1972
Revista Veja e leia
Nº
176 – 19 de janeiro de 1972
Editora
Abril
Págs.
62-67
Foto
da capa: CHICO NELSON
Caetano
no templo do caetanismo
Não foi exatamente o que se esperava. Mas, quem esperava o que de Caetano Veloso? Talvez tenha sido justamente o contrário: como se esperava tudo de Caetano Veloso, tudo o que aconteceu no teatro João Caetano, Rio, a partir de sexta-feira da semana passada, foi exatamente como se queria. Então...
Então, antes de mais nada, Caetano Veloso entrou no palco flutuando como
um mito, pronto para uma noite de glória. Na saída, nem ele nem a platéia
tinham o direito de estar decepcionados. Aplaudido, exaltado, idolatrado, o
Caetano Veloso de 1972 vestia uma modesta calça cor de areia, estilo
"tomara-que-caia", e um blusão Lee muito curto, desabotoado, com o
umbigo de fora. Uma roupa no mínimo "diferente", como a jardineira
que usava ao desembarcar no aeroporto do Galeão, terça-feira passada.
Então, Caetano Veloso ofereceu um demorado sorriso para a platéia,
sentou num banquinho, pegou o violão e iniciou um dos mais extraordinários
shows dos últimos tempos no Brasil.
DA BOSSA AO CARNAVAL - Durante
nove minutos e meio, cantou um clássico de João Gilberto, "É só Isso o Meu
Baião", multiplicando o "blim, blim, blom" da antiga bossa-nova
até chegar fervendo ao final. Cantou depois um samba de Paulinho da Viola,
"Tudo Mudou". Alterou o ritmo da música, de repente, para encaixar
uma frase de John Lennon, "the dream is over" (O sonho acabou).
Entoou em seguida uma singela modinha no estilo nordestino, que num certo
trecho repete longamente "preta, pretinha, preta, pretinha". Em outro
momento, dançou imitando Carmen Miranda. No fim, sambou junto com a platéia.
Sempre sem dizer palavra alguma, seguindo ao pé da letra seu plano de só cantar
o que lhe desse vontade. E como sua vontade é imensa e ecumênica, durante mais
de duas horas o público que lotou o João Caetano pôde escutar uma pequena
síntese da música popular brasileira, segundo a interpretação e versão de
Caetano Veloso, que colocou novas e quase sempre brilhantes roupagens em
músicas conhecidas do público e apresentou também algumas de suas últimas
novidades.
Sozinho ao violão ou acompanhado dos quatro músicos de seu conjunto,
Caetano não fez distinção de ritmos ou de origens. Cantou músicas em inglês,
uma de Chico Buarque de Hollanda ("Cotidiano"), outra de Zé do Norte
("E os óio da cobra verde / Hoje foi que arreparei"), lembrou o
célebre bolero "Tu, Solo Tu", dirigiu a todo o novo brasileiro uma
mensagem eloqüente ("Eu agradeço / Ao povo brasileiro / Norte, centro,
sul, Inteiro / Onde reinou o baião"). E foi, certamente, o primeiro
compositor a falar de si mesmo numa letra de música, de uma forma menos pedante
que engraçada: "Caetano Veloso / Que menino mais manhoso / Que menino mais
teimoso". Na mesma letra, que parece permitir uma infinidade de variações,
citou também seu companheiro da Bahia, do tropicalismo e de Londres:
"Ninguém viu / Que o cara mais genial do Brasil / Se chama Gilberto
Gil". O "cara mais genial do Brasil", no final do espetáculo,
subiu ao palco, deu uma flor ao "menino mais manhoso", sorriu também
para a platéia e os dois, juntos como sempre, cantaram músicas de Caetano
Veloso para este carnaval.
