Uma Noite em 67
Direção: Renato Terra e Ricardo Calil
Em cartaz no "É Tudo Verdade 2010"
15º Festival Internacional de Documentários
Direção: Renato Terra e Ricardo Calil
Em cartaz no "É Tudo Verdade 2010"
15º Festival Internacional de Documentários
Sessões:
8 de abril de 2010, 21h - Espaço Unibanco de Cinema (SP)
9 de abril de 2010, 21h - Espaço Unibanco de Cinema (SP)
10 de abril de 2010, 15h - Espaço Unibanco de Cinema (SP)
15 de abril de 2010, 19h - Unibanco Artplex (RJ)
DIRETORES
DE "UMA NOITE EM 67" FALAM SOBRE O DOCUMENTÁRIO QUE ESTÁ ENCANTANDO
FÃS DE MÚSICA E CINEMA
Planeta Tela
Chega aos cinemas o documentário "Uma Noite em 67", dirigido a
quatro mãos por Ricardo Calil e Renato Terra. Produzido pela Video Filmes e
pela Record Entretenimento, o filme relembra, em detalhes, a inesquecível final
do Festival da Música Popular Brasileira de 1967, uma reunião histórica de
alguns dos maiores nomes na nossa MPB.
Celso Sabadin conversou com os diretores do documentário.
SABADIN - O filme me emocionou muito, pois me lembro com detalhes daquela histórica noite de 1967. Lembro-me inclusive que quando o cantor e compositor Sérgio Ricardo quebrou seu violão, antes de atirá-lo sobre a plateia, ele chamou o público e o Brasil de "subdesenvolvidos". Ao vivo. A cena foi muito marcante, tanto que, durante um bom tempo após isso, Ronald Golias a reproduzia caricata e divertidamente no programa humorísitco "Família Trapo", engolindo rapidamente as sílabas da palavra "subdesenvolvido", que a ditadura da época não permitia.
A pergunta é: não sobrou nenhum pedaço de VT, de filme ou de gravação sonora, nada que contenha este momento específico do desabafo de Sérgio Ricardo? A ditadura da época foi eficiente o suficiente para não deixar nenhum vestígio para os dias de hoje?
RENATO E RICARDO - Ótima memória, Celso. Nas várias fitas do festival de 1967 que existem na Record (os filmetes acabaram originando diversas Betas), não encontramos o pedaço desse episódio - que foi relatado na autobiografia do Sérgio Ricardo e em alguns outros livros sobre o período. Se foi a ditadura? Não dá para afirmar. Mas há uma outra curiosidade que talvez alimente a tese: a apresentação do Geraldo Vandré nesse festival, com "Ventania", é a única música que não encontramos nas fitas da Record, entre as 12 finalistas.
SABADIN - Num momento em que existem vários documentários sobre personalidades do mercado musical, achei o recorte de enfocar uma única data, uma única noite, simplesmente genial. Como surgiu a ideia?
RENATO E RICARDO - Na ideia original (que o Renato Terra teve sete anos atrás), seria um filme sobre a grande era dos festivais (de 1965 a 1972, na definição do Zuza Homem de Mello). Logo ficou claro que seria amplo demais, com mais de uma dezena de festivais divididos entre Excelsior, Record e Festival Internacional da Canção. Pensamos em vários enfoques e chegamos à conclusão que deveríamos nos concentrar no festival que foi o mais rico musicalmente. A princípio, seria um filme sobre 67, mas que falaria um pouco do que veio antes e depois. Na montagem, decidimos nos concentrar só em 67. Depois, só na noite na final. E, depois, preferimos nos focar mais em seis músicas. A gente não queria fazer um catálogo sobre o evento, passar superficialmente pelas músicas e situações. Mas sim, de alguma forma, tentar passar a experiência daquela noite, usar as músicas na íntegra, aproveitar os bastidores, ter apenas depoimentos na primeira pessoa. Isso foi possível pelo recorte bem específico.
SABADIN - Todas as cenas de arquivo exibidas no filme são as transmitidas pela Record. Não houve nenhum outro registro de imagens em movimento (inclusive coloridas) de algum cineasta amador, por exemplo, que a produção tivesse acesso? Ou isto não seria relevante ao documentário?
RENATO E RICARDO - Adoraríamos ter outros registros, mas não encontramos na pesquisa. Nas cenas de bastidores, você percebe um cinegrafista filmando os artistas com câmera na mão. Fomos atrás da trilha, mas ela deu em becos sem saída. Há uma única cena de arquivo que não é da Record: as imagens da passeata contra a guitarra elétrica, que conseguimos na Cinemateca Brasileira - e que nós jamais havíamos visto.
SABADIN - O fato do filme ser co-produzido pela Record gerou algum tipo de orientação específica do Grupo, como algum assunto a ser evitado, algum nome a ser esquecido ou coisa parecida? (Desculpe por favor se a pergunta parece um pouco inadequada, mas todos conhecemos as bases e origens da Igreja Universal).
RENATO E RICARDO - Não houve orientações específicas, ou mesmo gerais, da Record. Nós tivemos absoluta liberdade para fazer o filme que queríamos.
SABADIN - Existem novos projetos de vocês para a realização de outros documentários no estilo?
RENATO E RICARDO - Por enquanto, só existe o desejo de continuar realizando documentários, e conversas muito incipientes entre nós dois sobre algumas ideias. Há também a vontade de aproveitar de alguma forma o enorme material que colhemos e deixamos de fora por conta do enfoque específico. Mas já posso adiantar que o DVD de "Uma Noite em 67" terá extras maravilhosos.
Celso Sabadin conversou com os diretores do documentário.
SABADIN - O filme me emocionou muito, pois me lembro com detalhes daquela histórica noite de 1967. Lembro-me inclusive que quando o cantor e compositor Sérgio Ricardo quebrou seu violão, antes de atirá-lo sobre a plateia, ele chamou o público e o Brasil de "subdesenvolvidos". Ao vivo. A cena foi muito marcante, tanto que, durante um bom tempo após isso, Ronald Golias a reproduzia caricata e divertidamente no programa humorísitco "Família Trapo", engolindo rapidamente as sílabas da palavra "subdesenvolvido", que a ditadura da época não permitia.
