1982
Revista ISTOÉ
nº 274 - 24/3/1982
Capa: Foto Marisa Álvarez de Lima
A PERSISTENTE LUZ
DO CAETANISMO
Regina Echeverria
Participaram: Marcos Augusto Gonçalves e Marta Góes
Fotos: AMÉRICO VERMELHO
Página 46-52
CULTURA
O verbo caetanear
Passado e presente de um fenómeno que desafia o tempo
Caetano, caetanismo, caetanave, caetanista, caetanólogo, caetanete, caetanear. Caetano Emmanuel Vianna Telles Veloso virou verbo. Já era adjetivo para o seu ardente público muito antes do lançamento do 19º LP de sua carreira, Cores, Nomes, duas semanas atrás, e substantivo para a maioria dos músicos e críticos acostumados há uma década e meia com a originalidade e beleza de suas músicas. Agora, a cinco meses de completar 40 anos, estaria ele perto de realizar o sonho de produzir uma obra importante, necessária e profunda?
É possível. Muitas vozes discordantes resistirão a Caetano por um tempo ainda impreciso. Estes dirão que o novo vocábulo comporta também a forma caetanagem. Outros engrossarão as fileiras de uma gente um tanto especial, que elegeu Caetano como o dono de muitas respostas, o audaz lançador de comportamentos inéditos, o guru. Estes dirão, mais uma vez, que ele é genial. É possível que seja. Impossível, num caso ou no outro, é não ouvir os aplausos dos admiradores de Caetano pelo país afora.
Mesmo quando estão em silêncio, como nos graffiti dos muros. No bairro do Pacaembu, em São Paulo, perto da casa dos pais de Chico Buarque de Hollanda, um deles aconselha o filho mais famoso da casa a aderir à palavra de ordem: caetanizar-se. Ali, na semana passada, sentado na varanda e contemplando as velhas árvores que o viram crescer, o autor de A Banda empunhava uma pasta contendo documentos políticos. Um deles era a resolução tomada na Nicarágua pelo Comitê Permanente de Intelectuais pela Soberania dos Povos da Nossa América, do qual é um dos signatários. Chico tomava cerveja e silenciava misteriosamente quando perguntado sobre o sentido do que seria caetanismo. Disse não ter explicação para o fenômeno. Mas observou: "O Caetano se liga muito nos jovens, e isso implica, naturalmente, uma mudança constante do próprio Caetano. Ele é assim meio Dorian Gray".
No Rio, naquele mesmo momento, Caetano dava mais um retoque no seu retrato de artista que se pretende eternamente jovem. De terno, gravata e paletó, ele está interpretando o papel dó compositor Lamartine Babo no filme Tabu, direção do cineasta underground Julinho Bressane. "Caetano só é canastrão quando é ator"; explica o diretor. "Ser canastrão no Brasil é bom. Ë uma regra, uma maneira de representar. Ele está bem artificial no papel de Lamartine.”
É um julgamento. Caetano, por sua vez costuma fazer, sobre si mesmo, revelações afirmativas. Não tem medo de usar adjetivos, já comprou uma razoável quantidade de inimigos por causa disso e tem o hábito de criticar-se antes dos outros, manifestando sem nenhum pudor os seus desejos. Nó fim de 1978, por exemplo, Caetano desejava antes de tudo ser amado. Tomou como ofensa pessoal as criticas aos seus discos e shows da época e abriu ruidosa fuzilaria contra a imprensa, que estaria, na sua opinião, a serviço de dois senhores: o patrão capitalista e o Partido Comunista. “Quero acabar com esta canalha", rugiu ele na primeira página do extinto Diário de S. Paulo, enquanto ia interrompendo seus shows para protestar publicamente, às vezes de forma grosseira, contra ás pessoas que julgava suas inimigas.
Caetano fazia seus comícios para casas lotadas. O público, de modo geral, o aplaudia. Três anos e meio depois, ele continua tendo opiniões contundentes sobre coisas e pessoas (leia Caetanices, de A a Z). E, no entanto, o amor que seu público lhe devota continua inabalável. Os jovens de 20 anos da época do tropicalisimo já passaram dós 30 e. foram substituídos por outros jovens de 20 anos, ou menos, que renovam o rebanho do caetanismo (leia Frases de um amor juvenil). Hoje é possível iluminar um pouco o áspero bate-boca que envolveu Caetano e parte da intelligentsia do país.
