Revista TPM # 87
Maio
12/5/2009
Caetano Veloso
Texto:
Fotos:
À vontade aos 66 anos, ele fala de drogas e
velhice: “Mulher é adulto, homem é criança”
Caetano fala de sexo, drogas,
Brasil, feminismo, casamento, separação, velhice, pai, filhos, loucura,
baladas, morte e do craque de futebol que o país perdeu para a música
Caetano
Veloso fala. Quando era adolescente, chegava a passar 40 horas seguidas
tagarelando. Ele ri da própria verborragia. Aos 66 anos, ainda tem o que dizer.
E continua gostando de uma conversa.
Não é
diferente quando recebe a reportagem da Tpm, em um hotel no Rio
de Janeiro. Mas, depois de uma hora de entrevista (a quinta do dia, e a esta
altura o dia já virou noite), começa a se mexer. “Estou preocupado com o Zeca,
ele não está se sentindo bem”, explica.
Antes
mesmo de a conversa ter começado, em plena troca de turno de jornalistas e
fotógrafos, um assistente soprara para Caetano: “Zeca ligou perguntando se
tinha um substituto para água de coco, e eu disse que não”. Tsc, tsc, tsc. “Mas
claro que existe, fala pra ele tomar Pedialyte”, receita o baiano, evocando o
santo remédio protetor das crianças desidratadas.
É,
ninguém é pai de três filhos à toa. Além de Zeca, 17 anos, e Tom, 12, do
casamento com Paula Lavigne (de quem está separado desde 2004), Caetano tem
ainda Moreno, 36, de sua união com Dedé Gadelha. Moreno, aliás, funciona como
uma espécie de água de coco para o pai, um tipo de, vá lá, Pedialyte artística,
capaz de reidratar a música de Caetano.
Para
começar, foram seus amigos Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes que,
desde o disco Cê, em 2006, deram street cred às ambições mais roqueiras de
Caetano. Depois, o próprio Moreno faz a direção de produção deste Zii e Zie
– sim, como você leu em todos os jornais, o título quer dizer “tios e tias” em
italiano.
Mas
Caetano não paga de tiozinho, não. Nem junto à turma do filho, agora Banda Cê,
todos ali nos 30. “Quem foi jovem nos anos 60 e continua produtivo em geral tem
algo como eu tenho”, arrisca. Esse algo pode ser definido como inquietação.
Revolução permanente
Pensando bem, isso não é tão comum assim. Mas, como define o amigo e parceiro Jorge Mautner no documentário Palavra (En)cantada: “Tropicalismo é a revolução permanente”. Pois Caetano é o tropicalista. E desde que cantou “Alegria, Alegria”, no III Festival da MPB, em 1967, tenta-se explicar o que, afinal, isso significa.
Revolução permanente
Pensando bem, isso não é tão comum assim. Mas, como define o amigo e parceiro Jorge Mautner no documentário Palavra (En)cantada: “Tropicalismo é a revolução permanente”. Pois Caetano é o tropicalista. E desde que cantou “Alegria, Alegria”, no III Festival da MPB, em 1967, tenta-se explicar o que, afinal, isso significa.
De volta ao Brasil,
em 1972, desembarcando no aeroporto do Galeão, no Rio, depois de três anos de
exílio em Londres |
Talvez a
melhor resposta tenha sido formulada por ele mesmo, ao reagir às vaias, no ano
seguinte, quando cantou “É Proibido Proibir”. “Nós tivemos coragem de entrar em
todas as estruturas e sair de todas”, vociferou Caetano, dividindo méritos com
Gil.
Entrar e
sair de todas as estruturas resume a trajetória de Caetano. Quando acreditaram
que ele só queria saber de banquinho e violão, sacou as guitarras. Quando
imaginaram que música de protesto era a única saída num país sob ditadura,
ficou “Odara”. Quando reconheceram que era chique, mandou “Um Tapinha Não Dói”.
Quando queriam confinar o cantor à música, opinou sobre o Brasil. Quando todo
mundo entendeu que ele era neguinha, engrossou a voz para dizer: “Eu sou homem/
pelo grosso no nariz”. Quando emendou discos elegantes com standards em
espanhol e em inglês, logo quebrou tudo com uma banda de garotos. Quando
Radiohead parecia moderno ao permitir que internautas decidissem o preço de In
Rainbows, inventou o blog Obra em Progresso, em que os internautas acompanhavam
e opinavam no disco Zii e Zie propriamente dito.