A pergunta é: não sobrou nenhum pedaço de VT, de filme ou de gravação sonora, nada que contenha este momento específico do desabafo de Sérgio Ricardo? A ditadura da época foi eficiente o suficiente para não deixar nenhum vestígio para os dias de hoje?
RENATO E RICARDO - Ótima memória, Celso. Nas várias fitas do festival de 1967 que existem na Record (os filmetes acabaram originando diversas Betas), não encontramos o pedaço desse episódio - que foi relatado na autobiografia do Sérgio Ricardo e em alguns outros livros sobre o período. Se foi a ditadura? Não dá para afirmar. Mas há uma outra curiosidade que talvez alimente a tese: a apresentação do Geraldo Vandré nesse festival, com "Ventania", é a única música que não encontramos nas fitas da Record, entre as 12 finalistas.
SABADIN - Num momento em que existem vários documentários sobre personalidades do mercado musical, achei o recorte de enfocar uma única data, uma única noite, simplesmente genial. Como surgiu a ideia?
RENATO E RICARDO - Na ideia original (que o Renato Terra teve sete anos atrás), seria um filme sobre a grande era dos festivais (de 1965 a 1972, na definição do Zuza Homem de Mello). Logo ficou claro que seria amplo demais, com mais de uma dezena de festivais divididos entre Excelsior, Record e Festival Internacional da Canção. Pensamos em vários enfoques e chegamos à conclusão que deveríamos nos concentrar no festival que foi o mais rico musicalmente. A princípio, seria um filme sobre 67, mas que falaria um pouco do que veio antes e depois. Na montagem, decidimos nos concentrar só em 67. Depois, só na noite na final. E, depois, preferimos nos focar mais em seis músicas. A gente não queria fazer um catálogo sobre o evento, passar superficialmente pelas músicas e situações. Mas sim, de alguma forma, tentar passar a experiência daquela noite, usar as músicas na íntegra, aproveitar os bastidores, ter apenas depoimentos na primeira pessoa. Isso foi possível pelo recorte bem específico.
SABADIN - Todas as cenas de arquivo exibidas no filme são as transmitidas pela Record. Não houve nenhum outro registro de imagens em movimento (inclusive coloridas) de algum cineasta amador, por exemplo, que a produção tivesse acesso? Ou isto não seria relevante ao documentário?
RENATO E RICARDO - Adoraríamos ter outros registros, mas não encontramos na pesquisa. Nas cenas de bastidores, você percebe um cinegrafista filmando os artistas com câmera na mão. Fomos atrás da trilha, mas ela deu em becos sem saída. Há uma única cena de arquivo que não é da Record: as imagens da passeata contra a guitarra elétrica, que conseguimos na Cinemateca Brasileira - e que nós jamais havíamos visto.
SABADIN - O fato do filme ser co-produzido pela Record gerou algum tipo de orientação específica do Grupo, como algum assunto a ser evitado, algum nome a ser esquecido ou coisa parecida? (Desculpe por favor se a pergunta parece um pouco inadequada, mas todos conhecemos as bases e origens da Igreja Universal).
RENATO E RICARDO - Não houve orientações específicas, ou mesmo gerais, da Record. Nós tivemos absoluta liberdade para fazer o filme que queríamos.
SABADIN - Existem novos projetos de vocês para a realização de outros documentários no estilo?
RENATO E RICARDO - Por enquanto, só existe o desejo de continuar realizando documentários, e conversas muito incipientes entre nós dois sobre algumas ideias. Há também a vontade de aproveitar de alguma forma o enorme material que colhemos e deixamos de fora por conta do enfoque específico. Mas já posso adiantar que o DVD de "Uma Noite em 67" terá extras maravilhosos.
1º lugar: PONTEIO (Edu Lobo/Capinan) Edu Lobo / Marília Medalha / Quarteto Novo / Momento Quatro. Arreglos de Airto Moreira
Prêmio Melhor Letra: A ESTRADA E O VIOLEIRO (Sidney
Miller) Nara Leão y Sidney Miller
|
BOM DIA (Nana Caymmi/Gilberto Gil) Nana
Caymmi
A ESTRADA E O VIOLEIRO (Sidney Miller) Nara Leão y Sidney Miller
VENTANIA [De como um homem perdeu seu cavalo e continuou andando] (Hilton Acioly/Geraldo Vandré) Geraldo Vandré
1967
III FESTIVAL DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
AS 12 FINALISTAS (Inclusive a 1ª classificada)
Teatro Record-Centro
[Varios intérpretes]
Chantecler LP CMG 2489
Lado A
1. PONTEIO (Edu Lobo/José Carlos Capinam) Joelma & Carlos Cezar
2. BOM DIA (Nana Caymmi/Gilberto Gil) Mariana Porto de Aragão
3. RODA VIVA (Chico Buarque) José Augusto
4. A ESTRADA E O VIOLEIRO (Sidney Miller) Maria Helena y Marcelo Duram
5. O CANTADOR (Dori Caymmi/Nelson Motta) Nalva Aguiar
6. SAMBA DE MARIA (Francis Hime/Vinícius de Moraes) Simoney
7. UMA DÚZIA DE ROSAS (Carlos Imperial) Rosa Miyake
Lado B
1. DOMINGO NO PARQUE (Gilberto Gil) Reginaldo Rossi
2. ALEGRIA ALEGRIA (Caetano Veloso) Toni Ricardo
3. VENTANIA [De como um homem perdeu o seu cavalo e continuou andando] (Hilton Accioly/Geraldo Vandré) Edmundo Damatta
4. GABRIELA (Maranhão) José Augusto
5. MARIA, CARNAVAL E CINZAS (Luíz Carlos Paraná) Roberto Barreiros
6. BETO BOM DE BOLA (Sérgio Ricardo) Marcelo Duram
7. VOLTA AMANHÃ (Fernando César/Mariá Brito) Giane
2010
UMA
NOITE EM 67
Brasil
85 minutos
Documental
Dirección: Renato Terra y Ricardo Calil
Coproducción:
VideoFilmes, Record Entetenimento, BNDES
Producción: Beth Accioly
Coordinación
de producción: Bianca Costa
Dirección de Fotografía: Jacques Cheuiche
Investigación:
Antônio Venâncio
Sonido:
Valéria Ferro
Elenco: Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo,
Gilberto Gil, MPB4, Paulo Machado de Carvalho, Roberto Carlos, Sérgio Cabral,
Sérgio Ricardo, Solano Ribeiro, Zuza Homem de Melo
TERRA, Renato Terra, CALIL, Ricardo. Uma
Noite Em 67 - entrevistas completas com os artistas que marcaram a era dos
Festivais. Planeta. 296 pág.