Caetano carrega e certamente carregará por muito tempo uma corcunda; como ele diz. Será exigido, cobrado e inquirido pelos seus comportamentos, distintos da maioria. A família brasileira não aprovou seus modos femininos. A esquerda desconsiderou-o quando disse que não entendia de, política. Caetano diz que exagera algumas coisas um pouquinho, e diminui a importância de outras, para não ser mal entendido. Ele explica: "Muitas vezes, quando me perguntam se eu tenho alguma intenção por trás de determinada música ou alguma atitude em relação à musica brasileira ou ao modo de vida dos brasileiros, enfim, se eu tenho alguma ideologia, eu digo não".
O episódio com a crítica apareceu nesse contexto. A imprensa reagiu de forma também grosseira aos ataques de Caetano, e apareceram artigos ofensivos ao cantor, sugerindo que ele voltasse aos circos do interior da Bahia, "de onde nunca deveria ter saído". No interior da Bahia, onde nasceu, Caetano sonhava ser célebre desde pequeno - queria não apenas ser famoso, mas também ver suas idéias reconhecidas. Daí ter desenvolvido um sentido de competição justamente com os críticos. "Tenho um senso crítico muito grande", diz. "Gosto de articular idéias e, na verdade, não me dedico a isso. Como tenho esta vontade de falar, de pensar e raciocinar, acabo entrando em competição. Mas é bom porque contribuo."
Passada a tormenta, o choque se torna compreensível. Principalmente quando se levam em conta outros desejos do cantor, "Eu gosto de dizer coisas estranhas", diz ele. "Sinto prazer em que pareçam estranhas. Mas são coisas que precisam ser ditas. Se não tivesse o prazer de encontrar essas coisas, eu não as encontraria."
O jornalista e compositor Nélson Motta, que se diz "aprendiz de caetanólogo" e é testemunha de todos os grandes momentos da carreira do compositor, concorda. "Ele não tem a menor vergonha de sair correndo para contar as suas coisas para todo mundo", diz. Nelsinho considera-se um "caetanista liberal", que concorda com quase tudo o que o mestre diz, situando-se, assim, um ponto abaixo em favor do de Regina Casé. "Ele é a razão do meu viver, ele me rege", resume a atriz do Asdrúbal Trouxe o Trombone.
Os caetanistas são assim. Exagerados como o próprio Caetano, gostam de suas músicas porque elas exprimem um estilo de vida, um jeito de ser, qualquer coisa assim. No seu sonho megalomaníaco, chegaram a criar, numa reunião na praia de Ipanema, um slogan publicitário para o disco Cores, Nomes, lembrando que este é o ano da Copa do Mundo: "Caetano: Ame-o". O publicitário Washington Olivetto, da agência DPZ, recordista nacional de troféus e caetanista confesso, não faria essa campanha, "embora Caetano mereça". Olivetto, um dos entrevistadores de Caetano no Canal Livre, foi vitimado naquela ocasião por súbita afonia diante do seu ídolo, e quase não falou. "Estava muito gripado", lamenta ele. Mas não tem dúvida da qualidade do produto Caetano Veloso: "Nada nele é gratuito, mas tudo é feito de um jeito, que o produto final parece descompromissado".
Rita Lee concorda. "Caetano serve para tudo", diz. No caso de Rita, serve para excitar-lhe a imaginação poética - ela o define como "lindo, bonito, gostoso, modesto, sincero, um tesão, beleza pura, príncipe art-déco". Suspira: "Ele é bom com ou sem gelo. Quero Caetano na veia. Sem Dedé". Rita, que também tem idéias próprias; pertence à ala dos caetanistas que cultivam a ousadia e o anarquismo e é a que melhor realizou o sonho do prazer, uma das sementes do tropicalismo.
E no mínimo intrigante lembrar que existem outras alas em torno de Caetano. Em 1968, por exemplo, a esquerda que acabou pegando em armas abominava os camisolões e as guitarras elétricas dos tropicalistas. Mas não foi a patrulha ideológica, e sim a radiopatrulha propriamente dita, quem pôs Caetano e Gil na cadeia e os forçou ao exílio em Londres. Hoje, não é apenas Fernando Gabeira quem prestigia e aplaude os shows de Caetano. O próprio Partido Comunista; o venerando Partidão, que está completando 60 anos, abriu as páginas do seu órgão oficioso, Voz da Unidade, para que nele Caetano expressasse sua simpatia pelos militantes.