DEUS E ARTISTA - Então, era
isso? Uma colagem? Um bazar? Um espetáculo sem nenhum brilho formal, até
"quadrado", seu palco iluminado por umas poucas luzes azuis e
vermelhas? Para a platéia, acotovelada pelos corredores do teatro, talvez tenha
sido uma surpresa. O show, tão variado, dava a impressão de querer sensibilizar
a todos, desde os senhores e senhoras sentados nos melhores lugares até os
meninos que se espalharam pelo chão ou que não conseguiram entrar mas, mesmo
assim, ouviram e viram Caetano cantar, quando ele foi ao seu camarim - da
janela atendeu aos pedidos dos que estavam na rua. (Havia cerca de seiscentas
pessoas, além dos 1.200 lugares do João Caetano, na primeira noite. Calcula-se
uma renda total de 100.000 cruzeiros, somando-se o espetáculo de sexta com o de
sábado e os dois de domingo. Pelo menos metade vai para Caetano.)
A força, a sinceridade, a riqueza do espetáculo podem ter atingido o
objetivo de agradar indistintamente, mas antes de tudo ele representa
finalmente a conjugação do compositor, do poeta, do cantor - do artista ansioso
em se comunicar com o suu público. Aplaudido na entrada como um deus, Caetano
Veloso saiu sob os aplausos que não se dedicam às divindades, mas aos artistas;
e, acima de tudo, às pessoas de quem se gosta. No entanto, o espetáculo
desmentiu e esfriou uma outra expectativa - e, nesse sentido, ele é duplamente
extraordinário. Os que esperavam uma palavra de Caetano ouviram apenas a sua
voz. Vão ter que encontrar o sentido de uma eventual mensagem estritamente na
música que ele apresentou.
É onde se volta ao ponto de partida: uma parte da platéia, a ala mais
fervorosa e ruidosa do deus de todos os tropicalismos, certamente esperava
outra coisa. A história dessa expectativa, que enriquece ainda mais o mito
Caetano Veloso, na verdade estava sendo escrita desde que ele deixou o Brasil,
quase três anos atrás. E ganhou um capítulo novo no dia em que ele voltou, com
o espetáculo já programado. É uma pequena e reveladora história de sonhos,
esperanças, ansiedades e desejos de líderança de uma juventude dourada pelo sol
e pelo otimismo, em confronto com as lembranças de outra juventude banhada e
angustiada pelo pessimismo. Esta história pode começar, por exemplo, numa
praia, neste verão.
A CHEGADA DO HOMEM - Na
luminosa terça-feira da semana passada, ardente nos seus 35 graus e semelhante
a muitas outras deste verão carioca, um movimento mais ou menos incomum passou
a ser notado, primeiro nas praias, depois nas calçadas, mais tarde nos bares e
apartamentos. "O homem chegou", anunciou um rapaz ao grupo
aquartelado numa montanha de areia da praia de Ipanema. Erguido pelas máquinas
que trabalham na construção de uma obra de esgotos na praia, esse morro -
conhecido como "Monte da Gal", "Dunas do Barato" ou
"Hippielândia" - abriga todos os dias uma pequena multidão idêntica
em gostos, costumes e programação social, e muito unida pela ociosidade das
férias escolares (muitos, na verdade, nem estudam). O anúncio da chegada do
homem foi recebido com grande alegria entre seus discípulos. Mas trouxe também
alguma preocupação. De tarde e de noite, os telefonemas e encontros se
multiplicaram porque, se o homem chegara, era preciso, ao mesmo tempo,
descobrir como ir até ele sem pagar os 30, 20 ou 15 cruzeiros que o domínio
capitalista estipulou como preços dos ingressos a serem pagos pelos adoradores.
Procurava-se "quem conhece quem, onde está aquele amigo que tem um conhecido
que tem grande intimidade com o baiano que tem acesso ao homem".