13 de Maio de 2013
Livro complementa
documentário sobre o festival que mudou a música
O documentário Uma Noite em 67, lançado em 2010, focalizou o III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, cujos vencedores foram Edu Lobo e Marília Medalha com a canção “Ponteio”. Nele participaram Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gilberto Gil, MPB4, Os Mutantes, Chico Buarque, Sergio Ricardo, Nara Leão e outros.
O documentário Uma Noite em 67, lançado em 2010, focalizou o III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, cujos vencedores foram Edu Lobo e Marília Medalha com a canção “Ponteio”. Nele participaram Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gilberto Gil, MPB4, Os Mutantes, Chico Buarque, Sergio Ricardo, Nara Leão e outros.
O evento foi fundamental para a cultura
brasileira: lançou as raízes para o tropicalismo e fincou a bandeira da
emergente MPB. Quem achou o documentário curto vai se interessar pelo
livro-irmão, que traz a íntegra dos depoimentos colhidos pelos diretores Terra
e Kalil junto a artistas e organizadores, incluindo gente que ficou de fora do
filme. Dentre outros assuntos, os envolvidos falam do clima político da época e
das rivalidades existentes entre os artistas.
2010
Revista BRAVO!
n° 156 - Agosto
Uma noite em 67 - O festival que mudou tudo
O ótimo documentário ''Uma
Noite em 67'' não se limita a retratar o surgimento da mais talentosa geração
da música brasileira. Ele mostra como um mundo novo soterrou um Brasil velho
Por André Nigri
Existem momentos em que é preciso mudar tudo para que tudo continue
igual." A famosa frase do Príncipe de Salina, protagonista do romance O
Leopardo, do italiano Giuseppe di Lampedusa, expressa o desencanto do
personagem em relação a uma área específica: a política. No mundo da cultura,
no entanto, a máxima não se aplica. Existem momentos em que tudo muda, mas muda
mesmo - um mundo novo surge e, com força devastadora, transforma o antigo numa
pilha de escombros. Na área da cultura pop, isso vem acontecendo agora, em que
todo um sistema calcado na atuação das gravadoras foi destruído pela internet,
que alterou completamente as regras de produção e distribuição de música. Um
marco dessa revolução ocorreu em 15 de junho de 2009, quando a maior loja de
CDs do mundo, a Virgin de Nova York - que chegara a vender 785 milhões de
cópias num único ano, 2000 -, fechou as portas por falta de compradores. Outro
momento de mudança radical se deu na metade dos anos 60 do século 20. Mais uma
vez, uma inovação tecnológica estava na raiz da mudança: a televisão. A caixa
com imagens que se moviam, criada nos anos 40 nos Estados Unidos, atingiu o
poder pleno nos anos 60 e alterou radicalmente as regras da música -
engendrando um novo tipo de artista e um novo tipo de público.
Um documentário que entra em cartaz neste mês reconstitui o dia que se tornaria o marco dessa revolução no Brasil. Uma Noite em 67 traz imagens vibrantes de 21 de outubro de 1967, além de depoimentos inéditos. Nesta data, ocorreu a final do 3º Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, no Teatro Paramount, em São Paulo. O filme faz mais do que contar a história daquele que ficou famoso como o melhor festival de todos os tempos - para ter uma ideia da magnitude da nova geração que surgia, os cinco primeiros lugares ficaram com ninguém menos do que Edu Lobo (com Ponteio), Gilberto Gil e Mutantes (com Domingo no Parque), Chico Buarque (com Roda Viva), Caetano Veloso (com Alegria, Alegria) e Roberto Carlos (com Maria, Carnaval e Cinzas). Mais do que alinhavar fatos, o documentário dirigido por Ricardo Calil e Renato Terra dá a exata dimensão da revolução em curso. Pode dizer que o Festival de 1967 da TV Record dividiu a música brasileira em antes e depois. Ficaram para trás os cantores que usavam terno e smoking, os intérpretes que apenas cantavam o amor e os fãs que idolatravam seus ídolos a distância. Entraram em cena roupas coloridas, compositores que, seguindo Bob Dylan, queriam provar que era possível falar sobre qualquer assunto, e fãs que iam muito além da idolatria. Mais do que adorar seus ídolos, queriam saber o que eles pensavam e o que vestiam - para, em última análise, ser como eles.
Essa revolução fica patente no filme não apenas nas imagens dos músicos se apresentando, mas também nas entrevistas de bastidores, que mostram a estranheza que esse novo mundo causava nos repórteres Randal Juliano e Cidinha Campos - representantes do que, para usar uma gíria da época, seria o suprassumo do Brasil "careta". É hilário, e emblemático, o diálogo em que Randal pergunta a Caetano Veloso o que significa exatamente o termo "pop". Randal claramente não entendeu a resposta, mas nem precisaria fazer a pergunta se olhasse para o lado e prestasse atenção na explosão de cores à sua volta. Desobedecendo a tradição, Caetano se apresentou no festival com um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê laranja-vivo. Os argentinos que o acompanhavam, integrantes do grupo Beat Boys, irromperam em cena de cabelos longos, roupas cor-de-rosa-choque e guitarras elétricas. Gilberto Gil, em Domingo no Parque, usava blazer marrom e camisa branca. Até Edu Lobo, representante do bloco mais comportado, ousou um pouco: camisa de gola rulê preta e casaco azulado.
