miércoles, 17 de mayo de 2023

2019 - GAL 7.3 - A PASSAGEM DO TEMPO

 

O GLOBO

18 AGOSTO 2019


'Não sou contra pais que fumam com os filhos', diz Gal Costa, sobre maconha

Aos 73 anos e prestes a lançar DVD, cantora fala sobre pai que nunca conheceu e adoção


Marina Caruso



Gal usa camisa e calça, ambos Gilda Midani, brincos, pulseiras e anel, todos Sauer, e sapatos Manolita - Foto: Bob Wolfenson 


Como se não bastassem centenas de shows, 29 álbuns em estúdio e 11 ao vivo, Gal Costa lança, no próximo dia 13, seu décimo DVD, gravado durante a turnê de “A pele do futuro”. Até o fim do ano, a cantora ainda se apresentará em São Paulo, Fortaleza, Natal e no Rio, mas já está às voltas com o diretor musical Marcus Preto trabalhando em seu trigésimo álbum. Especula-se que o disco será todo com músicas de Bituca, como Gal carinhosamente se refere a Milton Nascimento, mas ela não confirma. “Está muito cedo para falar disso. Vamos deixar acontecer”, desconversa.

Em uma hora de entrevista — depois de meses de espera, em função da agenda puxada — Gal fala abertamente sobre os bem vividos 73 anos, a influência de João Gilberto em sua música, o pai que nunca conheceu e a adoção do filho, Gabriel. Só volta a fazer mistério quando o assunto é sua vida afetiva. “Sobre o amor eu falo na minha música, não em entrevistas”, diz. A seguir, os melhores trechos da conversa.


O começo de tudo

“Minha mãe me criou sozinha, foi meu modelo de mulher, guerreira. Desde criança sempre fui muito responsável. No que se refere à música, eu vim pronta. Não tinha referências na família. Quando minha mãe estava grávida, ouvia música todos os dias porque gostaria que o filho — ela achava que eu era menino — fosse um grande músico. Ouvia a melodia e se concentrava para influir na gestação. Funcionou. Eu dizia que queria ser dentista e cobradora de ônibus. Mas no fundo, sabia que seria cantora.”


Vestido e botas, ambos Gucci, brincos Sauer e anel Rodrigo Robson 
 Foto: Bob Wolfenson



O eco da panela

“Quando comecei a cantar, ouvia muito rádio. Escutava das cantoras da época a Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro... Mas, quando ouvi João Gilberto, tudo mudou. Foi um impacto muito grande. Eu devia ter meus 10 anos. Fiquei fascinada. Reaprendi a cantar. Até então, fazia intuitivamente. João mudou isso. Exerceu uma influência fortíssima. Passei a ter noção do uso do diafragma. Treinava canto no banheiro de casa, com uma panela grande, que minha mãe usava para fazer feijoada. Com o eco do banheiro e da panela, aprendi a usar o diafragma e segurar a respiração.”

João Gilberto

“Estava na casa de Dedé — ex de Caetano (Veloso) e mãe de Moreno — e Sandra (Gadelha), ex de Gil e mãe de Preta. Vivia com as duas. Éramos irmãs. Certa noite, Silvio Lamenha, um cronista social da Bahia, entrou para falar com tio Líber, pai das meninas. No final da conversa, ele disse: ‘Então, já vou. Tenho que encontrar João Gilberto’. Eu disse: ‘Pelo amor de Deus, me leve’. Minha mãe deixou e lá fui eu. Tinha uns 12 anos. Encontrei João e ele disse: ‘Você é Gracinha, a menina que todo mundo em Salvador diz que canta bem?’. Eu disse: ‘Sou, João. Gosto muito de você, ouço demais’. Ele perguntou se eu tinha violão. Quando disse que sim, me mandou apanhar. Apanhei. Parecia um sonho. Uma hora João disse: ‘Gracinha, cante Mangueira (“Exaltação à Mangueira”). Qual é o seu tom?’. Eu disse: ‘Lá’. Ele deu o tom e comecei a cantar. João não falou nada. Pensei: ‘Meu Deus, ele odiou’. ‘Cante outra, Gracinha.’ Cantei Tom e outras coisas que João gravou, mas ele não dizia nada, só me mandava cantar... Uma hora parou e disse: ‘Gracinha, você é a maior cantora do Brasil’. Eu era uma menina, nunca tinha saído da Bahia. Já imaginou o que foi isso?”

Pai ausente

“Quando eu nasci, minha mãe já estava separada do meu pai. Saí da maternidade para a casa da minha tia. Ela viveu muitos anos com meu pai, mas nunca engravidou. Depois que se separaram, ele deu uma cantada nela, a levou para fazenda do meu avô e ela voltou grávida. Nunca nos relacionamos. Ele faleceu quando eu tinha 14 anos, mas não fui ao enterro. Ele nunca quis estar comigo vivo, não ia querer conhecê-lo morto. Mas conheço todos os meus irmãos. São seis, ao todo. Meu pai tinha uma mulher no interior. Quando ele casou com a minha mãe, já tinha essa mulher e dois dos filhos.”

