jueves, 10 de septiembre de 2020

2020 - NARCISO EM FÉRIAS

















HISTORIADOR QUE LOCALIZOU DOSSIÊ CONTRA CAETANO ALERTA QUE HÁ MUITO A SER DESCOBERTO
Lucas Pedretti ressalta que documentos da ditadura estão na internet e aponta 'Narciso em férias' como resultado de conjunção de fatores

Luiz Fernando Vianna
10/09/2020


O historiador Lucas Pedretti, que localizou o dossiê que a ditadura militar usou para prender Caetano Veloso - Foto: Bira Soares / Divulgação

Foi o historiador Lucas Pedretti quem localizou o dossiê que a ditadura militar utilizou para prender Caetano Veloso, em dezembro de 1968. A documentação funcionou como ponto de partida para o filme “Narciso em férias”, disponível no Globoplay. O compositor recorda, aos diretores Renato Terra e Ricardo Calil, os 54 dias que passou em diferentes quartéis do Rio de Janeiro.

Embora reconheça a importância histórica de seu achado, Pedretti credita a descoberta e o alcance que ele tomou a um conjunto de fatores, a começar pelo acaso.

Ele pesquisava no acervo digital do Arquivo Nacional (no site Memórias Reveladas) para sua dissertação de mestrado na PUC-Rio, sobre a perseguição promovida pela ditadura aos bailes de música soul. Encontrou citações a Gilberto Gil e acabou chegando, em abril de 2018, à prisão dos dois artistas baianos. Gil e Caetano foram detidos juntos em São Paulo, em 27 de dezembro, e libertados na quarta-feira de cinzas de 1969.

A companheira de Pedretti, Virna Plastino, fez doutorado em antropologia, no Museu Nacional (UFRJ), com Clara Flaksman, mulher de Moreno Veloso, filho de Caetano. Foi graças a essas relações que o dossiê de cerca de 180 páginas chegou até o compositor.

“Quando eu me deparei com o material, percebi que era algo quente. Mas achava possível que Caetano conhecesse”, conta o historiador, de 27 anos. “Virou um fator em meio a uma convergência de coisas que levaram ao filme. Caetano já pretendia publicar o capítulo ‘Narciso em férias’, do ‘Verdade tropical’, em separado. E Paula Lavigne [mulher e empresária do artista] tem dito que o contexto eleitoral de 2018 pesou na decisão.”


O historiador Lucas Pedretti, de 27 anos - Foto: Bira Soares / Divulgação

O favoritismo de Jair Bolsonaro, um apologista da ditadura, sua vitória em outubro e, de lá para cá, seus atos como presidente tornam fundamental a revisão daquele período, exaltado por parte da população. O “processo” – como se costuma dizer – que levou Caetano à prisão é, na verdade, uma reunião de informações esparsas, boa parte tiradas de notícias de jornal. Órgãos da repressão como o SNI (Serviço Nacional de Informações) interpretavam as notícias de modo a “incriminar” o compositor.


“Na lógica dos regimes autoritários, primeiro vai-se contra o alvo, depois buscam-se as provas”, afirma Pedretti. Ele assessorou a Comissão Estadual da Verdade, que investigou, entre 2013 e 2015, violações de direitos humanos ocorridas no Rio durante o regime militar.

Numa página do prontuário de Caetano, ele é “relacionado entre os elementos divulgadores de propaganda de caráter subversivo” por causa, especialmente, da música “Che”. O detalhe é que ele nunca compôs nada com esse título. Pode ter sido uma alusão a “Soy loco por ti, América”, que Caetano gravou, mas cujos autores são Gilberto Gil e Capinan.

“Na melhor das hipóteses, foi burrice. Na pior, foi mentira mesmo”, diz Pedretti.

Ele afirma ser um engano fazer, em regimes autoritários, uma separação entre repressão política e censura moral, dando a esta certo tom anedótico, por causa dos lances de estupidez.

“O projeto moral é tão ou mais importante do que o político e o econômico. Bolsonaro pode abraçar qualquer agenda econômica, mas não vai mudar uma linha da sua visão moral.”


Parte do dossiê que a ditadura militar usou para prender Caetano Veloso
Foto: Reprodução

No filme, Caetano relata conversa com um capitão do Exército que o apontava como mais perigoso do que os autores de canções de protesto. O cantor pretenderia mudar a situação do país “por dentro”, pelos costumes, não pelo confronto político explícito. O capitão estava preocupado com o que hoje a direita chama de “marxismo cultural”.

Pedretti desmistifica a ideia de “documentos secretos”. O que os órgãos estatais produziram durante a ditadura vem sendo digitalizado e está disponível no Sistema de Informações do Arquivo Nacional. O historiador pesquisava no fundo documental do Conselho de Segurança Nacional quando encontrou o dossiê de Caetano. Em 2011, com a Lei de Acesso à Informação, ficou mais viável ter acesso a documentos.