Os fantásticos depoimentos obtidos pelos cineastas - todos os personagens importantes relembram o festival, a começar pelos cinco vencedores - também são fundamentais para enxergar a época com os olhos de hoje. BRAVO! pinçou três momentos do filme representativos das mudanças em curso e resolveu detalhá-los nesta reportagem, com o intuito de melhor entender a mudança de bastão pela qual passava a música brasileira. O primeiro foi uma inacreditável passeata contra a guitarra, da qual muitos artistas e intelectuais participaram - entre eles, o jornalista Sérgio Cabral, pai do atual governador do Rio de Janeiro, que no filme reconhece ter perdido o senso do ridículo. O segundo, uma crise de Gilberto Gil momentos antes de subir ao palco para defender seu Domingo no Parque. O terceiro, as imagens recorrentes das fãs na plateia, representadas aqui por uma moça que teve a divertida ideia de usar uma camiseta estampada com a letra U - vogal da vaia. O zoom sobre esses três momentos mostra os três principais elementos da revolução: o aumento do poder da TV, o surgimento de um novo tipo de ídolo e o fã participativo que lhe correspondia.
1 - Um "Big Brother" versão anos 60
Sérgio Cabral tinha razão em ficar envergonhado. Com tantas causas importantes para abraçar - entre elas a defesa da democracia, ameaçada por uma ditadura militar em vias de recrudescimento e por guerrilheiros que queriam chegar ao poder usando a luta armada -, artistas e intelectuais se reuniram no dia 26 de junho de 1967 para fazer passeata contra um inofensivo instrumento musical. O bizarro evento ocorreu na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo. Numa janela do Hotel Danúbio, com vista para a avenida, Caetano Veloso e Nara Leão olhavam desolados o que ocorria, mortos de vergonha alheia.
O que parecia um evento de alto teor político - o pobre instrumento de seis cordas representaria a dominação da cultura estrangeira sobre a música brasileira - era, na verdade, uma jogada de marketing orquestrada pela televisão. Todos os artistas importantes da época eram contratados pela TV Record e tinham programas no ar. Entre eles, Jovem Guarda, com Roberto e Erasmo Carlos, O Fino da Bossa, com Elis Regina e Jair Rodrigues, e Esta Noite Se Improvisa, com Caetano Veloso e Chico Buarque. Antes da explosão das telenovelas, eles eram os verdadeiros campeões de audiência. A principal estrela da companhia era Elis Regina, conhecida como "pimentinha". Na metade dos 60, no entanto, sua audiência estava em baixa. Roberto Carlos, o líder na TV e representante da corrente que se opunha a Elis, tinha vários corpos de vantagem em relação a ela.
Para turbinar sua principal estrela, a direção da Record convocou o elenco da emissora para a abertura de um novo programa de TV ancorado por Elis, batizado de Frente Única - Noite da Música Popular Brasileira. Ficou combinado que todo mundo apareceria na estreia, cujos ingressos foram disputados a tapa pelos fãs que acorreram ao Teatro Record Centro, na noite de 26 de junho de 1967. O primeiro programa explodiu. Mas o fôlego da Frente Única mostrou-se curto. Depois de dois programas, a audiência já havia caído para índices irrisórios. Para mobilizar a opinião pública e reerguer a atração, Paulo Machado de Carvalho Filho, diretor da emissora, resolveu organizar a já referida passeata. Reuniu em seu escritório, entre outros, Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Nara Leão e Gilberto Gil - que levou Caetano Veloso com a condição de que ele ficasse calado.
Assim, no dia 17 de julho, o elenco da emissora saiu às ruas seguido por algumas centenas de populares para um evento "de ares cívicos", como lembra Zuza Homem de Mello, técnico de som do festival e o principal historiador do período - ele é autor do fundamental A Era dos Festivais: Uma Parábola. Tendo à frente a banda da Força Pública e uma vistosa faixa onde se lia "Frente Única - Música Popular Brasileira", a turma integrada por Elis, Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Vandré, o sambista Zé Kéti e os integrantes do MPB-4 formava o pelotão de frente. Logo atrás, vinha uma multidão, que gritava: "Abaixo a guitarra elétrica!" A passeata só não repercutiu mais porque, na véspera, o general Castelo Branco, primeiro da fieira de ditadores da safra de 64, havia morrido. De todo modo, o protesto entrou para a história como um episódio patético.
A passeata, no entanto, tinha tudo a ver com o marketing que a emissora desenvolvia para os festivais. Em seu depoimento em Uma Noite em 67, Paulo Machado de Carvalho Filho diz que pensava na atração como uma espécie de arena ou novela, em que mocinhos - como Chico Buarque e Roberto Carlos - se digladiavam com vilões (talvez Sérgio Ricardo, que, vaiado enquanto tentava tocar sua música Beto Bom de Bola, irritou-se com o público e atirou o violão na plateia). De certo modo, a concepção do diretor da Record é a mesma dos reality shows dos dias de hoje, como o Big Brother. Talvez a comparação seja exagerada, mas foi justamente nessa época que a curiosidade do público pela vida íntima dos artistas começou a aumentar. Em meados da década de 1960, a Editora Abril lançou a revista Intervalo, dedicada às estrelas. Até o início dos anos 70 (que marca a inédita escalada da indústria de discos com artistas nacionais em vendagens altíssimas), a revista estampava na maioria de suas capas astros da música. Ou seja: eram os cantores e compositores as celebridades da época, e não os artistas de TV e de cinema, como hoje.
Voltando à passeata contra a guitarra: é no mínimo curioso que Gilberto Gil, que meses mais tarde iria escandalizar os puristas com as guitarras dos Mutantes em Domingo no Parque, estivesse ali. Isso ocorreu por duas razões: a convocação da TV Record e a amizade com vários dos artistas que participaram do evento, notadamente Elis Regina, com quem o cantor nutria um relacionamento especial e carinhoso. A proximidade com Elis, que precisava turbinar a audiência de seu programa, fez com que Gil ignorasse os conselhos de outro amigo, Caetano Veloso. O fato é que, num mundo dividido entre Jovem Guarda e música brasileira, Gil se encontrava igualmente cindido. Era uma época em que se esperava dos cantores algo mais do que fazer e interpretar músicas - como se verá no capítulo seguinte - e nem todos se sentiam preparados para isso.