E, quando
parecia que a entrevista havia acabado antes de terminar (a doença do Zeca,
lembra?), Caetano sugere continuar o papo no dia seguinte. Ainda faltava falar
de muita coisa. Caetano Veloso fala.
Tpm. Por que gravar agora “Lobão Tem Razão”, oito anos depois de ele dizer para você “chega de verdade”, na música “Mano Caetano”?
Caetano. A música do Lobão me toca como um todo. Mas esse “chega de verdade” é forte demais para mim. Fiquei admoestado, senti que alguma coisa teria que mudar em mim. É uma mania de verdade. A questão não é de ser verdade, é de precisar tanto dizer. A frase ainda tem a mesma repercussão na minha cabeça. Ele tem razão porque não consegui melhorar em nada quanto a isso.
Tpm. Por que gravar agora “Lobão Tem Razão”, oito anos depois de ele dizer para você “chega de verdade”, na música “Mano Caetano”?
Caetano. A música do Lobão me toca como um todo. Mas esse “chega de verdade” é forte demais para mim. Fiquei admoestado, senti que alguma coisa teria que mudar em mim. É uma mania de verdade. A questão não é de ser verdade, é de precisar tanto dizer. A frase ainda tem a mesma repercussão na minha cabeça. Ele tem razão porque não consegui melhorar em nada quanto a isso.
A velhice deixa você mais inflexível?
A velhice traz uma espécie de
teimosia. Mas em mim percebo mais um descompromisso. Quando se é mais jovem, se
toma cuidado para não ser desaprovado. Está se colocando na vida, no mundo. Tem
um esforço instintivo para não estragar essa inserção.
O quanto era importante para você a aprovação dos outros?
O quanto era importante para você a aprovação dos outros?
Era
importante, ainda é. Porém, na velhice, é aquele paradigma de A Velha Dama
Indigna, do [Bertolt] Brecht: uma senhora direita, com filhos e
netos, que resolve não ter limitação e começa a fazer o que quer. Já vivi tudo,
não devo mais nada a ninguém, o que vou esconder agora? Nada.
Como está
sendo a entrada na velhice?
Há muitas coisas objetivas. Não usava óculos e agora ando de óculos,
senão fica tudo fora de foco. Se tomar um talho, na minha idade demora a
cicatrizar. Meus cabelos, que eram cacheados e pretos, não têm mais o cachinho
e ficaram brancos.
Com Paula Lavigne e
o filho Zeca, em Salvador, 1993 |
Se a
mulher deixa o cabelo branco, todo mundo acha horrível. É verdade.
Pessoalmente, gosto
de mulheres com cabelo grisalho, acho bonito. Mas uma vantagem da mulher é que
ela pode pintar o cabelo. Homem de cabelo pintado fica com cara de político
babaca... Tem várias vantagens e desvantagens em ser homem e ser mulher, mas
prefiro ter nascido homem.
Por quê?
Por quê?
Não sei... Cresci no fim dos anos 40, anos 50, quando as
mulheres não tinham mobilidade social nenhuma. Não
podiam ir ao bar, sair sozinhas, sair à noite. Era chato para mulher. Eu tinha um pouco de pena das
mulheres, era feminista quando criança. Mais do que sou hoje.
Por que ficou menos feminista?
Por que ficou menos feminista?
Porque também cresci, amadureci, aprendi
as coisas da vida [risos].
E as mulheres continuam sem poder envelhecer. Ainda é comum se achar que a mulher deve ser objeto de apreciação, que não pode ter rugas e precisa ser jovem. Isso também está atrelado à biologia, porque os sinais para reprodução são os da mulher jovem. A mulher, depois de uma certa idade, não se reproduz mais. Então, do ponto de vista animal, não precisaria mais produzir excitação sexual. Já o homem não. O homem vai até o fim. Não é mera tolice homens procurarem moças jovens, é uma coisa um pouco hormonal. Não gosto de ser preso a biologia, mas é assim. Gosto muito de mulheres jovens, mas também de mulheres velhas e mulheres de meia-idade.
Você escreveu uma música sobre velhice logo depois que seu pai morreu, “O Homem Velho”, em que definia: “O homem velho é o rei dos animais”.