Caetano serve para tudo, como pretende Rita Lee? No campo da política propriamente dita, da qual Caetano não gosta, tem amizades sólidas em lados opostos. O ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes diz, por exemplo, que "Caetano é uma pessoa a princípio tímida, mas de fácil relacionamento, muito simpática e preocupada não só com a música mas também com os problemas do seu país". Jayme Lerner, o prefeito de Curitiba, não duvida da genialidade de Caetano: "Para ele, tudo é motivo para uma criação que proponha a necessidade de repensar a palavra música. e também a vida". Em abril, Caetano vai começar uma série de excursões, apresentando-se justamente em Curitiba. Este ano, pára Caetano, é o "ano sim". Isso quer dizer que de Curitiba ele partirá em tournée pelo país todo. Nos "anos não", limita-se a Rio, São Paulo e Salvador.
Como se vê, não e apenas o caetanismo que tem suas peculiaridades, mas também o próprio Caetano. Ao mesmo tempo que lança modas, ele as desrespeita. Ao mesmo tempo que se envolve com idéias, rejeita o partidarismo. A contradição é importantíssima - e talvez o maior ponto de união do fã-clube informal que se agrupa em torno do ídolo. Esse fã-clube já está, digamos assim, numa terceira geração. E, para surpresa dos que esperavam ouvir de Caetano um hino às qualidades naturais dos jovens, ele não acha que a juventude tenha por si só qualquer mérito. "Tenho uma identificação com adolescentes de todas as idades", diz. "Tenho pela adolescência uma atração bem mais sexual que propriamente intelectual, embora também tenha."
Foi, emfim, de alguns homens maduros que recebeu algumas das conceituaçoes mais eruditas sobre sua obra. O escritor e professor de literatura da PUC carioca Silviano Santiago faz uma interpretação ousada: "A graça de Caetano é que ele não tem estilo". Com isso ele quer dizer que Caetano e uma figura enigmática que não tem medo do próprio raciocinio e um artista que nunca esteve comprometido com as chamadas "formas codificadoras". Diz Santiago:, "Num país de gente inflamada, de pavio curto, ele mantém um estilo cool, sempre abaixando a temperatura e abrindo espaço para a reflexão".
O professor Celso Favaretto, da USP, autor de um livro sobre o tropicalismo (Alegria, Alegoria), acha, por sua vez, que as canções de Caetano exprimem sempre o que está por vir - o que talvez explique a sintonia dessas canções com o momento presente. Diz Favaretto: "Estas canções são biografias de épocas e de comportamentos que ele vivenciou. Caetano não cria artificialismos. Quando o faz, é porque isso tem a ver com a artistização da vida". A teorização sobre o tropicalismo, em geral, e Caetano, em particular, já é extensa. Mas muitos teóricos preferem hoje o silencio, caso do meticuloso ensaísta Roberto Schwarz e do frenético apologista Gilberto Vasconcelos. Augusto de Campos, o mais constante e metódico de todos, também prefere não acrescentar mais nada ao que já disse.
O próprio Caetano jamais se recusou a acrescentar ou mesmo reciclar idéias sobre si mesmo. "Não tenho estilo, é verdade. Faço uma colagem, uma aproximação meio enviesada: Sou autor de plágios montados. Venho da coisa cool. Meu mestre primeiro é João Gilberto." Gilberto Gil, o velho amigo, enfatiza: "Ele é o artista mais importante do Brasil depois de João Gilberto, o compositor mais original, o poeta mais surpreendente, o artista mais abrangente".
Companheíros de trabalho e lazer desde 1963, Caetano e Gil mantêm, há cinco anos, uma nova forma de relação. Falam pouco sobre os destinos da música popular e deles próprios dentro dela. Preferem hoje discutir a vida, os vôos de cada um, os amores e desamores. "A nossa amizade se ressente de objetividade de minha parte", confessa Gil. "Até Doces Bárbaros, a relação era compulsória e obrigatória. Eu me afastei um pouco. Sou mais recluso, mais fechado."
Hoje, Caetano se coloca, segundo Gil, apenas diante do resultado de seu trabalho. Em compensação; tanto um quanto outro garantem que esse afastamento fortaleceu uma amizade absolutamente escancarada na confissão de Gilberto Gil: "Ele é o único homem que eu amei".
