Foto: Lucas Lima |
UNIVERSA
Publicado em 28 de setembro de 2018.
Reportagem: Talyta Vespa
Edição: Juliana Linhares
Fotos e Edição de imagens: Lucas
Lima
Direção de Arte: Mariana Romani
Vídeo: Alexandre Moura Souto
Ferreira
"SOU GOSTOSA.
TÔ NA VIBE"
Gal
Costa lança disco, vota em Ciro Gomes, não quer falar sobre sua sexualidade nem
que a droga seja liberada
TALYTA
VESPA E JULIANA LINHARES
Gal Costa tem aneizinhos azuis claro em volta das íris, castanhas. “Se eu tivesse o olho todo azul, já pensou que arraso?”, pergunta a cantora, envolvendo a equipe de Universa com uma fala mansa, um sorriso aberto – com aquela boca – e mexendo os dedos dos pés, que se livram dos sapatos quando ela começa a entrevista.
A cantora está contando sobre o lançamento de “Pele do Futuro”, seu quadragésimo disco, em 53 anos de carreira – “vixi, 50, 51 no máximo, tá querendo me envelhecer? – e enquanto repassa lembranças de carreira e dos 73 anos, as guias de candomblé vermelhas, brancas e azuis grudadas em seu peito fazem um barulhinho. Obaluaê, um de seus orixás, é o deus da terra, da doença, da solidão e do silêncio. O outro, Iansã, é a valente senhora dos ventos e das tempestades. Gal total.
Nesta entrevista, com valentia, ela ataca a homofobia de Jair Bolsonaro (“Ter ódio de um cara só porque ele é travesti é muito estranho. Talvez esse ódio seja uma atração”), e conta das tantas vezes que é chamada de “gostosa” nos shows (“No Canecão, enquanto fazia um solo de rock, sentada toda sexy no piano, um cara gritou ‘libidinoooosa’. Achei maravilhoso”). Mas na hora da conversa que toca em temas caros a ela, Gal gruda na terra. Falar de sua sexualidade, não (“Sou reservada. Ponto final”), não também, sobre a possibilidade de regulamentação das drogas (“É perigoso...Melhor que não liberem por enquanto, tá legal?”)
A “Pele do Futuro” disco traz parcerias com Gilberto Gil, Erasmo Carlos, Marília Mendonça, Silva, Maria Bethânia e outros nomões da MPB. A pele do futuro de Gal vai continuar sinuosa, porque ela adora dançar, lisinha, já que passou duas vezes pelas habilidosas mãos de Ivo Pitanguy e hoje recebe muitos cremes, e fa-tal: “Eu tô sempre na vibe”.
"Libidinoooosa"
Gal tem uma presença sensual. Olha fundo nos olhos do interlocutor, sorri enquanto fala, alisa as mãos, mexe no cabelo e, enquanto faz as fotos para essa matéria, ensaia uma coreografia lenta e sinuosa. “Adoro dançar”, diz para a equipe.
O corpo de Gal, ao longo da história, serviu para protestar, seduzir e chocar. No auge da ditadura, a capa do disco “Índia” trazia um close da região íntima da cantora, coberta apenas por uma tanguinha vermelha e exígua. Os contornos e volumes da área eram altamente provocativos. Na década de 1990, outro vráá: Enquanto cantava num show o refrão "Brasil, mostra a tua cara!”, Gal levantava os braços e deixava à mostra os peitos; lindos, para melhorar tudo. “Não sei por que isso chocou tanto, já tinha aparecido pelada antes”, diz ela, sobre o ensaio nua que fez para a revista Status, em meados dos 80. “Foi polêmico lá atrás, mas eu gosto do resultado, de ver meu corpo jovem, 30, 40 anos. Estava gostosa, é bom ter esse registro”.
Estava, não. Para muita gente, ela é. Em shows, ouve o chamado que, não, ela não considera assédio.
“Gritam
‘ô, gostosa!’ Eu sou gostosa; então neguinho chama ali no auge da empolgação.