E as mulheres continuam sem poder envelhecer. Ainda é comum se achar que a mulher deve ser objeto de apreciação, que não pode ter rugas e precisa ser jovem. Isso também está atrelado à biologia, porque os sinais para reprodução são os da mulher jovem. A mulher, depois de uma certa idade, não se reproduz mais. Então, do ponto de vista animal, não precisaria mais produzir excitação sexual. Já o homem não. O homem vai até o fim. Não é mera tolice homens procurarem moças jovens, é uma coisa um pouco hormonal. Não gosto de ser preso a biologia, mas é assim. Gosto muito de mulheres jovens, mas também de mulheres velhas e mulheres de meia-idade.
Você escreveu uma música sobre velhice logo depois que seu pai morreu, “O Homem Velho”, em que definia: “O homem velho é o rei dos animais”.
Eu
estava ficando maduro, ficando velho. Mas muito menos do que hoje [risos].
Achei bonito dizer aquilo como uma lembrança de meu pai. Ele era um homem muito
altivo, mas suave e elegante. Muito bom, muito equilibrado, muito respeitado na
cidade inteira. Então, era um entusiasmo afirmativo diante dessa figura
patriarcal benigna.
Existe
alguma cena que resuma a relação de vocês?
Tem uma muito forte que sintetiza tudo. No dia em
que saí da prisão [em 1969], a soltura não foi bem uma soltura. Quando
Gil e eu chegamos a Salvador no avião da FAB, acompanhados do chefe da polícia federal
do Rio de Janeiro, tinha uma ordem de prisão antiga. Aí fomos jogados numa cela
de novo. Só soltaram a gente à noite. Saímos sem dinheiro, meio apavorados.
Quando chegamos à minha casa, só tinha Nicinha, minha irmã de criação mais
velha. Meus pais e meus irmãos tinham ido para o aeroporto e não sabiam que a
gente tinha sido detido de novo [por mais algumas horas]. Quando vi a casa toda
vazia, fiquei louco. Louco, louco, uma coisa terrível. O mesmo negócio que
senti quando tomei ayahuasca, uma coisa que não dava na cabeça. Corria de um
cômodo para o outro, gritava, chorava. Pensei: “Pronto, não existo mais”. Aí
chegaram as pessoas, meu pai na frente. Quando ele me viu, falou assim: “O que
é isso? Não me diga que você deixou esses filhos da puta te botarem nervoso?”.
Fiquei bom. Na hora! Abracei ele e comecei a chorar. Foi uma ordem. Se meu pai
não tivesse chegado, estava louco até hoje.
Seu pai
sempre passou essa segurança?
É. Ele falou “filhos da puta”, e não era de
xingar, nada, nunca. Mas naquela hora ele falou mesmo. Aquilo foi tão forte.
Como ele tinha desprezo pela ditadura militar, sentia orgulho por eu ser
definido como inimigo.
E você, é muito diferente ser pai aos 30 e aos 55 anos?
E você, é muito diferente ser pai aos 30 e aos 55 anos?
Basicamente,
não. Filho é a coisa mais intensa que há. Eu não queria ter filho. Dedé [Gadelha,
primeira mulher de Caetano, mãe de Moreno] e eu tínhamos decidido não ter
filhos. De repente me veio uma vontade, justamente no fim do exílio, pensando
que voltaria ao Brasil. Dedé ficou alegre depois que chegamos e topou. Moreno
nasceu, e aí mudou tudo.
Moreno é filho da geração hippie, filho de hippies. Ele podia tudo?
Moreno é filho da geração hippie, filho de hippies. Ele podia tudo?
Não.
Vi muita gente confusa, permissiva, em relação a isso. Não foi meu caso.
É aquela história de saber o que dizer e o que não dizer na frente das crianças. Justamente. Lembro que Moreno entrou numa escola que era muito aberta. Na primeira reunião de pais e mestres, o diretor e os professores falavam como a escola tinha que ser atraente, agradável e interessante. Pedi a palavra: “Olha, acho que a escola deve ser chata. Tem um aspecto que a escola deve admitir de ser uma instância chata na vida da gente, e que isso é fundamental para as crianças”. Moreno depois veio me dizer: “Pai, tá todo mundo falando que você é o maior careta” [risos].
Sua escola era chata?
Escola é chato. Mas gostava também, porque a gente
encontra outras pessoas. E você tem umas tarefas a cumprir, tem que mostrar que
aprendeu.
Ainda com
cachinhos, em 1967, interpretando “Alegria, Alegria”, canção classificada em
quarto lugar no Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record |
E você
não gostava de futebol, o que deixa a escola mais difícil para os meninos.