Certamente são mais agradáveis os encontros de hoje, sem a tensão de tantas análises. Podem conversar sobre suas vidas íntimas, sobre as férias na Bahia ou sobre a viagem que Caetano terminou de fazer, há duas semanas, quando percorreu de carro, com a mulher, Dedé (de quem esteve separado por um breve período no ano passado, época em que namorou a atriz Sônia Braga), o filho Moreno e o inseparável empresário e amigo Guilherme Araújo, a estrada que vai de Salvador ao Rio de Janeiro. Tudo muito leve, como é leve também a visão que Caetano tem hoje sobre o fantasma da predestinação, que rondou sua cabeça em outras épocas. "Eu não gosto da idéia de predestinação, de missão. Gosto de sentir arbítrio, liberdade."
É talvez por isso mesmo que Caetano, caetanisticamente se rebela contra a idéia do caetanismo. "Caetanear eu adoro, caetanismo eu não gosto'', diz ele. Pelo raciocínio de Caetano, seus possíveis toques não deveriam chegar à sua legião de fãs como um ato de imposição.
Para Caetano, não se deve falar em caetanismo como posicionamento ideológico, mesmo porque seus admiradores são diversos e discordantes. Admiradores, e não seguidores, como prefere Caetano. Ter seguidores significa, para ele, uma reação contra o seu trabalho. "Todas as vezes que vejo a palavra caetanismo, ela vem sempre acompanhada de uma insinuação de destruição do meu trabalho."
Não faz parte da brincadeira, necessariamente, caetanear Caetano Veloso. Os aprendizes do caetanismo não são, enfim, seguidores ferrenhos, discípulos cegos e partidários radicais. São, como ele próprio, rebeldes. Rejeitam conceitos radicais de qualquer espécie, manifestam-se sem medo, são curiosos, gostam de conversar, de saber, de opinar. "Ser caetanista é ter um vetor mais pra cima", como definiu o jornalista Ezequiel Neves. Ou, como diz a inédita canção que Rita Lee pretende incluir no seu próximo LP: "Tem manha?/ Tem, sim senhor/ Tem cama pra fazer amor/ Tem rock, sim/ Lá nas terras do Bonfim" (Dengo, dengoso, Caetano Veloso).
Será mais uma homenagem ao artista que, em quase vinte anos de carreira, apenas no ano passado, com o LP Outras Palavras, conseguiu ganhar seu primeiro disco de ouro, por ter vendido em um ano mais que 100 mil cópias. Este é um dos aspectos mais intrigantes da carreira de Caetano. Embora largamente amado e divulgado, seus discos sempre encontraram um número minguado de compradores - uma média de 60 mil cópias, muito longe de qualquer outro artista do primeiro time da música brasileira. Sabe-se que certos artistas cultivam esta falta de consumidores.
Não é este o caso de Caetano. "Claro que eu gostaria de ser superpopular", diz. "Agora, tem momentos em que, pensando sozinho, acho que este número de discos que vendo é bastante bom. Se dependesse de mim, não modificaria nada para vender muito." Caetano mora numa bela casa no Jardim Botânico, no Rio, e não parece cultivar grandes ambições materiais. Guilherme Araújo, seu empresário desde 1966, diz que Caetano vive muito bem com o que ganha. Isso quer dizer que Caetano fica com 12% de royalties da venda dos seus discos. E que quem quiser contratar um show com Caetano e seus músicos pagará 2,5 milhões de cruzeiros.
Famoso pelo seu narcisismo, Caetano, na verdade, se acha algo "esquisito": sente-se fascinado por pessoas diiferentes dele. "Fico procurando ser João Donato e sou Caetano Veloso", diz. Seus hábitos incluem freqüentar os bares do Baixo Leblon, embora não beba, e receber os amigos em casa - Gil, Regina Casé, o letrista Antônio Cícero, o poeta Wally Salomão, Guilherme Araújo, Suzana de Moraes. E só. Caetano, visto assim, está longe de ser complicado.
Foi isso que ó compositor Djavan intuiu recentemente, quando compôs a canção Sina, incluída em Cores, Nomes, e cujos versos acabaram consagrando o verbo caetanear. Jogando com palavras inspiradas numa associação subjetiva, Djavan transformou Caetano em música ao dizer: "Tocarei seu nome/ Pra poder falar de amor". Djavan menciona a vitoriosa ausência de culpa, que Caetano difundiu em tantas de suas pregaçoes, quando canta; "A luz de um grande prazer é irremediável". E aposta numa esperança: "Quiçá um dia a fúria desse front/ Virá lapidar o sonho/ Até gerar o som/ Como querer caetanear/ O que há de bom".
