Caetano necessário: cantor e compositor baiano se
mantém contemporâneo
Com obra
marcada por poética refinada e sonoridade revigorante, Caetano Veloso falou ao
Correio sobre seu processo criativo, obras inéditas e parcerias nos palcos
Irlam Rocha Lima
Para o
artista, o gosto pela canção popular está nele desde sempre Foto:
Fernando Young / Divulgação |
Caetano Veloso tinha acabado de gravar um disco, acompanhado pelo clarinetista baiano Ivan Sacerdote. Para lançá-lo, se apresentou em 8 e 9 de fevereiro de 2020, no Teatro Castro Alves, em Salvador. O show seria o ponto de partida de uma turnê que eles fariam por várias capitais brasileiras, inclusive Brasília. Com o advento da pandemia, o projeto foi cancelado. Logo depois, de volta ao Rio de Janeiro, o eterno tropicalista não perdeu tempo e, durante a prolongada quarentena, passou a compor canções, pensando num novo trabalho.
No estúdio que a mulher e empresária, Paula Lavigne, mandou construir em sua casa, na Avenida Niemeyer, na Zona Sul carioca começou a trabalhar. Neste processo em que teve ao seu lado Lucas Nunes, guitarrista da banda Dônica (da qual faz parte Tom Veloso, filho do compositor), e que durou alguns meses, emergiu Meu coco, álbum de 12 faixas — o primeiro de composições inéditas, desde Abraçaço, de 2012 — cujas letras, de alguma forma, refletem a pluralidade e a beleza do país, mesmo num momento difícil de grandes dificuldades.
Uma das primeiras músicas a ser criada foi Autoacalanto, feita para o neto Benjamim, filho de Tom. E foram surgindo outras tantos como Ciclamem do Líbano, Enzo Gabriel, GilGal e, obviamente, a faixa título — um samba, a bela canção romántica Cobre, o funk Não vou deixar e o fado Você, que tem a participação da cantora portuguesa Carminho e do bandolinista brasiliense Hamilton de Holanda. A elas se juntam Noite de cristal, gravada por Maria Bethânia em 1988; e Pardo, faixa do novo CD de Céu.
Todas foram gravadas no primeiro semestre deste ano, contando com a participação de instrumentistas de diferentes gerações — do veterano violoncelista e arranjador Jaques Morelembaum ao jovem violinista Thiago Amud. Em Não vou deixar, veemente, Caetano, contundente manda o necessário recado: “Não vou deixar, não vou deixar, não vou deixar você esculachar com nossa história / É muito amor, é muita luta, é muito gozo / É muita dor, é muita glória”.
Como fizera em outras das suas composições, em algumas das inéditas do Meu coco, Caetano Veloso homenageia o nome de colegas de ofício, do passado e do presente; e de gêneros musicais diversos, fazendo referência a Noel Rosa, Ary Barroso, Tom Jobim, Chico Buarque, Marília Mendonça, AnaVitória, Glória Groove, Baco Exu, Djonga e Ferrugem.
Entrevista / Caetano Veloso
Até que ponto a presença do neto Benjamim em sua casa foi motivadora durante o processo de criação das canções?
Pelo menos até o ponto de eu compor e gravar Autoacalanto.
Ter ficado tanto tempo sem lançar um álbum de composições inéditas lhe
provocava que tipo de sentimento?
Eu não pensava nisso. Fiz o show com meus filhos,
que resultou numa turnê de cerca de dois anos (e que ainda recebe convites).
Canções inéditas deles e a convivência com eles em palcos pelo mundo todo eram
novidade mais do que suficiente para mim. Antes disso, fiz outra turnê
internacional, com Gil, onde havia ao menos uma canção inédita: As camélias
do Quilombo do Leblon. Entre Abraçaço e Meu coco, senti mais
que, ao longo dos anos, tinha feito canções demais. Quase que me educava para
não compor mais muitas coisas.
O fato
de Meu coco ser diversificado em
termos de gêneros foi algo projetado com antecedência, ou isso ocorreu de forma
natural enquanto as músicas iam surgindo?
O
mero fato de eu ter que adiar a feitura do disco e ficado em casa isolado, não
me levou a encontros que produzissem uma banda, uma formação sonora. Também a
(minha) verve de compor caiu nos primeiros meses de 2020, com a pandemia. Fui
retomando aos poucos e terminei decidindo fazer o disco em casa, com Lucas
Nunes, amigo de meu filho Tom. Daqui, chamamos arranjadores diferentes para
orquestrar canções. E as canções também nasceram diferentes. Não eram mais tão
dentro do estilo das do verão baiano. Também sou tradicionalmente um autor de
coisas diversificadas, sem um gênero preponderante. Desde o tropicalismo, que
meus discos exibem mais colagens do que uniformidade. Claro que Jaques
Morelenbaum tem um maior número de arranjos. Ele é o mestre que colaborou
comigo por décadas. Mas me orgulho também de ter chamado Thiago Amud, jovem
compositor, letrista, melodista e arranjador carioca— e o grandioso baiano
Letieres Leite (que faleceu recentemente). Sem falar nas percussões de Márcio
Victor, Vinicius Cantuária e Marcelo Costa. Tem os tambores do candomblé tocados
por meu filho Moreno em GilGal, amparando a minha voz e a voz divina de Dora
Morelenbaum.