O filho

“Gabriel chegou para mim com 1 ano e 2 meses. Aos 3, contei a ele que era adotado. Nunca engravidei. Facilitei, mas não aconteceu. Nos três anos em que fiquei com o Marcos Pereira, violonista, a gente tentou. Fui averiguar e descobri que minhas trompas eram obstruídas. Desisti de ter filho, mas era meu sonho ser mãe. Passou um tempão e vi na TV aquela história horrorosa da mãe que largou a criança recém-nascida na Lagoa de Pampulha, em BH. Fiquei chocada. Liguei para a Glória Maria e disse: ‘Quero cuidar dessa criança. Como faço?’. Depois, pensei: ‘Melhor não, é muito trágico’. Aquilo passou, mas o desejo, não. E fui buscar no Rio uma criança para adotar. Encontrei Gabriel e me apaixonei. Fui pai e mãe. Ia com ele e babá para todas as turnês.”


Vestido Coven e botas Gucci - Foto: Bob Wolfenson



Diálogo

“Já tentei algumas vezes falar sobre sexo com Gabriel, que está com 14 anos, mas ele não aceita. Uma vez fui falar ‘meu filho, você está ficando grande’, mas ele já sabia tudo sobre camisinha. E disse: ‘Mamãe, você está falando de sexo comigo?’, indignado. Expliquei que não era sobre sexo, mas sobre doenças sexualmente transmissíveis. Ele não gostou. Outro dia, me pediu uma bateria, mas moro em apartamento. Quando me mudar para uma casa, monto um estúdio para ele fazer barulho. Sei ser dura, mas acredito na liberdade. Quanto mais você trouxer seu filho para perto, melhor. Sempre digo ao Gabriel que, no dia em que ele se apaixonar de verdade por uma garota, em vez de ir para um motel, venha para casa e durma aqui com ela. Não sou contra pais que fumam (maconha) com os filhos. Já disse a ele: ‘Olha, meu filho, todo adolescente tem curiosidade com bebidas, cigarro, maconha. Se você algum dia quiser fazer alguma coisa, faça comigo, perto de mim’. Falar: ‘Não, você é louco, não pode (solta um vozeirão)’, não ajuda. Liberdade aproxima.”

Corpo

“Sou vaidosa. Fiz dois liftings com (Ivo) Pitanguy e ginástica de segunda a sexta, durante 20 anos. Quero envelhecer bem. Só não faço outro lifting porque Pitanguy não está mais aqui.”

Alma

“Frequento a casa de Mãe Menininha do Gantois desde a época em que cantei com Bethânia a canção do Caymmi (“Oração de Mãe Menininha”). Sou filha de Obaluaê e Iansã. Depois de iniciada no Candomblé, nunca mais me senti sozinha. Tenho muita fé. Acredito muito em outras vidas. Acho que esse universo tem planetas com habitantes. Já vi nave espacial. Não gosto de falar porque vão dizer que fiquei maluca, mas uma vez eu vi, estava até com Gil. Mas se a gente fala, já viu...”

Jaqueta À La Garçonne na NK Store, brincos Sauer e anéis Tiffany & Co.


Edição de moda: Patricia Tremblais

Beleza: Everson Rocha

Assistência de fotografia: Alexandre Kok Martins, Ana Pazian e Gabriel Cicconi

Produção executiva: Matheus Martins

Tratamento de imagem: RG Imagem

Foto: Bob Wolfenson




Assédio

“Tive um contrarregra que trabalhou muitos anos comigo. Tinha um amigo que vivia com ele. Sempre antes de eu entrar em cena, na época de ‘Índia’ (álbum lançado em 1973), ele dizia: ‘Bom show, princesa’. Um dia, a gente ia entrar em turnê e alguém da equipe não podia ir. Falei: ‘Bota o amigo do Edney, que ele sabe o show inteiro’. O garoto se apaixonou por mim. Aluguei uma casa em Salvador com Gil e Sandra. A gente ia para a praia em Itapuã e ele ficava só azarando. Um dia, voltei para casa, que era toda aberta. O cara entrou e se jogou em cima de mim na cama. O quarto de Sandra e Gil era do lado. Ela tirou o cara na porrada. Mas ele continuou me seguindo. Ia para o Rio Grande do Sul, ele ia também. Ficava na porta do hotel. Era um stalker antes dos tempos da internet.”

Instagram e Netflix

“Adoro ficar em casa. Sou tímida, não suporto ir a festas. Wilma (Petrillo, empresária de Gal) é caseira também. Gosto mesmo é de ver filme na Net e no Netflix e comer tapioca em casa. Também curto o Instagram. O meu perfil informa meu trabalho atual, mas também os momentos mais importantes da minha carreira. Os jovens de hoje adoram ouvir as coisas da minha geração, graças a Deus (risos). Ouvem até Chico (Buarque). Segundo Gil, é porque as pessoas sentem falta da melodia. Hoje é tudo mais ‘tum, tum, tum’ do que melódico. Minha geração é foda, né? Tem Chico, Gil, Caetano, Bethânia e eu.”

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