A esperança, no caso, é que as muralhas desapareçam e que um grande barato aconteça no dia em que todos compreenderem, ou pelo menos sentirem, que Caetano Veloso é também um projeto viável.
Revista IstoÉ nº 274 - 24/3/1982
Página 53-54
Caetanices, de A a Z
"Tenho essa vontade iluminista de esclarecer"
Opiniões de Caetano Veloso sobre pessoas e coisas, coletadas ao longo de quatro horas de conversa com ISTOÉ:
Adequação e inadequação
"Acho que eu tenho muito talento, mas ao mesmo tempo não acho que o que eu faço seja tão bom. É uma coisa mais ou menos inadequada e bastante útil, mas não tem aquela adequação maravilhosa que tem João Gilberto para tocar violão e cantar canções."
Araçá Azul
"Fiz o Araçá Azul em uma semana, aquela coisa estranha de vozes superpostas, palavras escondidas, gritos, barulhos, uma confusão. Quando acabei de fazer, o Augusto de Campos ficou entusiasmado, o Rogério Duprat adorou. O Gil caiu em prantos. Pensei puxa vida, então é bonito e senti aquela liberdade de estar fazendo uma coisa experimental, um certo orgulho de fazer uma coisa esquisita. Mas, quando ouvi o disco Ben, logo em seguida, disse, que loucura, não é nada disso, isso tudo que fiz é uma bobagem. Vi a superioridade enorme daquele disco do Jorge Ben sobre tudo o que pudesse haver de melhor no Araçá Azul."
Crítica e razão
"Eu não reclamo das críticas como carência pessoal de elogio. Tenho e tive milhões de opiniões a meu favor Eu faço como contribuição na exigência da melhora das relações no Brasil, das coisas que se dão publicamente. Eu tinha rázão todas as vezes, essa questão de razão comigo é brava, porque eu tenho razão. Eu falo pra esclarecer, porque tenho essa vontade iluminista. Mas não me sinto perseguido, nunca me senti, nem vitimado, nem acho que sou injustiçado, nada disso. Acho que fui super-homenageado, tenho uma importância que jamais esperei ter no Brasil."
Diferenças
"Eu gosto da diferença. As pessoas que não se parecem comigo me atraem muito como assunto pra cabeça. De modo que eu não seria feliz se as pessoas fossem todas parecidas comigo."
Discos
"Estou me sentindo menos responsável pela música popular, e acho que assim é mais saudável. Houve um período em que me sentia como urn guardião, ficava tomando conta. Do meu jeito, mas ficava tomando conta. Eu ouvia tudo ò que saia e já faz alguns anos que acho isso impensável. Eu não ouço mais LP de ninguém, a não ser que seja um sucesso na minha casa, que Dedé ou Moreno gostem. Não consigo mais ouvir um disco inteiro."
Gabeira
"Eu não tenho nenhum problema com Gabeira, mas não li nenhum de seus livros inteiro. Chegou falando umas coisas que eu já sabia. Antes dele pintar, a gente já conversava dessas coisas. De todo modo, ele chama a atenção para esses problemas. Acho que ele é meio didático."
Gláuber e Maria Bethânia
"É uma pobreza brasileira endereçar as pessoas para funções mais ou menos equívocas. Não é propriamente a vocação simples, pura e dominante da pessoa que acaba sendo a função dela na sociedade. No Brasil acontece demais isso. Por exemplo, o Gláuber Rocha era fantástico, mais do que sabia fazer cinema. A Maria Bethânia é muito mais fantástica do que sabe cantar. Daí terminam fazendo um cinema e um canto que são geniais e diferentes e que acabam modificando a história do cinema e do canto."