O
convite para Lucas Nunes, da Dônica, para trabalhar com você na produção foi
por causa dos conhecimentos técnicos ou da musicalidade dele?
Da
combinação das duas coisas. Ele é da turma de Dora, Tom, Zé Ibarra, Julia
Mestre. Turma novíssima de grande brilho musical.
No disco
você cita, em tom de homenagem, vários colegas de ofício, de diferentes
gerações e estilos. É uma forma de reforçar todo o espectro da música brasileira?
Um
amigo me disse que o disco deveria se chamar Nomes, Nomes. Achei engraçado e
pertinente. Nomes são um tema meu de há muito. Clever boy samba, que compus em Salvador antes de Coração vagabundo ou De manhã, tinha Brigitte, Belmondo,
João Gilberto, Orlandivo... Agora, eu deixei vir à tona os nomes que passaram
por meu coco. Não é uma escolha pensada. Ouço coisas diversas, vejo TVZ, além
de ter na cuca todos os Arys e Noéis e Caymmis, os Pixiguinhas e Jorge Bens,
Djavans. E registrar uma peculiar centralidade de Chico em minha geração.
Na
condição de vovô, é contundente ao criticar, utilizando a letra do rap Não vou deixar, os desmandos que ocorrem no
país atualmente. A crítica é direcionada a alguém especificamente?
A
quem nos oprime.
Seu
gosto pela canção popular o acompanha desde sempre, ou se acentuou de uns
tempos para cá?
Meu
gosto pela canção popular está comigo desde que eu me entendo por gente.
Pequeno, eu já sabia cantar tudo o que ouvia no rádio. Fiquei foi amarrado
profissionalmente a ela. O que pra mim é uma sorte. Meu talento é limitado, se
comparado a colegas meus, mas a vocação é forte.
Que
contribuição deu ao disco a Hamilton de Holanda, músico formado pelo Clube do
Choro de Brasília, ao acompanhá-lo tocando bandolim, como se fosse guitarra
portuguesa, no fado Você-Você, com a
participação de Carminho?
Hamilton
deu contribuição imensa. Grande músico, ele tratou o violão base que eu
apresentei como guia para o que ele fizesse com tão grande cuidado e inspiração
que tudo o que eu tinha feito ali foi salvo e enriquecido pelo talento dele.
Minha decisão de chamá-lo, em vez de um guitarrista lusitano de fado, tornou a
canção mais bonita e mais profunda. Hamilton é um dos maiores músicos do
Brasil. De agora e de sempre.
Você
chegou a estrear o show de lançamento do disco com o clarinetista Ivan
Sacerdote, no Teatro Castro Alves, em fevereiro de 2020, que daria início turnê
nacional, mas foi impedido por conta da pandemia covid 19. Vai haver turnê do Meu coco?
Acho
que agora terei de pensar em apresentar um show referente ao disco Meu coco. Ainda não sei como será. Há
formações diversas no disco. Até o ano que vem, devo achar o jeito de levar
algo do novo repertório aos palcos.
Da angústia à reflexão
O Brasil e o brasileiro estão sob análise. A dicotomia de pensamento tem limitado as discussões e reflexões, muitas vezes mostrando o pior que o ser humano traz em seu caráter. Há uma secessão que marginaliza os que pensam de maneira independente e que está provocando uma nova visão da nossa gente, enterrando a imagem da alegada índole pacífica.
E onde entra Caetano Veloso nessa história? Polemista, com opinião sobre tudo e uma visão única da paisagem social e política, o compositor está de volta — nove anos depois — com um punhado de canções próprias que, sim, têm influência do período de recolhimento forçado, mas que antes de tudo são reflexões bem mais amplas.
Meu coco é a faixa que dá título ao disco e que funciona com espécie de fio condutor para o que vem em seguida, puxando uma fieira de sacadas. A miscigenação das diversas combinações de raças, conceito já condenado pela ciência, funciona como fator de união do país. A melodia é caótica, apressada, transgressora; tem tempos diferentes, com um arranjo que remete aos tempos de Rogério Duprat.
Em Anjos
tronchos ele reflete sobre a condição da dependência das novas tecnologias
e o domínio de candidatos a tiranetes e/ou tarados argentários. “Anjos já mi ou
bi ou trilionários / Comandam só seus mi, bi, trilhões / E nós, quando não somos
otários / Ouvimos Shoenberg, Webern, Cage, canções”, canta na música lançada
antes como single.
A miscigenação racial se encontra com a mistura de ritmos, gêneros e estéticas musicais em Sem samba não dá, em que o compositor iguala manifestações sem qualquer preconceito, enfileirando artistas. É um disco de observação, com versos de qualidade, arranjos impecáveis e melodias fluidas que superam até a falta de rima e não obedecem a cânones consagrados das canções — ou seja, não é um disco para tocar no rádio.
É um Caetano inquieto, um artista que ainda tem
necessidade de expor seus pontos de vista e que o faz de maneira forte,
criativa e provocadora. E sempre ligado à sua época, mas ainda desafinando os
coros colocados nos cantos do ringue, trocando a angústia pela reflexão.
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