Hoje é um paraíso, comparado com
o que era nos anos 50, 40. Moreno e Zeca nunca jogaram futebol, e nunca ninguém
achou que eles eram veados por causa disso. Tom joga lá no Zico [CFZ, Centro de
Futebol Zico]. No meu tempo, não existia você não jogar futebol. Era a mesma
coisa que chegar de vestido franzido cor-de-rosa.
Você tentava jogar?
Você tentava jogar?
Tentei. Peguei uma bola e fiquei treinando, assim,
na parede. Tentei fazer um pouco de embaixadinha, levantar a bola e bater sem
ser bicudo. Ficava jogando na rua, em Santo Amaro, e também no quintal enorme
da casa. E pensei, sozinho comigo mesmo, que se quisesse jogar futebol seria um
dos melhores jogadores que há. Mas não tinha a menor vontade.
Numa entrevista à Trip, você disse que poderia ser um gênio se tivesse se dedicado a isso. É a mesma coisa, né?
Numa entrevista à Trip, você disse que poderia ser um gênio se tivesse se dedicado a isso. É a mesma coisa, né?
Sabe que penso assim? É um
absurdo isso [risos].
O mundo perdeu um Pelé e ganhou um Caetano.
O mundo perdeu um Pelé e ganhou um Caetano.
Aí vocês vão dizer que sou
modesto, mas não tem comparação. Pelé é muito maior. Ele fez o negócio que
tinha que fazer. Eu não.
Você não fez o que deveria fazer? Todo mundo tem um pouco essa sensação, eu tenho bastante.
E o que deveria ter feito?
Você não fez o que deveria fazer? Todo mundo tem um pouco essa sensação, eu tenho bastante.
E o que deveria ter feito?
Alguma coisa para a qual tivesse uma
vocação... Até tenho vocação para o que faço, mas ter o talento definido. Tenho
talento definido para outras coisas que não fiz. Eu seria melhor para desenhar
ou pintar, para fazer cinema ou para escrever.
Além do futebol... P
Além do futebol... P
Para futebol não tenho talento. Deixei falar de Pelé,
mas pensei assim: “Poderia jogar muito bem”. Vi que podia, mas não tinha
interesse. Achava chato ficar trombando nos outros meninos. Eu era muito
feminino. Subia no araçá [goiabeira] e ficava cantando a tarde inteira.
Os outros meninos achavam você muito esquisito?
Os outros meninos achavam você muito esquisito?
Me achavam meio assim,
pouco masculino. Demonstravam às vezes, mas eu era muito amigo, muito
inteligente para conversar, tinha muitos amigos na escola. Só uns meninos mais
grosseiros que às vezes comentavam alguma coisa como “não é homem, não? Não
joga futebol?”.
Em seu livro Verdade Tropical, você fala de hétero, homo e bissexualidade. Hoje essas definições são menos importantes?
Em seu livro Verdade Tropical, você fala de hétero, homo e bissexualidade. Hoje essas definições são menos importantes?
Pode ser sim. Também pode
haver um grande retrocesso, existem muitos movimentos religiosos que apontam na
direção oposta. Mas, no Ocidente moderno, houve uma ampliação do entendimento
da sexualidade. Somos sexuais, e não heterossexuais ou homossexuais.
Este Zii e Zie é bem sexual, embora nem tanto quanto o anterior, Cê. Como está a sexualidade nesta chegada à velhice?
Este Zii e Zie é bem sexual, embora nem tanto quanto o anterior, Cê. Como está a sexualidade nesta chegada à velhice?
Olha, para mim tem a mesma
importância que sempre teve. Sou do time que acha sexo a coisa mais importante
que há. Tipo Freud [risos]. Uma manifestação essencial de tudo.
Voltando ao que você deveria ter feito, por que você foi fazer música, então?
Voltando ao que você deveria ter feito, por que você foi fazer música, então?
Passividade total diante do que aconteceu. Tinha interesse em
música, um conhecimento muito grande. O Alvinho Guimarães, que era um diretor
de teatro de Salvador, ficou muito impressionado. Eu tinha uma capacidade de
articulação bem parecida com a que tenho hoje. E ele me chamou para fazer a
música da peça. Eu disse: “Não sei fazer música, eu falo sobre música”. Ele
falou: “Tem que ser você, não tá tocando violão?”. Fiz, e todo mundo achou
maravilhoso. Aí me apresentaram a Gil, que eu via na televisão e achava o
máximo. Gil me adorou, achou que eu tinha que fazer música, que aquelas
bobagens eram maravilhosas. Duas vezes quis deixar de fazer música e Gil não
deixou.