Essas mesquinhas preocupações materiais, no entanto, não conseguiram
perturbar o clima de fervor e expectativa que durante os dias seguintes
movimentou boa parte da juventude carioca. Em cada dez conversas de praia ou de
bar, durante toda a semana, pelo menos nove continham a palavra
"loucura", para profetizar a reação que inevitavelmente explodiria no
templo escolhido para o homem falar ao seu rebanho. Na quinta-feira, véspera do
primeiro dos quatro espetáculos, quase todas as entradas já haviam sido
vendidas ou reservadas. Muitos foram para o templo sabendo que teriam de lutar
corpo a corpo pelo direito de entrar e que talvez acabassem ficando na rua. Mas
ninguém precisa reclamar pelo sacrifício. O homem realmente estava lá. E nunca
esteve tão bem, tão caloroso, tão comunicativo, tão em paz consigo mesmo e com
seu público. Caetano Veloso, 29 anos, magro como nunca, 48 quilos, 1,69 m, estava no templo
para ocupar o seu lugar, o mesmo que abandonara em 1969, quando viajou
revoltado e humilhado para a Inglaterra, e do qual ninguém, durante todo esse
tempo, conseguiu se apoderar.
TUDO LEGAL - Esse magnetismo
e essa liderança, exercidos a distância, permanecem um dos capítulos
misteriosos dentro do "show business" brasileiro. Em vez de ser
esquecido, Caetano Veloso passou a ser cada vez mais lembrado e, depois,
exigido. Muitos dos que foram ouvi-lo no João Caetano jamais o haviam visto
pessoalmente. Uma garota de dezesseis anos dizia: "Ele é exatamente como
eu pensava". E qual é a imagem que ela tinha de Caetano Veloso?
"Assim mesmo, legal."
"Legal", sem dúvida. A moça, como muitos outros moços e moças,
via no palco exatamente aquilo que gostaria de ver. "Legal", para os
um pouco mais velhos, era também rever a imagem de um artista que venceu, que
chegou assim como quem não queria nada, cantou em programas de auditório,
passou fome, brilhou em festivais, disputou (e ganhou) testes de memória
musical na televisão, para depois ser aplaudido ou contestado com violência.
Nesse tempo, quase quatro anos atrás, já era "legal" Caetano Veloso
de roupas de plástico colorido, cantando, dançando e gritando ao som de
guitarras elétricas. "Legal", mais tarde, é o sujeito que escreveu
"Irene" na prisão, lembrando a irmã mais nova e dizendo "eu
quero ir, minha gente, eu não sou daqui". É também o artista de sucesso
que deixa o país de cabelos raspados, vai para uma terra estranha, aprende a
compor em inglês e, como diz a contracapa de seu LP britânico, "não perdeu
a alma ao trocar de língua".
Ao descer no Brasil, terça-feira passada, Caetano Veloso declarou:
"Eu estou legal". Mas nem tudo parece muito legal em volta dele. Em
primeiro lugar, o compositor Caetano Veloso, célebre pela quantidade de músicas
que escuta e memoriza desde pequeno, não encontra agora muita coisa que o
emocione, dentro ou fora do país. Acha alguns compositores
"engraçados" (uma de suas palavras-chave atualmente, como
"gênio" e "maravilhoso") e permanece esperando algo tão
importante como o primeiro disco de John Lennon sem os outros Beatles,
"Plastic Ono Band" (proibido no Brasil). Em segundo lugar, não existe
apenas Caetano Veloso. Existe, queira ele ou não, o caetanismo, ou o culto a um
ídolo de quem o fiel sempre espera atitudes extraordinárias. Ele não está
disposto a fazer coisas extraordinárias. Seu show, como ele mesmo diz, não
pretende mais que ser o veículo para que cante as músicas de que gosta. Só
isso. Deveria bastar. Mas, como além de Caetano existe o caetanismo, não basta.
E é onde os aplausos gerais ao artista começam a desafinar.
O 'ESTADO DE ESPÍRITO' - Quatro
anos atrás, quando o tropicalismo começava a ser reconhecido como o primeiro
sinal de vida da música brasileira desde, pelo menos, a bossa-nova (no começo
dos anos 60), o movimento trouxe não apenas novos conceitos musicais. Impôs
também novos padrões de comportamento. O impacto da música de Caetano Veloso e
Gilberto Gil sobre o público jovem tinha forte molho de contestação. Quando os
dois começaram a usar roupas coloridas, deixaram crescer os cabelos e faziam no
palco movimentos acrobáticos então considerados "muito loucos", essa
série de atitudes gerou um fenômeno de repetição em massa. E não somente os
compositores que se orientavam musicalmente pelo tropicalismo, mas também a
platéia, passaram todos a ser uma coisa só, um fictício "estado de
espírito". Era uma platéia rabugenta, quase tão desprezível, em termos de
originalidade e sinceridade, quanto a outra que se opunha ao movimento.