2 - Cantores à beira de um ataque de nervos
Dois depoimentos chamam a atenção para esse aumento de responsabilidade dos artistas em Uma Noite em 67. Um deles é de Paulo Machado de Carvalho Filho, responsável pelos festivais. Ele narra um episódio ocorrido com Gilberto Gil momentos depois de ensaiar Domingo no Parque para apresentar a música na primeira eliminatória do festival. Gil deixou o teatro repentinamente (segundo Nana Caymmi, sua mulher na época, reclamando do pouco tempo para ensaiar) e voltou para seu quarto no Hotel Danúbio, onde se trancou com Nana. Paulo Machado de Carvalho Filho conta no filme que foi até o quarto e viu Gil deitado e apavorado na cama. Com a ajuda de Nana, segundo ele, levou o cantor para o chuveiro e o convenceu a participar da eliminatória. Solano Ribeiro, o homem que idealizou e dirigiu os festivais da emissora, corrobora o fato. Gil estaria, segundo eles, com algo parecido como um ataque de pânico.
No filme, o próprio Gil assume que estava apavorado. Provavelmente por razões que iam muito além de insatisfação com os ensaios. Ele simplesmente não sabia de que lado se posicionar. Gil havia inscrito a música Domingo no Parque no festival como uma canção meio regional. Foi aconselhado por Caetano Veloso, no entanto, a incluir no arranjo os até então desconhecidos Mutantes - os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista e Rita Lee -, antenadíssimos com o rock norte-americano e inglês. Com isso ele se viu dividido entre o mundo das canções de protesto, com o qual sua composição flertava, e o projeto colorido de Caetano - que entraria para a história com o nome de Tropicalismo. Pior ainda: levando ao palco várias das guitarras contra as quais, ao lado de Elis, havia protestado. Sem saber para que lado ia, Gil teve um estresse. Em Uma Noite em 67, ele diz: "Eu não queria brigar, não queria mexer com o que estava acontecendo. Sabe como é, eu sempre fui meio uuuoooooommm. Sempre quis compartilhar, somar, e não dividir".
O estresse de Gil é reflexo de uma época em que era exigido dos artistas, pela primeira vez, que se posicionassem. Isso começa com Bob Dylan, o genial poeta norte-americano que começou a cantar questões políticas inspirado por seu ídolo Woody Guthrie - o bardo country em cujo instrumento se lia o slogan "Essa guitarra mata fascistas". Essa nova postura do pop se cristalizou em 1966, o ano antológico em que, querendo alcançar o nível de Dylan, as duas maiores bandas da época lançaram obras-primas: os Beatles, com Revolver, e os Beach Boys, com Pet Sounds. Isso significa que a tendência do "músico pop pensante" chegou ao Brasil cedo, um ano depois, levando em consideração que o mundo era bem menos intercomunicado do que hoje. Parte disso ocorreu por causa da efervescência universitária. Em seu livro Verdade Tropical, Caetano Veloso resume o ambiente estudantil brasileiro como "altamente politizado". Lembrando o episódio do piripaque de Gil, ele escreveu que o cantor ficou sem falar sobre o assunto com ele nos meses seguintes, até que um dia se abriu e disse: "Eu sentia que nós estávamos mexendo em coisas perigosas".
3 - A moça da camiseta com a estampa em U
A jovem e bela Telé Cardim (cujo nome de batismo é Clélia) tinha 22 anos em 1967, estudava jornalismo na Faculdade Cásper Líbero de São Paulo, e assistira às três primeiras eliminatórias do Festival da TV Record (cada uma tinha 12 músicas e classificava quatro para a grande final, que apresentava as 12 melhores). Fazia um pouco de frio na manhã do dia 21 de outubro de 1967, um sábado. Telé acordou de uma noite maldormida no apartamento onde morava com a mãe no centro da cidade. Ela estava tensa, pois era persona non grata e precisava dar um jeito de entrar no Teatro Record e se misturar às 2 mil pessoas que o lugar comportava. Contou uma mentira ao se despedir da mãe no início da tarde - naquela época, nenhuma moça de boa família dizia que ia a festivais - e dirigiu-se para o Hotel Danúbio, onde encontrou Nara, Gil, Nana Caymmi, e outros artistas. Explicou a eles que o chefe de segurança contratado pela Record - o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que nos anos seguintes lideraria o Esquadrão da Morte, um grupo de policiais assassinos - tinha vetado seu acesso por insubordinação. Seu delito: nas eliminatórias, em que havia comparecido com uma camiseta estampada com um U, ela havia espalhado bombinhas de são João no palco para fazer uma brincadeira com os artistas. Os cantores, no entanto, não estavam nem um pouco magoados. Nara emprestou uma peruca, o jornalista Carlos Gilberto Alves passou-lhe grandes óculos escuros e Gil encheu uma bexiga, que Nana colocou debaixo da blusa da moça. Disfarçada de grávida, a mais espevitada torcedora entrou no teatro lotado para ver a final ao lado de Nana.
Em sua determinação e proximidade com os artistas, Telé representa um novo tipo de fã surgido nos anos 60. Ele está interessado não apenas na música de seus ídolos mas também em suas opiniões. Não quer apenas vê-los no palco, mas privar da intimidade deles. Contribui para isso o fato de as apresentações, nos primórdios da era do pop, serem em clubes pequenos e não em grandes teatros. Um filme que flagra isso com perfeição é Blow Up - Depois daquele Beijo (1968), de Michelangelo Antonioni, na famosa cena em que os fãs praticamente dividem o palco com os integrantes da banda Yardbirds - público e plateia se esbarravam nos mesmos pubs da lendária "Swinging London". Da mesma forma, no Brasil de 1967, depois das apresentações dos festivais, parte do público - em sua maioria universitários - se encontrava para discutir os rumos da música brasileira em bares como o João Sebastião Bar, na rua Dr. Vila Nova, o Patachou, na rua Augusta, a Churrascaria Eduardo, na rua Nestor Pestana, e o Sand Churra, na Galeria Metrópole. Nesses pontos de encontro, os fãs chegavam a ouvir as canções antes mesmo de elas serem inscritas nos festivais.