Fiz uma apresentação no Canecão e enquanto cantava um solo de rock, sentada
toda sexy no piano, um cara soltou ‘libidinoooosaaaa’. Achei maravilhoso,
adorei. Não é assédio, o cara tava empolgado”
Ciro Gomes,
Bolsonaro e "uma atração"
A fala sossegada de Gal, na cadência, não na potência, não se altera quando ela fala de política. E talvez seja justamente por isso que, quando ela diz “que as pessoas estão votando em Bolsonaro por ódio ao PT; o cara é um voto de ódio”, todos na sala ficam à espera do que mais virá. E vem “ele é racista, homofóbico, grita com mulher. Quem respeita os outros não quer um presidente assim. Ter ódio de um cara só porque ele é travesti é muito estranho. Talvez esse ódio seja uma atração”.
Gal vota em Ciro Gomes, o mesmo candidato do amigo Caetano Veloso, porque ela quer “equilíbrio e harmonia”.
Ela aderiu ao movimento #EleNão, que tomou as redes sociais nos últimos dias. E, claro: “já fui xingada”. A cantora é da cepa dos artistas que se posicionam. “Como dizia Brizola, artista não dá voto, mas tira”.
A
cantora diz estar de olho na luta das mulheres que ajudou a barrar o
crescimento do coiso. No entanto, alerta que os homens precisam participar.
“Todos juntos podemos derrotar uma coisa negativa”
Da maior
importancia
Universa: Você é reservada em relação à sua sexualidade e...
Gal:
Sou. Ponto final.
Universa:
Não posso terminar a pergunta?
Gal:
Não.
A pergunta inteira era: “Você é reservada em relação à sua sexualidade e diz que gosta de manter privada ao menos essa parte da vida. Num momento em que o ódio à orientação sexual das pessoas está tão violento, não pensa em mudar essa posição?”
Gal foi casada com o violonista Marco Pereira durante dois anos, na década de 1990. Teve outros amores importantes e famosos, que marcaram as linhas mestras de seu coração e de sua carreira.
Caetano Veloso -- ele de novo, como não, a amizade é tão profunda que ela é madrinha do filho mais velho dele; como é também de Preta, filha de Gilberto Gil – teve um tesãozinho reprimido por ela; que rendeu, claro, uma música linda.
“Da Maior Importância”, escrita em 1975, diz: “De repente, ser uma coisa tão grande, da maior importância, deve haver uma transa qualquer pra você e pra mim”. A não transa ficou só na canção, porque Gal era a melhor amiga da então mulher de Caetano, Dedé Gadelha.
“Dedé
era ciumenta, embora naquela época tivesse essa história de amor livre. Na
verdade, as pessoas fingiam que não tinham ciúme, né?”
Maior cantora do
país: Elis ou Gal?
São 40 discos, 30 indicações para prêmios, cerca de 480 parcerias e registros de diversos shows em que foi aplaudida por 10, 20, 30 minutos. Nesses 53 anos de carreira -- “50, 51 no máximo, tá me envelhecendo, é?” -- Gal, invariavelmente, é colocada nas listas das melhores cantoras do Brasil.
“Das melhores”, para muita gente, soa injusto. Ela não seria a melhor? “Não vou dizer que sou a maior. Elis Regina falava: 'Eu sou a maior cantora do Brasil. Depois de mim, é a Gal'". Em 1960, quando a viu cantar pela primeira vez, o guru de todos os tropicalistas, João Gilberto, vaticinou: “Você será a maior cantora do Brasil”. “Claro, eu cantava igual a ele”, diz Gal, com um sorriso gaiato.
Aos 73 anos, com um filho adolescente, e doida pra ficar em casa “comendo uma tapioquinha com queijo”, a cantora diz que o tesão para seguir fazendo show, turnê, entrevista e foto é o "amô”. “Sempre quis ser cantora, nunca pensei em ser outra coisa. Amo o que faço. Se eu não fizer mais turnê, vou ficar triste e morrer”.
"Pra que falar 'filho adotivo?' É meu filho, pô!"
A cantora tem um filho, Gabriel, de 13 anos. Ele estuda num dos colégios mais tradicionais de São Paulo, adora jogar PS4 (um videogame, para os não-iniciados em adolescência) e se interessa por música. “Sou louca por ele. É a alegria da minha vida”.
Assim como Regina Casé, que disse à Universa se incomodar quando mencionam que seu filho, Roque, é adotivo (“Ninguém fala 'o filho que veio sem querer' ou 'o filho que a fulana teve por doação de esperma'), Gal também considera a informação pouco carinhosa. “É meu filho, pô! Tem meu cordão umbilical espiritual e isso é mais que suficiente”.