Jabor e o italianismo
"Falei nó programa Outras Palavras sobre italianização, nos filmes e nas canções. também. São aquelas musicas meio festival de San Remo, aquelas baladas com orquestração moderna. Acho que existe uma tendência para isso, no filme Eu Te Amo eu sinto isso. Eu adoro Jabor, gostei de Toda Nudez e mesmo Tudo Bem eu acho bonito. Ele me chamou para fazer a música de Eu Te Amo, vi o filme na moviola e não tive coragem de dizer que não gostei e fiquei envergonhado de não ter dito. Naquele dia, na televisão, falei porque não gosto do filme. Acho que ele é bem-feitoso, e depois tem aquela coisa chata, meio de alto nível, ou pra todo mundo achar que é de alto nível. É um profundo suspeito. E me lembra muito Bertolucci, que eu não gosto.''
Masculinidade
"Não conheço ninguém em quem a masculinidade se assente melhor dó que em Jorge Ben. Não há problema nenhum em ser homem, essa coisa moderna e tão desagradável. É igual uma mulher, ele. É inteiro, opaco, não tem essa transparência do homem, essa explicação; e, no entanto, é a coisa mais masculina que existe."
Paulo Francis
"Gosto quando o Paulo Francis diz umas coisas que um pouco assustam a esquerda convencional. Não gosto é de carões moralistas."
Psicanálise
"Eu não discutiria esse aspecto, que vem sendo discutido no Brasil, sobre se a psicanálise é válida ou não, se é ciência ou não. O meu próprio depoimento pessoal não teria nenhuma importância, nenhuma validade para esclarecer essa discussão pra nenhum dos lados. Nem pro lado dos detratores nem pro lado dos psicanalistas. Mas eu pessoalmente me beneficio de fazer psicanálise."
Sérgio Cabral
"O samba da União da Ilha É Hoje é o samba-enredo mais bonito que já ouvi. Quando fui ver na televisão, o Sérgio Cabral disse assim, num ano de sambas médiocrés, nota nove. Ai botei no Sérgio Cabral o apelido de `O Marquês de Sapucaí'."
Rock and roll
"No panorama mundial, eu me identifico muito com os artistas do revival do rock and roll, com Bob Dylan, Mick Jagger, John Lennon. Beatles e Rolling Stones faziam a grande música da época, embora parecesse que os seus três acordes ficassem inferiores à música sofisticada que também se fazia na época. Eu me identifico muito com isso. Essa aparente inadequação que sinto talvez seja uma adequação a esse novo modo de se fazer arte, mais polivalente e mais enviesada. Mais solta. Eu me sinto moderno nesse sentido."
Simone
"Achei muito ruim o que Simone declarou à imprensa, dizendo que seria a primeira mulher a vender 1 milhão de discos. Eu acho isso chato e deselegante com Rita Lee e Maria Bethânia, e com as mulheres em geral. Depois, acho errado isso de ficar dizendo que vai vender. Simone é uma pessoa rnaravilhosa. Isso tudo é uma tolice do próprio ambiente e que está levando muito a atitudes assim."
Zumbi, Jorge Ben e João Cabral
"Cheguei a dizer que Jorge Ben era o maior poeta do país, mas era exatamenu o que eu estava sentindo. Quando ele cantou Zumbi, na Phono 73 achei lindo. `Aqui onde estão os homens/De um lado cana-de-açúcar/De outro lado os cafezais/Ao centro os senhores sentados/Olhando a colheita do algodão branco.' Achei aquilo o melhor, melhor que qualquer tentativa revolucionária do João Cabral de Melo Neto, por exemplo."
Revista IstoÉ nº 274 - 24/3/1982
Página 54
De Cae a Merquior, e vice-versa
Caetano, em conversa com ISTOÉ, disparou a primeira flecha. José Guilherme Merquior, ensaísta, diplomata e assessor do ministro Leitão de Abreu, tomou conhecimento da declaração e revidou. Estava consumada uma nova polêmica. A seguir, as declarações de um sobre o outro.
De Caetano, sobre Merquior:
"Detestei aquela entrevista do José Guilherme Merquior. Ele fala assim: o narcisismo, as pessoas ficam contando multo as coisas de sua vida pra dar um sentido às suas vidinhas, vão fazer psicanálise pra dar um sentido às suas vidinhas. Pensei, puxa vida, eu faço análise justamente pelo contrário. Acho que minha vida tem sentido demais e, por outro lado, detesto esse negócio do pudor, da discrição. Na verdade, aquilo que ele está falando é reacionarismo mesmo, é retrógrado mesmo, não me engana não. E, depois, eu tenho o direito de falar porque tanto ele quanto o Eduardo Mascarenhas são pessoas de outra área que vieram para a minha, o show business, isto é, a área do exibicionismo e do narcisismo. Todos nós, eu, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, todos somos narcisistas e exibicionistas. Agora, quem vem de lá, que está sempre dentro do escritório estudando de óculos e vem para a televisão e para a revista com todos os livros enfileirados na frente da fotografia dizer que os narcisistas estão acabando com o respeito e o pudor, nada disso. Eu não permitirei isso, Quer dizer, aqui no show business, pelo menos, quem manda sou eu. Se não for eu, é o Nélson Ned. Mas não pode ser o José Guilherme Merquior".