Escreveu na época um cronista de música: "Não adianta um débil mental
pegar uma caixa de fósforo e batucar samba. Ele estará sendo apenas chato. Da
mesma maneira, não adianta um débil mental pegar uma guitarra e deixar crescer
os cabelos. Ele estará sendo ridículo".
Embora as coisas não sejam, como de hábito, assim tão simples, alguns
críticos vêem no tropicalismo um movimento que fez mais mal do que bem à música
brasileira. Certamente, fez bem a Caetano e Gil. Provavelmente, deixou muito
órfãos, em plena primeira infância quando os pais resolveram sair do país. O
conjunto Os Mutantes é apontado como exemplo clássico. Visto a princípio como
"um conjunto fantástico que o Caetano descobriu", depois de 1969 Os
Mutantes passaram a ser apenas um conjunto que Caetano Veloso um dia descobriu,
embora não precisasse.
O público, ao mesmo tempo, também ajuda a formar um ídolo, e a exigir
dele que aja à sua imagem e semelhança. Os tropicalistas de 1968 exigiam
contestação. Os caetanistas de 1972 querem contemplação. Os tropicalistas de
1968 faziam longos discursos e defendiam-se com teorias nem sempre
exemplarmente claras. Os caetanistas de 1972 não têm teorias e expressam-se num
vocabulário de meia dúzia de palavras: curtição, barato, incrível, descolar,
bicho e, referindo-se ao estado de felicidade interna que querem atingir,
desbundar.
TODOS PARA A BAHIA? - A agitação
pela chegada de Caetano Veloso, nos primeiros dias, parecia orientar-se
justamente para esse estado. Mas que pistas teriam esses novos fãs para
acreditar que Caetano Veloso seria o seu guru?
A intelectualidade ligeira da praia de Ipanema não fala mais de Godard,
nem de psicanálise, nem do Cinema Novo, nem dos caminhos do marxismo ou dos
rumos da literatura. "Na Montenegro ainda se fala dessas coisas", diz
um dos habitantes das "Dunas do Barato", "mas aqui nós estamos
noutra, muito melhor." A "outra", segundo esse habitante e a
maioria dos que o acompanham na escalada diária das dunas: a música como
sonoridade, a disponibilidade em relação à vida, as experiências pessoais, o
aprendizado do corpo, a macrobiótica. E, acima de tudo, a vontade de não
intelectualizar, e sim de fazer. São adolescentes, universitários, hippies,
jornalistas com emprego fixo ou não, músicos. Em comum, entre eles, só parece
existir um ponto: a compreensão da sua própria individualidade. Na terça-feira,
nesta amostra em miniatura do que deve ser hoje o rebanho de Caetano Veloso, a
notícia de sua vinda chegou a sufocar a conversa mais constante entre eles:
seus planos de irem todos para a Bahia.
A notícia chegou a se insinuar como uma esperança. Seria o líder
voltando para reunir seu povo e contar histórias, oferecer soluções definitivas
para todos os problemas, iluminar as cabeças? As suas apresentações no Brasil
servirão para reunir, pela primeira vez em um só local, todas as pessoas que
optaram por um determinado jeito de viver? Ele dará o sinal de que chegou a
hora de organizar um novo tipo de movimento político-social, mais calcado no
comportamento que nas teorizações?
AINDA O 'ESTADO DE ESPÍRITO' - Debaixo do sol, essas perguntas foram surgindo sem atingir resposta
alguma. Nenhuma delas passou pela cabeça de Luís Carlos Maciel, o colunista do
"Pasquim" e diretor da nova revista de música "Rolling
Stone" (que vai para as bancas esta semana), antigo admirador de Caetano,
de Gil e do tropicalismo. Diz ele: "Caetano chega para mostrar que não tem
nada a dizer, nenhum caminho a indicar, nenhuma solução a mostrar. As suas
opiniões estão nas suas músicas. Passamos a vida toda teorizando em torno da
música de carnaval, sua importância para a preservação da música brasileira em
geral, papos desse tipo. Caetano não teoriza, ele faz. Um exemplo disso é esse
disco de carnaval, gravado am Londres ('O Carnaval de Caetano', compacto
duplo). O seu próprio comportamento deixa bem claras as suas intenções. Ou
não-intenções".
