22/1/2002
No dia 29 de setembro de 2001, Caetano recebeu em Assis, na Itália, o Prêmio Michelangelo Antonioni para as Artes. O prêmio é dado anualmente pelo cineasta italiano a um artista internacional cujo trabalho ele considere particularmente significativo e premonitório dos futuros caminhos das artes. O músico brasileiro retribuiu o prêmio com um show-homenagem a Antonioni que, naquele mesmo dia, fazia 89 anos. Na ocasião, ele cantou também uma canção novinha, feita em italiano para Antonioni. Os ecos de Nino Rota que tive a impressao de ouvir na canção me encorajaram a pedir-lhe uma reflexão sobre o autor-símbolo do cinema italiano. Como sempre, Caetano superou as melhores expectativas, como se pode ver a seguir. – Elisa Byington, de Roma
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Por Caetano Veloso
Amo de modo especial a música que Nino Rota escreveu para cinema. Há muitas coisas bonitas escritas para servir como trilhas sonoras de filmes. Mas, embora eu aprecie um trabalho rico em textura e atmosfera como o de Bernard Herman, ou cheio de inspiração e sentimento como o de Victor Young, nunca música nenhuma ouvida na sala de projeção me comoveu tão fundamente quanto a que comenta as imagens de As Noites de Cabíria (de Fellini), a que faz andar o drama de Rocco e seus Irmãos (de Visconti) ou a que dá sentido à fábula de A Estrada da Vida (Fellini outra vez). Talvez isso se deva à proximidade que a música de Rota mantém da música popular. De fato, ele arrisca vincular o andamento das cenas a melodias, a motivos melódicos, em vez de concentrar-se em criar climas sonoros apoiados em harmonia e timbre. Ele não é o único a fazer isso. Os outros que o fazem, no entanto, freqüentemente recorrem aos efeitos sinfônicos nos momentos críticos dos filmes. Rota, evidentemente encorajado por Fellini (mas levando isso para outras filmografias), expõe a melodia nua nas cenas cruciais. Sente-se naturalmente a presença da ópera como forma, mas é o que há de mais próximo do canto popular nas árias que ele elege como referência.
Assim, pode ser que eu ame tanto Rota apenas porque sou popular e amo a música popular. Seria bastante. Mas tudo é mais complexo do que isso. O fato é que muitos músicos que trabalham convencionalmente para filmes de baixa qualidade são levados a apoiar-se na melodia. Acima, comparei Rota a alguns grandes compositores do cinema. Mas toda noite pode-se ver na televisão um filme ruim com um tema chato a repetir-se em som de flauta sobre piano. Nada mais longe de Nino Rota. Os motivos melódicos que este cria têm a misteriosa qualidade de parecerem lembranças. Na verdade, estão sempre sobre uma tênue linha que (não) separa o que é nostálgico do que é paródico: a gente nunca sabe se se trata de plágio ou de inspiração mística. E é com os elementos que resultam dessas sutis diferenças que ele compõe sua renda de fragmentos melódicos que ecoam, esvaem-se, reaparecem no tempo criado do filme.
O músico com quem, afinal, Rota mais se parece é alguém cujo temperamento supõe-se que seja muito diferente do seu: Kurt Weil. Tendo também trabalhado sobretudo para as artes cênicas, sempre perto da ópera e da canção popular, do cabaré, do circo, da retreta; e igualmente instigado por um autor e diretor de dramas e comédias a comentar em música a própria música que produzia, Weil achou um tom que fascina e alerta ao mesmo tempo, mantendo-se assim entre a paródia e o envolvimento. Nenhuma novidade aqui: já se relacionou Rota a Weil e, o que traz outras conseqüências, é notável e notório que o alemão influenciou e inspirou o italiano. Embora seja claro que este último tenha trabalhado para a criação de uma poética do sentimento (sentimental) enquanto o outro, cerebral, tenha trabalhado contra a sentimentalidade. Mas o que conta é que ambos construíram peças complexas usando material e técnica de aparência simples — e que ambos chegaram a zonas que se tocam ou se fundem.
Para minha formação, Rota foi um artista fundamental. Um dia, nos anos 1970, eu disse a um amigo compositor italiano: Fellini não seria metade do que é, não fosse por Nino Rota. Ele me respondeu: Nino Rota tampouco seria quem é, não fosse por Fellini. Não discordei. Não conheço a obra de Rota fora do que ele fez para o cinema. Aqui, o que ele fez me foi essencial.
Quando compus Giulietta Masina, procurei — com muito esforço — evitar qualquer parecença com a música de Rota. Fui para o Nordeste, citei minha própria Cajuína, porque eu queria dizer que eu, brasileiro, esta pessoa do interior da Bahia, este músico popular que fez músicas desse jeito que faço, eu é que queria falar de Giulietta. E dela. Não do cinema de Fellini ou da música que Rota fez para ele. Um crítico inglês da revista Wire (eu acho) falou muito mal do meu disco Omaggio a Federico e Giulietta, dizendo que este quase nada tinha a ver com os filmes de Fellini, que soava simplesmente como mais um disco de música brasileira. É isso aí. O imbecil queria algo que soasse como Nino Rota. Ignorante das coisas brasileiras (mas também do cinema italiano), portanto incapaz de entender onde Fellini/Rota/Masina entra na Ave Maria de Augusto Calheiros, no fado Coimbra e em Chega de Saudade, concluiu que o disco era uma “sopa de marshmallow” (a doçura e o sentimentalismo — neste caso, obrigatórios — tinham que levar essa porrada neo-punk). Mas Rota está em Luz do Sol. E sobretudo está dentro de mim. As músicas que não parecem com as dele estão cheias de sua presença.
Recentemente fiz uma canção a que dei o título de Michelangelo Antonioni. Não é uma canção ninorotiana. Está calcada na atmosfera dos filmes de Antonioni. As referências minimalistas do arranjo são homenagem ao minimalismo formal pioneiro desse cineasta. Mas é uma canção que ecoa a música italiana. Muitos esquecem de que Antonioni é italiano. E ele o é muito intensa e profundamente. A introdução dessa canção que fiz sobre/para ele, cantada em falsete, com uns cromatismos melódicos e harmônicos, levam a pensar em Nino Rota. É que aqui, diferentemente do caso de Giulietta Masina, eu não fiz nenhum esforço para afastar-me de Rota: com Antonioni eu já estava suficientemente longe. O compositor italiano Aldo Brizzi me disse que eu cheguei a Antonioni “via Marguta”, que é a rua onde Fellini morou. Essa é a Itália para mim.
Também para O Quatrilho compus um tema que ecoava o canto de Rocco no filme de Visconti. Rota fez a música desse filme. Mas a música do filme de Fábio Barreto não é ninorotiana. A introdução de Michelangelo Antonioni o é consideravelmente mais. Antonioni, que sabe tudo, aprovou.
O tema de Os Boas-Vidas, o de Noites de Cabíria, o de Rocco e Seus Irmãos, o de O Poderoso Chefão; a melodia do trompete de Na Estrada da Vida, a do acordeão de Amarcord — toda essa música é parte do que há de mais belo entre as coisas que se fizeram no século passado. (© Bravo Online)
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