Gabriel chegou à vida de Gal quando tinha dois anos. E o processo do amor foi construído e aprendido como qualquer outro. “Perguntei a uma amiga se ela já amou o filho loucamente no momento em que ele nasceu. Ela me disse que não, que aprendeu a amar. Foi o mesmo que aconteceu em casa”.
Gal foi criada pela mãe porque seu pai abandonou a família. Gabriel também é filho de mãe solo. Ela analisa a falta que a figura do pai causa neles: “Meu pai não fez falta nenhuma. Claro que eu ficava triste porque via minhas colegas com seus pais e eu não tinha um. Ainda assim, me tornei uma mulher corajosa e tive todo o incentivo da minha mãe. Não tem problema algum criar um filho sem pai. Essa coisa de família está mudando; qualquer um pode formar uma família”.
Dores e delicias
“Quando estaba na Itália pela turnê do ‘Gal canta Jobim’ (de 1994), fui aplaudida por meia hora, sem parar, depois que saí do palco. Na Argentina, uma vez, precisei voltar cinco vezes, de tanto que ovacionavam”, relembra Gal.
Entre tantos sucessos, de maneira honesta, Gal relembra um dos momentos baixos de sua carreira. O disco “Cantar”, de 1974, feito depois do tropicalismo, foi considerado suave demais. “Fiquei sem público depois do disco. Foi uma mudança radicalíssima no meu estilo. Saí de turnê e não tinha quase ninguém nos shows. Entrei em crise, fiquei um tempo sem fazer nada depois disso”. Hoje, “Cantar” é um disco cultuado.
O novo álbum, “A Pele do Futuro”, também tem um perfume de suavidade. E Gal, de novo, está no mood de causar. “Não sigo o que o público gosta. Sou uma cantora com histórico de mudanças. Gosto de ser radical. E não é que eu não gosto de cantar doce e manso. Meu canto, por mais que queira ser agressivo, é suave. Sempre tô no mood de causar”.
Na época da novela “Gabriela”, o diretor de TV Daniel Filho a convidou para interpretar o papel principal; ela, que já cantava o tema de abertura da novela. “Tive medo. Achei que não conseguiria ser atriz. Mas poderia ter conseguido. De todo modo, a Sônia Braga fez lindamente”. Arrependimento? Que nada. Só mais uma pitada de cravo e canela na história dela.
Ar
A quem interessar possa: o cabelão preto e cacheado é "lavou, saiu e pá". O corpo, que nessa entrevista dança levinho, enquanto ela faz as fotos, é moldado por ginástica regrada. Gal é das que usam até relógio especial para controlar os treinos.
Terra
O rosto já passou duas vezes pelas mãos de Ivo Pitanguy e, hoje, recebe cremes todas as noites. "Quando jovem, eu passava creme por todo o corpo. Hoje tenho preguiça. Antes de dormir, cuida da pele para que fique jovial"
Céu
O
espírito é cuidado pelos orixás Obaluaê e Iansã. As guias vermelhas, azuis e
brancas penduradas no pescoço refletem essa entrega. A saber: o primeiro é o
orixá que dá cura e doença; o segundo é guerreiro, se mostra nas tempestades.
Drogas: não à
liberação.
Você leu certo
Maconha, cocaína e LSD já passaram por Gal e ela não gostou de nada, diz. “Droga é uma coisa perigosa. Se não tem estrutura emocional, a pessoa pode cair em desgraça”.
As correntes contemporâneas que sustentam que a liberação das drogas pode diminuir a violência causada pelo tráfico não seduzem a cantora. Instada a dizer se é a favor de algum tipo de regulamentação, ela inicia uma tese para, logo depois, mudar tudo. “A única droga que eu acho que pode ser liberada é a Cannabis, porque tem um efeito medicinal importante para pessoas doentes”, raciocina.
“Estou pensando... Tem aquela música: ‘Eu não tenho opinião formada sobre isso’, brinca, parodiando “Metamorfose Ambulante”, de Raul Seixas, para, em seguida, carimbar: “Não. Melhor que não liberem por enquanto, tá legal?”.
Tapioca e Netflix
Gal adora novela das nove, Netflix e alguns esportes. “Um dia desses, assisti à luta entre duas mulheres no UFC. Achei aquilo uma barbaridade. Quem gosta é o Djavan, cansei de ver essas lutas na casa dele”.