O jornalista Torquato Neto, que fez as letras das músicas de Caetano
"Soy Loco por ti, América" e "Mamãe Coragem", entre outras,
declara: "Vivemos três anos de estagnação. Não surgiu nada em lugar
nenhum. Estava tudo parado. Não se criava nada. 1969 foi o ano de 'Luciana'. Em
1970 tivemos uma 'BR-3'. No final do ano passado, as coisas começaram a
melhorar. Agora é a hora de dizer novamente chega. Uma nova linguagem está
sendo descoberta. Um novo público está surgindo. Está todo mundo se organizando
em torno da idéia geral da liberdade, em todos os níveis. É hora de voltar ao
trabalho de criação". E, dirigindo-se a um certo tipo de caetanismo de
hoje, Torquato Neto adverte: "Quem quiser ficar curtindo, que curta. Mas a
hora é de ficar ligado nas coisas, dar o recado, a sugestão, o toque. Caetano
surge mais como uma afirmação desse estado de espírito, dessa alegria, dessa
disposição para a vida".
Existe de novo, portanto, o célebre "estado de espírito".
A LIDERANÇA E A DIVISÃO - Caetano
Veloso encarnará realmente essa nova era? Ele próprio acha que não: "Eu
não quero assumir nenhum tipo de liderança. Quero só cantar as minhas músicas,
para as pessoas verem que continuamos cantando e trabalhando. Não existe mais
nenhuma esperança de organizar as pessoas em torno de um ideal comum".
No entanto, ele já falou como uma espécie de pastor. Em 1968, no auge da
explosão do tropicalismo, dizia Caetano Veloso aos seus discípulos: "É
preciso entrar em todas as estruturas. E sair de todas". No mesmo ano,
qual um Moisés enfurecido, ele bramia insultos contra a platéia que o vaiava na
apresentação de "É Proibido Proibir". E perguntava, num desafio:
"Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder no Brasil? Vocês
estão por fora! Se vocês forem em política o que são em estética, pobres de
nós!" A prisão de Caetano Veloso, meses depois, passou a ser um fato
político com ressonâncias estéticas. Teve uma repercussão ainda mais profunda
junto ao público, inevitavelmente dividido entre caetanistas e anticaetanistas
(a bandeira desses últimos, também chamados puros, na época, era Chico Buarque
de Hollanda). A divisão terminou quando Caetano Veloso foi solto e partiu para
a Inglaterra. De longe, ele passou a sentir saudades do Brasil. E o Brasil
sentia saudades dele. Foi perdoado pelos antigos adversários.
UMA PAUTA INVISÍVEL - E era
natural. Quando viajou, em junho de 1969, Caetano Veloso já era o mais fértil,
inventivo e surpreendente letrista brasileiro. Já era também, e de maneira cada
vez mais acentuada, um audacioso compositor de música, capaz de experimentar
desde um simples acompanhamento de violão até a mais complexa rede de fios
elétricos das guitarras de seus músicos. Era um fino poeta da banalidade:
"Você / Precisa saber da piscina / Da margarina / Da Carolina / Da
gasolina" ("Baby"). Era um crítico feroz, irônico: "Eles
aconselham / O dia de amanhã / Eles desde já / Querem ter guardado / Todo o seu
passado/ No dia de amanhã ("Eles"). E um lírico, de uma força e contenção
de fazer pensar em Carlos Drummond de Andrade: "No dia em que eu vim-me
embora / Minha mãe chorava em ai / Minha irmã chorava em ui / E eu nem olhava
pra trás! No dia em que eu vim-me embora / Não teve nada demais" ("No
Dia que Eu Vim Embora").
Sua capacidade como músico não parece menor, nem facilmente esgotável.
