O GLOBO
18 AGOSTO 2019
'Não sou contra pais que fumam com os filhos', diz
Gal Costa, sobre maconha
Aos 73 anos e
prestes a lançar DVD, cantora fala sobre pai que nunca conheceu e adoção
Marina Caruso
Gal
usa camisa e calça, ambos Gilda Midani, brincos, pulseiras e anel, todos Sauer,
e sapatos Manolita - Foto: Bob Wolfenson |
Como se não bastassem centenas de
shows, 29 álbuns em estúdio e 11 ao vivo, Gal Costa lança, no próximo dia 13,
seu décimo DVD, gravado durante a turnê de “A pele do futuro”. Até o fim do
ano, a cantora ainda se apresentará em São Paulo, Fortaleza, Natal e no Rio,
mas já está às voltas com o diretor musical Marcus Preto trabalhando em seu
trigésimo álbum. Especula-se que o disco será todo com músicas de Bituca, como
Gal carinhosamente se refere a Milton Nascimento, mas ela não confirma. “Está
muito cedo para falar disso. Vamos deixar acontecer”, desconversa.
Em uma hora de entrevista — depois
de meses de espera, em função da agenda puxada — Gal fala abertamente sobre os
bem vividos 73 anos, a influência de João Gilberto em sua música, o pai que
nunca conheceu e a adoção do filho, Gabriel. Só volta a fazer mistério quando o
assunto é sua vida afetiva. “Sobre o amor eu falo na minha música, não em
entrevistas”, diz. A seguir, os melhores trechos da conversa.
O começo de tudo
“Minha mãe me criou sozinha, foi meu modelo de
mulher, guerreira. Desde criança sempre fui muito responsável. No que se refere
à música, eu vim pronta. Não tinha referências na família. Quando minha mãe
estava grávida, ouvia música todos os dias porque gostaria que o filho — ela
achava que eu era menino — fosse um grande músico. Ouvia a melodia e se
concentrava para influir na gestação. Funcionou. Eu dizia que queria ser
dentista e cobradora de ônibus. Mas no fundo, sabia que seria cantora.”
Vestido e botas, ambos Gucci, brincos Sauer e anel Rodrigo Robson Foto: Bob Wolfenson |
O eco da panela
“Quando comecei a cantar, ouvia muito rádio.
Escutava das cantoras da época a Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro... Mas,
quando ouvi João Gilberto, tudo mudou. Foi um impacto muito grande. Eu devia
ter meus 10 anos. Fiquei fascinada. Reaprendi a cantar. Até então, fazia
intuitivamente. João mudou isso. Exerceu uma influência fortíssima. Passei a
ter noção do uso do diafragma. Treinava canto no banheiro de casa, com uma
panela grande, que minha mãe usava para fazer feijoada. Com o eco do banheiro e
da panela, aprendi a usar o diafragma e segurar a respiração.”
João Gilberto
“Estava na casa de Dedé — ex de Caetano (Veloso)
e mãe de Moreno — e Sandra (Gadelha), ex de Gil e mãe de Preta. Vivia
com as duas. Éramos irmãs. Certa noite, Silvio Lamenha, um cronista social da
Bahia, entrou para falar com tio Líber, pai das meninas. No final da conversa,
ele disse: ‘Então, já vou. Tenho que encontrar João Gilberto’. Eu disse: ‘Pelo
amor de Deus, me leve’. Minha mãe deixou e lá fui eu. Tinha uns 12 anos.
Encontrei João e ele disse: ‘Você é Gracinha, a menina que todo mundo em
Salvador diz que canta bem?’. Eu disse: ‘Sou, João. Gosto muito de você, ouço
demais’. Ele perguntou se eu tinha violão. Quando disse que sim, me mandou
apanhar. Apanhei. Parecia um sonho. Uma hora João disse: ‘Gracinha, cante
Mangueira (“Exaltação à Mangueira”). Qual é o seu tom?’. Eu disse: ‘Lá’.
Ele deu o tom e comecei a cantar. João não falou nada. Pensei: ‘Meu Deus, ele
odiou’. ‘Cante outra, Gracinha.’ Cantei Tom e outras coisas que João gravou,
mas ele não dizia nada, só me mandava cantar... Uma hora parou e disse:
‘Gracinha, você é a maior cantora do Brasil’. Eu era uma menina, nunca tinha
saído da Bahia. Já imaginou o que foi isso?”
Pai ausente
“Quando eu nasci, minha mãe já estava separada do
meu pai. Saí da maternidade para a casa da minha tia. Ela viveu muitos anos com
meu pai, mas nunca engravidou. Depois que se separaram, ele deu uma cantada
nela, a levou para fazenda do meu avô e ela voltou grávida. Nunca nos
relacionamos. Ele faleceu quando eu tinha 14 anos, mas não fui ao enterro. Ele
nunca quis estar comigo vivo, não ia querer conhecê-lo morto. Mas conheço todos
os meus irmãos. São seis, ao todo. Meu pai tinha uma mulher no interior. Quando
ele casou com a minha mãe, já tinha essa mulher e dois dos filhos.”