"Detestei aquela entrevista do José Guilherme Merquior. Ele fala assim: o narcisismo, as pessoas ficam contando multo as coisas de sua vida pra dar um sentido às suas vidinhas, vão fazer psicanálise pra dar um sentido às suas vidinhas. Pensei, puxa vida, eu faço análise justamente pelo contrário. Acho que minha vida tem sentido demais e, por outro lado, detesto esse negócio do pudor, da discrição. Na verdade, aquilo que ele está falando é reacionarismo mesmo, é retrógrado mesmo, não me engana não. E, depois, eu tenho o direito de falar porque tanto ele quanto o Eduardo Mascarenhas são pessoas de outra área que vieram para a minha, o show business, isto é, a área do exibicionismo e do narcisismo. Todos nós, eu, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, todos somos narcisistas e exibicionistas. Agora, quem vem de lá, que está sempre dentro do escritório estudando de óculos e vem para a televisão e para a revista com todos os livros enfileirados na frente da fotografia dizer que os narcisistas estão acabando com o respeito e o pudor, nada disso. Eu não permitirei isso, Quer dizer, aqui no show business, pelo menos, quem manda sou eu. Se não for eu, é o Nélson Ned. Mas não pode ser o José Guilherme Merquior".
De Merquior, sobre Caetano:
"Anoto com satisfação duas virtudes ostensivas que transparecem das palavras de Caetano. Em primeiro lugar, a perfeita modéstia (`Mïnha vida tem sentido demais'). Em segundo lugar, a comovente humildade (`No show business, quem manda sou eu'). Quanto ao fundo de sua crítica, creio que há uma pequena retificação a fazer. Não são os ensaístas como eu que estão querendo invadir a área do espetáculo. São os Caetanos da vida que tentam há vários anos usurpar a área do pensamento. A meu ver, com as mais desastrosas conseqüências, já que se trata de pseudo-intelectuais de miolo mole, cujo principal defeito é serem deslumbrados diante dos mitos da contracultura, isto é, o elemento de sub-romantismo mais sovado e furado da ideologia contemporânea. Se Caetano tem raiva de quem estuda, o problema é dele".
"Anoto com satisfação duas virtudes ostensivas que transparecem das palavras de Caetano. Em primeiro lugar, a perfeita modéstia (`Mïnha vida tem sentido demais'). Em segundo lugar, a comovente humildade (`No show business, quem manda sou eu'). Quanto ao fundo de sua crítica, creio que há uma pequena retificação a fazer. Não são os ensaístas como eu que estão querendo invadir a área do espetáculo. São os Caetanos da vida que tentam há vários anos usurpar a área do pensamento. A meu ver, com as mais desastrosas conseqüências, já que se trata de pseudo-intelectuais de miolo mole, cujo principal defeito é serem deslumbrados diante dos mitos da contracultura, isto é, o elemento de sub-romantismo mais sovado e furado da ideologia contemporânea. Se Caetano tem raiva de quem estuda, o problema é dele".
Revista IstoÉ nº 274 - 24/3/1982
Página 48-49
Frases de um amor juvenil
O mais ativo contingente do caetanismo jamais votou, não tem carteira de habilitação, paga meia no cinema e não pôde assistir a O Império dos Sentidos. Está fazendo o colegial - no máximo, cursinho para a faculdade. O IBOPE ainda não foi chamado a conferir oficialmente, mas existe uma suspeita que os donos de lojas de discos, por exemplo, insistem em alimentar: será o caetanismo uma questão de geração? Em outras palavras: será Caetano Veloso uma doença meramente juvenil? ISTOÉ andou, na semana passada, por escolas de São Paulo, auscultando os sintomas dessa poderosa epidemia, e diagnosticou entre moças e rapazes de menos de 20 anos, uma quase completa unanimidade. Todos amam Caetano Veloso. Ou quase todos.