Quando?
No fim do período da Bahia,
quando a gente ainda era novo. E, mais tarde, depois do fim do tropicalismo,
antes da prisão. Queria comprar uma Kombi e sair fazendo uns espetáculos pelo
Brasil. E depois deixar tudo, ir fazer filme, escrever. Gil falou nitidamente:
“Se você deixar de fazer música, também deixo”.
Jogou pesado.
Jogou pesado.
Muito pesado. Então fui ficando, e depois fui preso. Aí
teve o negócio de quase ficar louco, o exílio, e perdi um pouco daquela
determinação. Fiquei mais acuado para mudar. A música era a única coisa que
tinha, era real. Estava me agarrando à realidade. E gosto muito de música.
Então
vamos falar de uma música nova. Em “Lapa”, você canta que “Pelourinho Vezes Rio
é Lapa”. Essa equação de algum jeito resolve o Brasil?
Logo os primeiros versos dão
todo o histórico de como é esse negócio para mim: “Samba Canal 100 no meio dos
60/ E nos 70 era o largo da Ordem”. Quando eu era menino, não existia Canal 100
[cinejornal sobre futebol]. Tocava fox quando passava futebol, resquício de
que era um esporte britânico. Não havia vinculação entre futebol e samba. Eu
pensava que, se colocassem samba no futebol, o Brasil iria se afirmar. Aí
apareceu o Canal 100 com aquele samba “Que bonito é...”, uma coisa maravilhosa.
Isso é de uma importância enorme, era o Brasil vindo.
O trio musical da
Banda Cê, que acompanha Caetano: da esq. para a dir., Pedro Sá, Ricardo Dias
Gomes e Marcelo Callado, que estão no lançamento de Zii e Zie |
E o largo
da Ordem?
Quando
voltei de Londres, Curitiba se tornou minha cidade favorita. O Jaime Lerner
tinha recuperado o largo da Ordem, que tinha a arquitetura mais tradicional da
cidade. Mas Curitiba não tem relíquia arquitetônica. Zero, se comparar a
Salvador, São Luís, Rio de Janeiro. Olhei para aquilo e disse: “Não posso nem
sonhar, mas se isso fosse feito na Bahia ou em São Luís ou no Recife...”.
Seria como juntar samba e futebol.
Seria como juntar samba e futebol.
Entendeu? Não deu outra. Uma década
depois, Antônio Carlos Magalhães fez a recuperação do Pelourinho. Quando
aconteceu, nem queria ouvir reclamação do pessoal de esquerda, que dizia “mas
as pessoas foram removidas...”. Conversa chata, demagógica. Aquela própria
gente se beneficiaria tão mais de aquilo ter acontecido. Eu via aquilo como uma
afirmação [do Brasil]. E era, e é. Depois, isso foi acontecendo na Lapa, de um
jeito menos oficial que na Bahia. Fiquei muito emocionado. No Rio, esse efeito
se multiplica, é muito maior. Levei uma amiga americana lá, e ela ficou
impressionada como a Lapa era vital, elegante e popular.
Você continua saindo à noite?
Você continua saindo à noite?
Ah, sim. Gosto de ir aos lugares, de estar
com as pessoas. Sou animado. Agora, a resistência é menor. Envelhecimento é
isso. Demora para se recuperar de uma noite de cansaço, de uma balada. Eu emendava
todo fim de semana na Bahia. Bebia muita cerveja e cachaça, e quando chegava
segunda-feira estava novo. Depois foi ficando difícil. Já com 30 anos as
ressacas eram insuportáveis. Foi ficando pior. Tô cheio de beber.
Não bebe mais nada?
Não bebe mais nada?
Bebo só na terça de Carnaval. Este ano, bebi à beça.
Na Quarta-feira de Cinzas você deve ficar com a pior ressaca do mundo.
Na Quarta-feira de Cinzas você deve ficar com a pior ressaca do mundo.
Mas todo mundo está, então fico mais ou menos. Tem pessoas que estão bebendo
desde quinta, e eu só bebi na terça.
Em “Falso Leblon”, você fala de uma balada com ecstasy, que é uma droga da sua geração. Não tem uma incompatibilidade com essa turma mais nova?