O filho
“Gabriel chegou para mim com 1 ano e 2 meses. Aos
3, contei a ele que era adotado. Nunca engravidei. Facilitei, mas não
aconteceu. Nos três anos em que fiquei com o Marcos Pereira, violonista, a
gente tentou. Fui averiguar e descobri que minhas trompas eram obstruídas.
Desisti de ter filho, mas era meu sonho ser mãe. Passou um tempão e vi na TV
aquela história horrorosa da mãe que largou a criança recém-nascida na Lagoa de
Pampulha, em BH. Fiquei chocada. Liguei para a Glória Maria e disse: ‘Quero
cuidar dessa criança. Como faço?’. Depois, pensei: ‘Melhor não, é muito
trágico’. Aquilo passou, mas o desejo, não. E fui buscar no Rio uma criança
para adotar. Encontrei Gabriel e me apaixonei. Fui pai e mãe. Ia com ele e babá
para todas as turnês.”
Vestido Coven e botas Gucci - Foto: Bob Wolfenson |
Diálogo
“Já tentei algumas vezes falar sobre sexo com
Gabriel, que está com 14 anos, mas ele não aceita. Uma vez fui falar ‘meu
filho, você está ficando grande’, mas ele já sabia tudo sobre camisinha. E
disse: ‘Mamãe, você está falando de sexo comigo?’, indignado. Expliquei que não
era sobre sexo, mas sobre doenças sexualmente transmissíveis. Ele não gostou.
Outro dia, me pediu uma bateria, mas moro em apartamento. Quando me mudar para
uma casa, monto um estúdio para ele fazer barulho. Sei ser dura, mas acredito
na liberdade. Quanto mais você trouxer seu filho para perto, melhor. Sempre
digo ao Gabriel que, no dia em que ele se apaixonar de verdade por uma garota,
em vez de ir para um motel, venha para casa e durma aqui com ela. Não sou
contra pais que fumam (maconha) com os filhos. Já disse a ele:
‘Olha, meu filho, todo adolescente tem curiosidade com bebidas, cigarro,
maconha. Se você algum dia quiser fazer alguma coisa, faça comigo, perto de
mim’. Falar: ‘Não, você é louco, não pode (solta um vozeirão)’, não
ajuda. Liberdade aproxima.”
Corpo
“Sou vaidosa. Fiz dois liftings com (Ivo) Pitanguy
e ginástica de segunda a sexta, durante 20 anos. Quero envelhecer bem. Só não
faço outro lifting porque Pitanguy não está mais aqui.”
Alma
“Frequento a casa de Mãe Menininha do Gantois desde
a época em que cantei com Bethânia a canção do Caymmi (“Oração de Mãe
Menininha”). Sou filha de Obaluaê e Iansã. Depois de iniciada no Candomblé,
nunca mais me senti sozinha. Tenho muita fé. Acredito muito em outras vidas.
Acho que esse universo tem planetas com habitantes. Já vi nave espacial. Não
gosto de falar porque vão dizer que fiquei maluca, mas uma vez eu vi, estava
até com Gil. Mas se a gente fala, já viu...”
Assédio
“Tive um contrarregra que trabalhou muitos anos
comigo. Tinha um amigo que vivia com ele. Sempre antes de eu entrar em cena, na
época de ‘Índia’ (álbum lançado em 1973), ele dizia: ‘Bom show,
princesa’. Um dia, a gente ia entrar em turnê e alguém da equipe não podia ir.
Falei: ‘Bota o amigo do Edney, que ele sabe o show inteiro’. O garoto se
apaixonou por mim. Aluguei uma casa em Salvador com Gil e Sandra. A gente ia
para a praia em Itapuã e ele ficava só azarando. Um dia, voltei para casa, que
era toda aberta. O cara entrou e se jogou em cima de mim na cama. O quarto de
Sandra e Gil era do lado. Ela tirou o cara na porrada. Mas ele continuou me
seguindo. Ia para o Rio Grande do Sul, ele ia também. Ficava na porta do hotel.
Era um stalker antes dos tempos da internet.”
Instagram e Netflix
“Adoro ficar em casa. Sou tímida, não suporto ir a
festas. Wilma (Petrillo, empresária de Gal) é caseira também.
Gosto mesmo é de ver filme na Net e no Netflix e comer tapioca em casa. Também
curto o Instagram. O meu perfil informa meu trabalho atual, mas também os
momentos mais importantes da minha carreira. Os jovens de hoje adoram ouvir as
coisas da minha geração, graças a Deus (risos). Ouvem até
Chico (Buarque). Segundo Gil, é porque as pessoas sentem falta da
melodia. Hoje é tudo mais ‘tum, tum, tum’ do que melódico. Minha geração é
foda, né? Tem Chico, Gil, Caetano, Bethânia e eu.”
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