E, fazer tudo isso em frente à TV, só fica melhor com “uma tapiooooca com queeeeeijo e geleia diet”. De restaurante, ela tem preguiça, e de cozinha....“não sei cozinhar”.
O que mais cabe na noite de Gal? “Ela é viciada em Instagram!”, entrega seu empresário, e todos gargalham.
“Veja
bem.... Sou muito simples”, diz baby, mexendo com nosso coração vagabundo.
Fotos: Lucas Lima
Gal Costa, lançamento do álbum ‘A Pele do Futuro’, pela gravadora Biscoito Fino.
Fotos: Keiny Andrade/Folhapress
Gal Costa: “O Brasil
encaretou”
Amanda Cavalcanti
Na sexta-feira anterior ao lançamento do disco, no dia 21 de
setembro, conversei com Gal e Marcus para entender como foi o processo de
criação de A Pele do Futuro. A cantora explicou que, além de se
inspirar na dance music, o disco também pretendia ser uma homenagem à Amy
Winehouse, artista de quem Gal é muito fã. Durante o processo criativo, porém, A
Pele acabou tomando vida própria e se transformando num amalgamento de não
só dance music, mas MPB, samba e até baladas românticas.
Isso se mostra no time de compositores que participou do disco. Além de Guilherme Arantes e outros veteranos, tanto da voz de Gal quanto da música brasileira num geral, como Gilberto Gil e Djavan. Mas nomes novos também não estão em falta: além de uma composição de Tim Bernardes (“Realmente Lindo”), A Pele também conta com uma letra de Marília Mendonça, que também participa da faixa “Cuidando de Longe” cantando.
Gal conta que Marília participou do disco a seu pedido. “Marília é uma coisa especial dentro da música sertaneja. Ela tem um canto rasgado, um jeito de compôr muito intuitivo e popular”, fala. “Tive a ideia de chamá-la porque queria cantar uma sofrência como dance music. Queria cantar uma música de sofrimento, mas que ao mesmo tempo que você está cantando, está dançando.”
A cantora também se diz muito fã do feminejo, e enxerga Marília como peça fundamental desse quebra-cabeça. “Só tinha homem, né? Agora as mulheres estão chegando. E ela chegou com tudo, ela é a rainha”, diz.
O feminejo e seu mote da presença, voz e ponto de vista feminino no sertanejo foram uma mudança política sutil, mas importante: um som que era o símbolo perfeito do homem-hétero-padrão brasileiro (e cujos muitos grandes artistas declararam apoio aos “valores tradicionais” do presidenciável Jair Bolsonaro) foi tomado pelas mulheres que falam de infidelidade e amor à sua maneira e se colocam, inclusive, contra esses valores — Marília Mendonça se juntou à campanha #EleNão, contra Bolsonaro (e foi atacada e ameaçada por tal atitude).
De certa forma, essa foi a atuação política que Gal buscou durante algumas décadas de sua carreira, em suas próprias palavras: “Meu jeito de fazer política nunca foi militante. Foi mais do lado transgressor, maneira de vestir, jeito de fazer música. Mais comportamental do que militante. Já apanhei muito e já fui muito elogiada por essa razão, mas é uma coisa que me dá prazer porque se arriscar é importante, revolucionário e renovador pra mim mesma. Quando dá certo, é uma guerra que você vence.”
Mas, comparando a recepção de seus riscos artísticos em outras épocas e a resposta que esses novos artistas recebem hoje, Gal chega a uma conclusão infeliz. “O Brasil encaretou muito. Sempre teve gente careta, mas o mundo está muito esquisito. As pessoas são intolerantes, não respeitam os outros, agressivas”, fala. “Elas têm que aprender a conviver com o amor, com as diferenças e respeitar o outro como ele é e quer ser. O mundo tá parecendo que quer acabar.”
Perguntada se sente influenciada por algum novo artista da música popular brasileira, Gal responde que não, mas que se enxerga em muitos deles. “Minha influência é consequência desses anos todos de carreira que tenho, fiz muita coisa. Tive várias fases e comecei a experimentar coisas diferentes, ousar mais. Cantar diferente de tudo o que eu imaginava que seria a vida inteira”, completa.
A
Pele do Futuro
é nada mais que uma representação de todas essas facetas de Gal e uma
retrospectiva dessas mais de cinco décadas de carreira numa roupagem nova. Além
de, claro, uma imagem palpável da Gal de 2018: a que dança em tempos de crise.
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