Compondo em praticamente todos os ritmos e mudando freqÜentemente sua própria
música entre uma apresentação e outra, ele não precisa mais que um violão e a
própria voz para tecer variações melódicas. A "vestimenta" que o maestro
Rogério Duprat adicionou a muitas de suas músicas, durante o período
tropicalista, jamais escondeu o corpo saudável que existia por detrás delas.
Um músico que assistia ao ensaio de Caetano e seu conjunto, na
quarta-feira, comentava: "É esquisito. Ele fica olhando para não se sabe
onde e de repente sai com o tom certo. Parece que tem uma pauta invisível no
lugar onde ele está olhando, e que só ele vê". Reconhecido como poeta e
como músico, Caetano Veloso mostra agora, no novo show, que é também um cantor
poderoso e versátil, capaz de sussurrar uma canção sem torná-la sonolenta ou de
gritar um ritmo sem se tornar estridente. "É o que eu mais gosto de
fazer", diz ele, "mas jamais consegui cantar direito em shows e em
discos. Ficava muito nervoso, muito tenso, e as coisas tinham que ser feitas
depressa. Em casa sempre cantei maravilhosamente. Então, em Londres, onde
ninguém me conhecia e eu não conhecia ninguém, perdi o nervosismo."
TODOS PARA A BAHIA - Depois dos
três dias de espetáculo, encerrando uma semana particularmente feliz dessa
juventude disponível e disposta a lutar pela sua permanência no paraíso da
eterna infância, Caetano Veloso, a superestrela, vai cantar em São Paulo,
Recife e Salvador. Na Bahia, desta vez, ele planeja também tomar a primeira
providência prática para que seu ponto de partida venha um dia a ser,
realmente, o seu ponto de chegada.
Além de comprar um terreno para construir a casa onde vai morar (não
sabe quando; viaja para Nova York em março, sem data para voltar), ele pretende
colocar no lugar certo as pessoas certas. Isto é, em Salvador devem ficar todos
os músicos do "grupo baiano": Gil, Gal Costa, o conjunto Os Novos
Bahianos, os guitarristas Macalé e Lanny, João Gilberto. E talvez realize seu
desejo de ser pai. Casado há quatro anos, carinhoso com a mulher, Dedé, e com
todas as crianças que estejam por perto, já podia ter filhos. "Mas a Dedé
me pediu um tempo", diz Caetano com ar pensativo.
Na praia, terminado o espetáculo, o comentário voltou de novo a ser um
só. Caetano, o anjo invisível durante dois anos, estava longe de novo, a
caminho da Bahia. Mas, desta vez, o mal não era irreparável. O plano de todos é
ir também para a Bahia e continuar lá a festa. O colunista Luís Carlos Maciel,
a esse respeito, fala o que qualquer um dos que esperavam a chegada do novo
Messias diria: "Não há mesmo nada a dizer. O verão está maravilhoso, o
carnaval baiano vai ser fantástico, com todas as pessoas em Salvador. E a vida
continua".
1972
Revista Amiga
25 de abril de 1972 - n° 101
Foto: Frederico Mendes |
2000
Revista VEJA
Edição
2000 - 21 de março de 2007
O Sol nas bancas de revista
Foto: Cristiano Mascaro |
A força do lirismo de Caetano Veloso hipnotizava os brasileiros, e ele chegou à capa de VEJA.
O tropicalismo de Caetano combinava perfeitamente
com a televisão em cores que acabava de chegar ao Brasil.
Acreditava-se então de novo, depois da Semana de
Arte Moderna e da bossa nova, em uma revolução cultural genuinamente
brasileira. Se viesse mesmo a se firmar, esse movimento seria liderado por
Caetano Veloso e pelos coloridos e alegres baianos de sua turma.
O rock vigoroso dos anos 70 não deixou espaço nas
paradas das grandes capitais do mundo para qualquer outro ritmo. Caetano, no
entanto, continuou evoluindo.
Tornou-se um mágico do idioma e, se não conquistou
o mundo como o maestro Tom Jobim, fez da língua sua pátria.
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