O mundo mudou muito em relação a 1967. O ambiente musical que nasceu naquela época - que tinha as gravadoras e a TV como protagonistas - ruiu por completo. Hoje os selos da indústria do disco se concentram na divulgação dos grandes artistas. A televisão praticamente abandonou os musicais. O período em que eles eram a principal atração - que começou com os festivais e culminou com o programa do Chacrinha, grande patrono do rock brasileiro nos anos 80 - está enterrado.
Existem, no entanto, pelo menos duas semelhanças com aquela época. A primeira é que, na área da música popular, presenciamos o nascimento de um novo mundo, engendrado por uma nova tecnologia. Uma multidão de artistas jovens e talentosos busca seu espaço - é só conferir em vários sites da internet, entre eles o de BRAVO!, que abriga a seção Festival Permanente. Desse número, certamente serão depurados os Caetanos, Chicos e Mutantes da nova geração. A segunda semelhança é que os festivais, mesmo longe da televisão, se multiplicaram. Hoje são centenas do gênero espalhados pelo país, contemplando as mais variadas correntes. E também invadiram todos os terrenos da cultura. Existem festivais de teatro, cinema, literatura, artes plásticas... Pode-se dizer que o Brasil do século 21 se tornou o país dos festivais. Parafraseando o Príncipe de Salina, mudou tudo na cultura brasileira, mas uma coisa continua igual: a seara de talentos continua fértil - e produzindo.
Um documentário que entra em cartaz neste mês reconstitui o dia que se tornaria o marco dessa revolução no Brasil. Uma Noite em 67 traz imagens vibrantes de 21 de outubro de 1967, além de depoimentos inéditos. Nesta data, ocorreu a final do 3º Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, no Teatro Paramount, em São Paulo. O filme faz mais do que contar a história daquele que ficou famoso como o melhor festival de todos os tempos - para ter uma ideia da magnitude da nova geração que surgia, os cinco primeiros lugares ficaram com ninguém menos do que Edu Lobo (com Ponteio), Gilberto Gil e Mutantes (com Domingo no Parque), Chico Buarque (com Roda Viva), Caetano Veloso (com Alegria, Alegria) e Roberto Carlos (com Maria, Carnaval e Cinzas). Mais do que alinhavar fatos, o documentário dirigido por Ricardo Calil e Renato Terra dá a exata dimensão da revolução em curso. Pode dizer que o Festival de 1967 da TV Record dividiu a música brasileira em antes e depois. Ficaram para trás os cantores que usavam terno e smoking, os intérpretes que apenas cantavam o amor e os fãs que idolatravam seus ídolos a distância. Entraram em cena roupas coloridas, compositores que, seguindo Bob Dylan, queriam provar que era possível falar sobre qualquer assunto, e fãs que iam muito além da idolatria. Mais do que adorar seus ídolos, queriam saber o que eles pensavam e o que vestiam - para, em última análise, ser como eles.
Essa revolução fica patente no filme não apenas nas imagens dos músicos se apresentando, mas também nas entrevistas de bastidores, que mostram a estranheza que esse novo mundo causava nos repórteres Randal Juliano e Cidinha Campos - representantes do que, para usar uma gíria da época, seria o suprassumo do Brasil "careta". É hilário, e emblemático, o diálogo em que Randal pergunta a Caetano Veloso o que significa exatamente o termo "pop". Randal claramente não entendeu a resposta, mas nem precisaria fazer a pergunta se olhasse para o lado e prestasse atenção na explosão de cores à sua volta. Desobedecendo a tradição, Caetano se apresentou no festival com um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê laranja-vivo. Os argentinos que o acompanhavam, integrantes do grupo Beat Boys, irromperam em cena de cabelos longos, roupas cor-de-rosa-choque e guitarras elétricas. Gilberto Gil, em Domingo no Parque, usava blazer marrom e camisa branca. Até Edu Lobo, representante do bloco mais comportado, ousou um pouco: camisa de gola rulê preta e casaco azulado.
Os fantásticos depoimentos obtidos pelos cineastas - todos os personagens importantes relembram o festival, a começar pelos cinco vencedores - também são fundamentais para enxergar a época com os olhos de hoje. BRAVO! pinçou três momentos do filme representativos das mudanças em curso e resolveu detalhá-los nesta reportagem, com o intuito de melhor entender a mudança de bastão pela qual passava a música brasileira. O primeiro foi uma inacreditável passeata contra a guitarra, da qual muitos artistas e intelectuais participaram - entre eles, o jornalista Sérgio Cabral, pai do atual governador do Rio de Janeiro, que no filme reconhece ter perdido o senso do ridículo. O segundo, uma crise de Gilberto Gil momentos antes de subir ao palco para defender seu Domingo no Parque. O terceiro, as imagens recorrentes das fãs na plateia, representadas aqui por uma moça que teve a divertida ideia de usar uma camiseta estampada com a letra U - vogal da vaia. O zoom sobre esses três momentos mostra os três principais elementos da revolução: o aumento do poder da TV, o surgimento de um novo tipo de ídolo e o fã participativo que lhe correspondia.
1 - Um "Big Brother" versão anos 60
Sérgio Cabral tinha razão em ficar envergonhado. Com tantas causas importantes para abraçar - entre elas a defesa da democracia, ameaçada por uma ditadura militar em vias de recrudescimento e por guerrilheiros que queriam chegar ao poder usando a luta armada -, artistas e intelectuais se reuniram no dia 26 de junho de 1967 para fazer passeata contra um inofensivo instrumento musical. O bizarro evento ocorreu na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo. Numa janela do Hotel Danúbio, com vista para a avenida, Caetano Veloso e Nara Leão olhavam desolados o que ocorria, mortos de vergonha alheia.
