanto mais pueril
mais
seguro quanto mais frouxo mais sólido quanto
mais
rasteiro mais a toda prova e quanto mais barato
e
quanto mais prolixo o alexandrino mais legítimo;
as
formas desdentadas vêm do fundo; as odes indigestas
dizem
tudo; o verso oco não traz menos que a verdade
nua
e ponto. Estão certos os romances de aeroporto;
a
quem busca um modelo procure o estúpido; se deseja
uma
estrela de primeira grandeza escolha o simplório;
é
o que digo não busque senão na aberração a sinceridade
e
no disparate a franqueza; prêmios literários não passam
de
hipocrisia; estiveram desde sempre certos os erros
de
tipografia; o contrassenso deve ser o mandamento
de
quem precisa disfarçar o mal-estar após mostrá-lo
sem
pudor; sim a saudade arde exatamente como
nos
roteiros dos filmes mas só as fitas mais chinfrins
e
com fins infelizes não mistificam e dizem de antemão
o
que seremos: redundância errância perfeição.
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