Por formação, há quem, como André Arames, 16 anos, 3o colegial, tinha tudo para desconfiar. "É tudo azul demais", diz André, filho de Aldo Arames, ex-presidente da UNE, ex-guerrilheiro e ex-prisioneiro do DOICODI. Mas André reconhece: "Eu acho que tem uma frase que define Caetano: magia do ser". Na sua maioria, os adeptos dentes-de-leite de Caetano sabem que nem todas as gerações compreendem seu guru. "Lá em casa, ele é `aquele rapaz que fuma maconha e já foi preso"', diz João Cláudio Abreu, 17 anos. "Caetano tem a terrível capacidade de fixar certos aspectos do cotidiano que são fundamentais para cada geração", prossegue Marcos Nobre, 17 anos, filho do deputado federal e ex-líder do PMDB Freitas Nobre.
A juventude aplaude o revolucionário que "consegue ser sempre novo dentro do mesmo estilo", como diz Cristina Medeiros, 16 anos. O desafiador de tabus, o inovador de comportamentos. "Ele dá toques até para a geração dos meus pais", diz Marcos Alencar, 21 anos, vestibulando. "O melhor deles acho que é uma nova visão do homem, da sexualidade masculina. Uma visão sem machismo." André Arames tem suas dúvidas: "Quando você fala em inovação de comportamento, você está-se referindo ao fato de ele ser homossexual?"
Não é, como se vê, um culto incondicional. Todos admiram o poeta ("o maior poeta brasileiro vivo", proclama Marcos Alencar) e o músico. Mas sabem ser críticos, como Flávia Barcellos, 20 anos, vestibulanda de Comunicações, que vê Caetano, como compositor, no mesmo nível de Chico Buarque, Gilberto Gil, Mílton Nascimento e até Arrigo Barnabé. "O que ele é, como músico, é muito estimulante", diz Flávia. "Vai-se renovando, vai simplificando as coisas. Pega uma música floreada, como Eu Sei Que Vou Te Amar, e despe ela até chegar na essência."
Gênio - quem se arrisca a dizer? "Ele é urna pessoa muito próxima das outras, um sacador de cabeças", prefere Bia Villela, 17 anos, 2o colegial. "Gênio é uma coisa meio distante." Marcos Alencar concorda: Caetano traduz sentimentos que estão no ar, ainda sem expressão. "Quando ele -falou `Narciso acha feio o que não é espelho', ele me fez pensar num monte de coisas: sobre o êxodo rural, sobre o cara chegando aqui e não se identificando com o lugar, tanta coisa..."
Essa juventude caetanista é também capaz de achar lindo seu ídolo, e sabe dizer porquê. "Ele não é bonito dentro do tipo padrão, mas ele se acha bonito, é bonito para ele, e as pessoas acabam achando também", explica Maria Elizabeth Rezende, 18 anos, vestibulanda.
Essa juventude caetanista é também capaz de achar lindo seu ídolo, e sabe dizer porquê. "Ele não é bonito dentro do tipo padrão, mas ele se acha bonito, é bonito para ele, e as pessoas acabam achando também", explica Maria Elizabeth Rezende, 18 anos, vestibulanda.
E o Caetano politico? "Eu deploro que ele não tenha um posicionamento claro", diz Marta Nehring, 18 anos, l o ano de medicina, "mas acho que o cara pode ser vanguarda na onda dele, sem ninguém ficar cobrando". Eles, pelo menos, não querem cobrar essas coisas. Cobram, não de Caetano, mas da fervorosa platéia, uma cegueira meio bocó ante as luzes do ídolo. O modismo, como lamenta Álvaro Ancona de Faria, 17 anos, vestibulando de medicina. "O que acontece", diz Álvaro, "é que, por falta de opções políticas e de vida, as pessoas acabam escolhendo alguém para se apoiar e para fantasiar" .
Miguel de Góes, 17 anos, vestibulando de engenharia, chega a dizer que há dois Caetanos; "Um real, que compõe, fala e pensa, e outro que as pessoas inventam, fantasiam". Vera Hamburger, 18 anos, vestibulanda de arquite-tura, irrita-se com a macaqueação. "Num programa de televisão, faz tempo, ele falou um negócio de lavar louça, que gostava, sei lá. De repente, isso virou uma transa: acabou o Canal Livre e foi todo mundo lavar louça, achando lindo."
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