O que parecia um evento de alto teor político - o pobre instrumento de seis cordas representaria a dominação da cultura estrangeira sobre a música brasileira - era, na verdade, uma jogada de marketing orquestrada pela televisão. Todos os artistas importantes da época eram contratados pela TV Record e tinham programas no ar. Entre eles, Jovem Guarda, com Roberto e Erasmo Carlos, O Fino da Bossa, com Elis Regina e Jair Rodrigues, e Esta Noite Se Improvisa, com Caetano Veloso e Chico Buarque. Antes da explosão das telenovelas, eles eram os verdadeiros campeões de audiência. A principal estrela da companhia era Elis Regina, conhecida como "pimentinha". Na metade dos 60, no entanto, sua audiência estava em baixa. Roberto Carlos, o líder na TV e representante da corrente que se opunha a Elis, tinha vários corpos de vantagem em relação a ela.
Para turbinar sua principal estrela, a direção da Record convocou o elenco da emissora para a abertura de um novo programa de TV ancorado por Elis, batizado de Frente Única - Noite da Música Popular Brasileira. Ficou combinado que todo mundo apareceria na estreia, cujos ingressos foram disputados a tapa pelos fãs que acorreram ao Teatro Record Centro, na noite de 26 de junho de 1967. O primeiro programa explodiu. Mas o fôlego da Frente Única mostrou-se curto. Depois de dois programas, a audiência já havia caído para índices irrisórios. Para mobilizar a opinião pública e reerguer a atração, Paulo Machado de Carvalho Filho, diretor da emissora, resolveu organizar a já referida passeata. Reuniu em seu escritório, entre outros, Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Nara Leão e Gilberto Gil - que levou Caetano Veloso com a condição de que ele ficasse calado.
Assim, no dia 17 de julho, o elenco da emissora saiu às ruas seguido por algumas centenas de populares para um evento "de ares cívicos", como lembra Zuza Homem de Mello, técnico de som do festival e o principal historiador do período - ele é autor do fundamental A Era dos Festivais: Uma Parábola. Tendo à frente a banda da Força Pública e uma vistosa faixa onde se lia "Frente Única - Música Popular Brasileira", a turma integrada por Elis, Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Vandré, o sambista Zé Kéti e os integrantes do MPB-4 formava o pelotão de frente. Logo atrás, vinha uma multidão, que gritava: "Abaixo a guitarra elétrica!" A passeata só não repercutiu mais porque, na véspera, o general Castelo Branco, primeiro da fieira de ditadores da safra de 64, havia morrido. De todo modo, o protesto entrou para a história como um episódio patético.
A passeata, no entanto, tinha tudo a ver com o marketing que a emissora desenvolvia para os festivais. Em seu depoimento em Uma Noite em 67, Paulo Machado de Carvalho Filho diz que pensava na atração como uma espécie de arena ou novela, em que mocinhos - como Chico Buarque e Roberto Carlos - se digladiavam com vilões (talvez Sérgio Ricardo, que, vaiado enquanto tentava tocar sua música Beto Bom de Bola, irritou-se com o público e atirou o violão na plateia). De certo modo, a concepção do diretor da Record é a mesma dos reality shows dos dias de hoje, como o Big Brother. Talvez a comparação seja exagerada, mas foi justamente nessa época que a curiosidade do público pela vida íntima dos artistas começou a aumentar. Em meados da década de 1960, a Editora Abril lançou a revista Intervalo, dedicada às estrelas. Até o início dos anos 70 (que marca a inédita escalada da indústria de discos com artistas nacionais em vendagens altíssimas), a revista estampava na maioria de suas capas astros da música. Ou seja: eram os cantores e compositores as celebridades da época, e não os artistas de TV e de cinema, como hoje.
Voltando à passeata contra a guitarra: é no mínimo curioso que Gilberto Gil, que meses mais tarde iria escandalizar os puristas com as guitarras dos Mutantes em Domingo no Parque, estivesse ali. Isso ocorreu por duas razões: a convocação da TV Record e a amizade com vários dos artistas que participaram do evento, notadamente Elis Regina, com quem o cantor nutria um relacionamento especial e carinhoso. A proximidade com Elis, que precisava turbinar a audiência de seu programa, fez com que Gil ignorasse os conselhos de outro amigo, Caetano Veloso. O fato é que, num mundo dividido entre Jovem Guarda e música brasileira, Gil se encontrava igualmente cindido. Era uma época em que se esperava dos cantores algo mais do que fazer e interpretar músicas - como se verá no capítulo seguinte - e nem todos se sentiam preparados para isso.
2 - Cantores à beira de um ataque de nervos
Dois depoimentos chamam a atenção para esse aumento de responsabilidade dos artistas em Uma Noite em 67. Um deles é de Paulo Machado de Carvalho Filho, responsável pelos festivais. Ele narra um episódio ocorrido com Gilberto Gil momentos depois de ensaiar Domingo no Parque para apresentar a música na primeira eliminatória do festival. Gil deixou o teatro repentinamente (segundo Nana Caymmi, sua mulher na época, reclamando do pouco tempo para ensaiar) e voltou para seu quarto no Hotel Danúbio, onde se trancou com Nana. Paulo Machado de Carvalho Filho conta no filme que foi até o quarto e viu Gil deitado e apavorado na cama. Com a ajuda de Nana, segundo ele, levou o cantor para o chuveiro e o convenceu a participar da eliminatória. Solano Ribeiro, o homem que idealizou e dirigiu os festivais da emissora, corrobora o fato. Gil estaria, segundo eles, com algo parecido como um ataque de pânico.
