domingo, 29 de julio de 2012

1999 - JOÃO GILBERTO E CAETANO VELOSO






Foto: Luiz Carlos Santos



Folha de São Paulo, 30 de setembro de 1999.

"João Gilberto critica o Credicard Hall"
Armando Antenore

Vaias e reclamações foram as principais melodias do show que marcou ontem à noite a inauguração, para convidados, do Credicard Hall, em São Paulo, a maior casa de espetáculos do país.

João Gilberto, que se apresentou com Caetano Veloso, fez críticas insistentes ao sistema de som da casa, e declarou que nunca mais se apresentaria no local.

Diante de políticos como o governador Mário Covas, que elogiou a tecnologia do Credicard Hall antes do espetáculo, o músico baiano declarou: "Não sou político para ficar fazendo média".

Ele se referia às vaias que vinham da platéia de 6.000 assentos, ocupada em grande parte por patrocinadores e convidados.

Depois de apresentar o clássico da bossa nova "O Pato", Gilberto disse: "O pato sou eu". Ele também falou: "Sou argentino desde pequenininho". Era uma alusão ao show bem-sucedido que ele fez em Buenos Aires, em março deste ano. Veloso defendeu Gilberto das críticas do público. Disse que não iria comentar nada, mas que o músico deveria ser respeitado.



"Tem que mudar esse sistema de som para o bem de todos"
(João Gilberto, vaiado pelo público na inauguração do Credicard Hall, quarta-feira 29, em São Paulo)


Foto: João Wainer


Folha de São Paulo, 1/10/99

João Gilberto e Caetano Veloso:
Castigo e Benção de Dois Orixás

Credicard Hall, 29/9/99

Arthur Nestrovski

Foi uma noite estranha. Pouco festiva e pouco inaugural, com aplausos mornos para a sala e seus donos, e vaias estridentes para o mestre. Isso importa pouco: a sala há de fazer ou desfazer seu nome com a música que se fizer lá dentro. De importante, então: a música de João Gilberto e Caetano Veloso, momentos de música, no burburinho da destemperança.

"Saudosa Maloca" foi o improvável ponto alto, e serviu melhor do que qualquer outra canção para demonstrar as virtudes complementares de João e Caetano. No encantamento da beleza de sua própria voz, Caetano Veloso é um cantor que vai se entregando para o espaço. Canta para fora, com a naturalidade do sol. João Gilberto é quase o oposto: quando começa a cantar, a música volta para dentro, na direção do que tem de mais calado.

João Gilberto canta como João Gilberto e só como João Gilberto. é uma referência pura para si mesmo, um ideal que ele persegue obsessivamente, atravessando os desconfortos. é Caetano (e virtualmente só Caetano) quem ressoa com ele, resguardando a dimensão mais aberta do canto. No centro da música, há uma memória, ou resposta a João, a partir da qual vêm se expandir os círculos da sua própria voz. Escutar um e outro cantando alternados é uma lição sobre o que passa, e o que se ultrapassa, na arte, e o que se transforma e se cria.

Não há cantor mais sofisticado do que Caetano Veloso hoje no país. Mas mesmo esse canto, controlado nas liberdades de arabesco e vibrato, parece relativamente simples quando se depara com a simplicidade antinatural de João Gilberto. Ele é o cantor silábico e metafísico, destinado às intensidades de cada segundo. Ninguém respira como ele, e uma linha musical, cantada por João, vira uma aventura e um risco - para ele, que canta num limite do ideal, e para nós, que vamos seguindo o canto como crianças.

Nada disso fazia muito sentido num ambiente como o do Credicard Hall. é muito estranho, para quem não está acostumado, ir escutar música e se ver sentado em mesas de fórmica com baldes de gelo em cima e garçons ao redor. A distância do palco acaba obrigando a olhar para os telões também. Que idéia esquisita: sair de casa para ver televisão e escutar o vizinho da mesa ao lado cantar. é preciso esforço para encontrar a música no meio disso tudo.

Para quem estava no palco, a vida ficou estranha também. Tinha razão João Gilberto ao reclamar uma, duas e trezentas vezes do eco no retorno de som? Provavelmente, embora a forma e a hora não fossem as mais simpáticas, para dizer o mínimo. Foi Caetano quem teve a elegância de acalmar os ânimos sem contemporizar.

A "luna rossa", operística lua vermelha de uma canção em dialeto italiano, marcou o ponto de virada desse show tão arrevesado. Mesmo em seu mau humor, e atormentado pelo eco, João Gilberto teve sempre a grandeza de fazer grande arte onde ela já parecia ter desaparecido, como em "Garota de Ipanema". Mas foi a lua de Caetano que dispensou raios de benevolência sobre todos e salvou o espírito da música. A partir daí (com uma hora transcorrida, e outra pela frente), a noite ficou magnetizada, e só não ouviu maravilhas quem não quis.