Em “Falso Leblon”, você fala de uma balada com ecstasy, que é uma droga da sua geração. Não tem uma incompatibilidade com essa turma mais nova?
Não
tenho incompatibilidade com nenhuma geração boêmia. Com alguns caretas sim. Mas
não gosto de droga, não tomo nada.
Nunca experimentou ecstasy?
Nunca experimentou ecstasy?
Nunca. Já sofri demais com negócio de droga,
não suporto. Nunca fui viciado nem me acostumei. Cheirei lança-perfume aos 14
anos e tive pavor. Fumei maconha com 23 e tive horas de pânico absoluto. Tomei
ayahuasca e passei dias de horror e um ano de angústia. Agora, convivo com todo
mundo.
O medo das drogas passa pelo medo de ficar louco?
O medo das drogas passa pelo medo de ficar louco?
Totalmente.
Ainda tem medo de ficar louco?
Ainda tem medo de ficar louco?
Tenho. Não gosto de perder a consciência
nem a razão.
O que você achou do FHC defendendo a descriminação da maconha?
O que você achou do FHC defendendo a descriminação da maconha?
Gostei
muito. Também gostei quando o Chico Buarque se manifestou a favor da
legalização das drogas. Deveriam ser todas legais. Não gosto de pensar que as
pessoas só não tomam droga porque é proibido. O álcool não é proibido, mas não
é que a maioria da população seja alcoólatra.
Você saiu de um casamento longo, como está a vida de solteiro?
Você saiu de um casamento longo, como está a vida de solteiro?
A
princípio, senti dificuldade, mas ao mesmo tempo sentia a animação da novidade.
Nunca tinha sido solteiro. Saí de dois casamentos longos, minha tendência se
provou ser para casamentos longos. Vivi na casa de minha mãe até sair com Dedé,
e ainda estava com Dedé quando comecei com Paulinha [Lavigne]. Não pude viver
solteiro, ter uma casa minha. Depois melhorei, fui melhorando, hoje gosto
muito. Moro com meu filho Zeca, e é muito bacana uma casa com dois caras.
Você casaria de novo?
Você casaria de novo?
Não pensei em casar nem da primeira vez.
Se pensar, não casa.
Se pensar, não casa.
Existe um folclore generalizado de que os homens
não querem casar. Acho que o homem depende mais do casamento do que a mulher,
ficam mais desamparados quando se separam. Mulher é adulto, homem é criança.
Você ficou surpreso, como diz a música “Sem Cais”, ao se dar conta de que “ainda posso me apaixonar”?
Você ficou surpreso, como diz a música “Sem Cais”, ao se dar conta de que “ainda posso me apaixonar”?
Isso tem a ver com certas experiências minhas.
Pensei que não fosse mais capaz, mas já faz tempo que descobri que talvez seja.
Às vezes, você vê uma pessoa e percebe que poderia [se apaixonar], e nisso você
sente tudo. Em geral, você se apaixona antes de encontrar alguém. Quando
encontra, pode preencher e aquilo se potencializa, se materializa.
Já que você citou Freud antes, vamos falar da pulsão de morte. Como você lida com a morte?
Já que você citou Freud antes, vamos falar da pulsão de morte. Como você lida com a morte?
Sempre tive medo da morte, desde menino. Acho que sou
menos angustiado hoje do que quando era novo.
Não devia ser o contrário?
Não devia ser o contrário?
Claro que, sendo velho, vou viver muito menos
do que já vivi. Acho que não é tão frequente os mais jovens terem menos medo da
morte que os velhos. Não estou certo, mas acho que não é.
Sua insônia tem a ver com angústia?
Sua insônia tem a ver com angústia?
Tem. Mas tem a ver também com uma
animação. Dormir nunca foi fácil para mim. Desde criança, não queria dormir.
Preferia acompanhar as conversas dos adultos, os programas de rádio... Não
gosto de apagar, de parar de conversar, de viver, de ver filmes, pessoas, fazer
coisas. Agora, isso também pode ser uma face da angústia, talvez você confunda
sono com morte, ou uma coisa assim.
Com 20 e poucos anos, você escreveu que seu coração “não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer”. Aos 66 anos, chegou lá?
Com 20 e poucos anos, você escreveu que seu coração “não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer”. Aos 66 anos, chegou lá?
Ainda
não. Mas reitero que meu coração não se cansa.
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