No filme, o próprio Gil assume que estava apavorado. Provavelmente por razões que iam muito além de insatisfação com os ensaios. Ele simplesmente não sabia de que lado se posicionar. Gil havia inscrito a música Domingo no Parque no festival como uma canção meio regional. Foi aconselhado por Caetano Veloso, no entanto, a incluir no arranjo os até então desconhecidos Mutantes - os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista e Rita Lee -, antenadíssimos com o rock norte-americano e inglês. Com isso ele se viu dividido entre o mundo das canções de protesto, com o qual sua composição flertava, e o projeto colorido de Caetano - que entraria para a história com o nome de Tropicalismo. Pior ainda: levando ao palco várias das guitarras contra as quais, ao lado de Elis, havia protestado. Sem saber para que lado ia, Gil teve um estresse. Em Uma Noite em 67, ele diz: "Eu não queria brigar, não queria mexer com o que estava acontecendo. Sabe como é, eu sempre fui meio uuuoooooommm. Sempre quis compartilhar, somar, e não dividir".
O estresse de Gil é reflexo de uma época em que era exigido dos artistas, pela primeira vez, que se posicionassem. Isso começa com Bob Dylan, o genial poeta norte-americano que começou a cantar questões políticas inspirado por seu ídolo Woody Guthrie - o bardo country em cujo instrumento se lia o slogan "Essa guitarra mata fascistas". Essa nova postura do pop se cristalizou em 1966, o ano antológico em que, querendo alcançar o nível de Dylan, as duas maiores bandas da época lançaram obras-primas: os Beatles, com Revolver, e os Beach Boys, com Pet Sounds. Isso significa que a tendência do "músico pop pensante" chegou ao Brasil cedo, um ano depois, levando em consideração que o mundo era bem menos intercomunicado do que hoje. Parte disso ocorreu por causa da efervescência universitária. Em seu livro Verdade Tropical, Caetano Veloso resume o ambiente estudantil brasileiro como "altamente politizado". Lembrando o episódio do piripaque de Gil, ele escreveu que o cantor ficou sem falar sobre o assunto com ele nos meses seguintes, até que um dia se abriu e disse: "Eu sentia que nós estávamos mexendo em coisas perigosas".
3 - A moça da camiseta com a estampa em U
A jovem e bela Telé Cardim (cujo nome de batismo é Clélia) tinha 22 anos em 1967, estudava jornalismo na Faculdade Cásper Líbero de São Paulo, e assistira às três primeiras eliminatórias do Festival da TV Record (cada uma tinha 12 músicas e classificava quatro para a grande final, que apresentava as 12 melhores). Fazia um pouco de frio na manhã do dia 21 de outubro de 1967, um sábado. Telé acordou de uma noite maldormida no apartamento onde morava com a mãe no centro da cidade. Ela estava tensa, pois era persona non grata e precisava dar um jeito de entrar no Teatro Record e se misturar às 2 mil pessoas que o lugar comportava. Contou uma mentira ao se despedir da mãe no início da tarde - naquela época, nenhuma moça de boa família dizia que ia a festivais - e dirigiu-se para o Hotel Danúbio, onde encontrou Nara, Gil, Nana Caymmi, e outros artistas. Explicou a eles que o chefe de segurança contratado pela Record - o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que nos anos seguintes lideraria o Esquadrão da Morte, um grupo de policiais assassinos - tinha vetado seu acesso por insubordinação. Seu delito: nas eliminatórias, em que havia comparecido com uma camiseta estampada com um U, ela havia espalhado bombinhas de são João no palco para fazer uma brincadeira com os artistas. Os cantores, no entanto, não estavam nem um pouco magoados. Nara emprestou uma peruca, o jornalista Carlos Gilberto Alves passou-lhe grandes óculos escuros e Gil encheu uma bexiga, que Nana colocou debaixo da blusa da moça. Disfarçada de grávida, a mais espevitada torcedora entrou no teatro lotado para ver a final ao lado de Nana.
Em sua determinação e proximidade com os artistas, Telé representa um novo tipo de fã surgido nos anos 60. Ele está interessado não apenas na música de seus ídolos mas também em suas opiniões. Não quer apenas vê-los no palco, mas privar da intimidade deles. Contribui para isso o fato de as apresentações, nos primórdios da era do pop, serem em clubes pequenos e não em grandes teatros. Um filme que flagra isso com perfeição é Blow Up - Depois daquele Beijo (1968), de Michelangelo Antonioni, na famosa cena em que os fãs praticamente dividem o palco com os integrantes da banda Yardbirds - público e plateia se esbarravam nos mesmos pubs da lendária "Swinging London". Da mesma forma, no Brasil de 1967, depois das apresentações dos festivais, parte do público - em sua maioria universitários - se encontrava para discutir os rumos da música brasileira em bares como o João Sebastião Bar, na rua Dr. Vila Nova, o Patachou, na rua Augusta, a Churrascaria Eduardo, na rua Nestor Pestana, e o Sand Churra, na Galeria Metrópole. Nesses pontos de encontro, os fãs chegavam a ouvir as canções antes mesmo de elas serem inscritas nos festivais.
O mundo mudou muito em relação a 1967. O ambiente musical que nasceu naquela época - que tinha as gravadoras e a TV como protagonistas - ruiu por completo. Hoje os selos da indústria do disco se concentram na divulgação dos grandes artistas. A televisão praticamente abandonou os musicais. O período em que eles eram a principal atração - que começou com os festivais e culminou com o programa do Chacrinha, grande patrono do rock brasileiro nos anos 80 - está enterrado.
Existem, no entanto, pelo menos duas semelhanças com aquela época. A primeira é que, na área da música popular, presenciamos o nascimento de um novo mundo, engendrado por uma nova tecnologia. Uma multidão de artistas jovens e talentosos busca seu espaço - é só conferir em vários sites da internet, entre eles o de BRAVO!, que abriga a seção Festival Permanente. Desse número, certamente serão depurados os Caetanos, Chicos e Mutantes da nova geração. A segunda semelhança é que os festivais, mesmo longe da televisão, se multiplicaram. Hoje são centenas do gênero espalhados pelo país, contemplando as mais variadas correntes. E também invadiram todos os terrenos da cultura. Existem festivais de teatro, cinema, literatura, artes plásticas... Pode-se dizer que o Brasil do século 21 se tornou o país dos festivais. Parafraseando o Príncipe de Salina, mudou tudo na cultura brasileira, mas uma coisa continua igual: a seara de talentos continua fértil - e produzindo.
No hay comentarios:
Publicar un comentario