Ninguém acompanha Caetano melhor do que João. Perfeitos acordes imperfeitos, em seqüências perfeitas, num pulso que é tão igual, mas não tem igual. E ninguém vive tão à vontade sobre essas harmonias quanto a voz de Caetano.

Foi uma noite estranha. Mas que foi se desestranhando aos poucos, até o final, sem clímax. Inaugurada por João e Caetano, foi como se a nova sala tivesse sido castigada e abençoada pelos dois orixás. A bênção e o castigo foram merecidos, e com essa memória o teatro, agora, que comece a fazer seu nome com música. 






ISTOÉ
Edição n° 1566 - 06/10/99



Um banquinho, um violão e muita malcriação
Na inauguração da casa paulistana de espetáculos Credicard Hall, João Gilberto reclama demais por causa do som e a platéia responde com vaias

APOENAN RODRIGUES
Colaborou Celso Fonseca

Tinha tudo para ser uma noite engalanada. Afinal, depois de os cinco sócios do Credicard Hall terem investido R$ 34 milhões naquela que é considerada a maior casa de espetáculos da América do Sul, em área construída, a expectativa era de que a sua inauguração na quarta-feira 29 fosse de um luxo correspondente. Mas a errada estratégia de convidar o imprevisível e perfeccionista João Gilberto para fazer com Caetano Veloso um show que poderia ser histórico fez desabar o evento numa cascata de constrangimentos. Devidamente acomodado em mesas, poltronas e camarotes luxuosos, regados à espumante prosecco e uísque oito anos, o público de 4,8 mil pessoas convidadas aguardou até às 22h05, quando finalmente o mito da bossa nova pisou no imenso palco acompanhado de Caetano. Nem bem exercitou um banquinho e um violão, João reclamou do vento do ar-condicionado. Entre os músicos é sabido que o frio do equipamento desafina cordas e prejudica a garganta. Ainda mais em se tratando de João.

Há quem afirme que só Caetano Veloso ensaiou, portanto João Gilberto – que teria ganho US$ 60 mil pela performance – não tinha a menor idéia de como seria o som. Deu-se a primeira música. João reclamou do eco vindo em sua direção. Caetano Veloso, sempre na imutável posição de discípulo embevecido, sorriu. Veio a segunda canção, a terceira, a quarta e o músico continuou reclamando do tal eco. Chegou o momento solo de João. Aí o clima piorou. “Se fosse um artista estrangeiro, processaria esta casa.” “Nunca mais piso aqui.” As frases se suce-diam num crescer raivoso. O show, é claro, tornou-se burocrático. Clássicos como Garota de Ipanema e O pato ou o desfile de canções de Tom Jobim foram ouvidos sem a habitual destreza do papa da bossa nova. Mesmo porque – perdoem a possível heresia – João Gilberto não é mais o mesmo. Sua voz não alcança os agudos de outrora, ele saiu do tom quando cantava Coração vagabundo, tudo agravado pelo seu ódio ao eco. Na platéia, bem à sua frente, roqueiros como Roberto Frejat, vocalista e guitarrista do Barão Vermelho, e Charles Gavin, baterista dos Titãs, concordavam que havia eco. Para a maioria do público tudo não passava de exagero. Até porque tinha muita gente mais interessada em atender e falar ao celular do que prestar atenção no palco.

Na realidade, foi o show errado no lugar errado. Apesar da opulência, o Credicard Hall não está preparado para espetáculos intimistas como o da inauguração. Aliás, em seu discurso de abertura, Fernando Alterio, um dos sócios, lamentou não passar o vídeo de apresentação justamente por um problema de som. Quer dizer, João Gilberto tinha sua dose de razão. “De fato, nas três ou quatro primeiras fileiras estava dando eco. O João Gilberto estava certo, só exagerou na ênfase”, declarou Alterio. “Nós já revestimos a parte frontal dos camarotes com um material acústico absorvente e pusemos cortinas de veludo nas janelas das suítes.”

Naquela noite fatídica, no entanto, a atmosfera de animosidade aumentou quando parte do público soltou uma imensa vaia. João retrucou mostrando a língua. “Vaia de bêbado não vale.” Caetano Veloso entrou em cena. E quando Caetano resolve entrar em cena é para valer, todos sabem. “Eu não vou falar nada. Mas vou falar sim”, determinou. “Aquelas pessoas que vaiaram aqui João Gilberto não me são aceitas no coração.” Ele está certo. Não se vaia um mito como João Gilberto. Mas a insistência reclamante do cantor deixou todo mundo nervoso e as pessoas, a esta altura divididas, se manifestavam como num festival. Citando um dos versos da definitiva Sampa, de Caetano Veloso, cantada em dupla, no fim da noite sobrou a sensação de que tudo fora o avesso do avesso do avesso.










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