“Quantas reportagens e quantos filmes não estão à espera de serem feitos a partir de documentos que podem ser pesquisados pela internet?”, diz Pedretti, que agora cursa doutorado em sociologia na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Desconhecidos são, sim, os materiais do CIE (Centro de Informações do Exército), do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e do Cisa (Centro de Informações da Aeronática). As Forças Armadas alegam que tudo foi destruído, mas, por vezes, aparecem pedaços dessas documentações decisivas para se saber mais sobre prisões, torturas, desaparecimentos e assassinados perpetrados pela ditadura.


PROCESSO DE
CAETANO EMANOEL VIANA TELES VELOSO
N8. PRO.CSS. 56 1











© 2020 Deutsche Welle


ENTREVISTA


"Temos um governo inimigo das liberdades", diz Caetano Veloso

Em entrevista à DW Brasil, artista fala sobre os 54 dias que passou na prisão durante a ditadura militar, tema do documentário "Narciso em férias", e diz ver uma perspectiva "sombria" para o Brasil sob Bolsonaro.


10/09/2020
Meyre Brito


"Não podemos esquecer que o golpe militar de 1964 foi apoiado por grande parte da população", diz Caetano

Aos 78 anos, Caetano Veloso convida espectadores a mergulharem em algumas de suas mais profundas e dolorosas memórias. Ao assistir ao documentário Narciso em Férias, que estreou na última segunda-feira (07/09) na 77ª edição do Festival de Veneza, experimenta-se a força da narrativa, mas também da linguagem corporal e simbólica do cantor e compositor baiano.

Tudo começou quando Paulinha, como Caetano se refere carinhosamente à companheira Paula Lavigne, teve a ideia de recontar o capítulo Narciso em Férias, do livro de memorias Verdade Tropical, com imagens em movimento. Nesse capítulo, o baiano descreve a temporada que passou no cárcere durante a ditadura militar.

A produtora e empresária Lavigne idealizou o documentário e, para dirigi-lo, convidou Renato Terra, que repetiu a parceria com Ricardo Calil, iniciada no longa Uma Noite em 67. "Nesse momento do país, sinto que o filme entra como um sopro de afeto, de esperança, de força e de clareza", diz Terra à DW Brasil.

Os dois diretores optaram por um formato minimalista, no qual cada detalhe ganha relevância: os silêncios, as pausas, as inflexões de Caetano. "Tiramos imagens de arquivo, tiramos entrevistas, tiramos trilha sonora, tiramos qualquer efeito de câmera", explica Terra.

No longa, com 83 minutos de duração e também disponibilizado no Globoplay, Caetano aparece numa sala cinza vazia da Cidade das Artes, espaço cultural inacabado no Rio de Janeiro. Ele está sentado em uma cadeira e algumas vezes, poucas, pega o violão e canta.

"O Antônio Prata me disse que, ao ver o filme, a experiência dele foi muito melhor assim, porque foi completando o que Caetano estava dizendo com as imagens da cabeça dele. É como um filme de terror, por exemplo, que fica muito mais interessante quando você não mostra o monstro. Você só sugere o monstro", diz Terra.

Os 54 dias de encarceramento de Caetano tiveram início em dezembro de 1968, apenas 14 dias depois da emissão do AI-5. Ele e Gilberto Gil fora retirados de suas casas em São Paulo e levados para o Rio de Janeiro por policiais à paisana. Em entrevista à DW Brasil, Caetano relembra os horrores do cárcere: "Eu tinha uma alucinação de que a minha vida era só aquilo. Eu me lembrava das coisas como se elas fossem apenas sonhos."

Sobre o atual momento vivido pelo Brasil, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, Caetano diz que a perspectiva para o país é "sombria". "Temos um governo inimigo das liberdades [...] No médio prazo, a gente olha para frente e não vê uma coisa muito boa."
  

DW Brasil: Como era sua rotina durante os 54 dias em que ficou encarcerado?
Caetano Veloso: Gil e eu fomos levados para o 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca. Na primeira semana, eu fiquei numa solitária. Foi terrível. Dormia no chão, tinha uma privada perto da minha cabeça, um chuveiro por cima da privada e nada mais. Depois de alguns dias, eu estava muito mal da cabeça. Achava que nunca tinha vivido outra coisa, senão aquilo. No fim dessa primeira semana, fomos transferidos, Gil e eu, para um outro quartel (da Polícia do Exército da Vila Militar, no subúrbio de Deodoro), onde eu dividi o xadrez com outros rapazes. Eu num xadrez, e Gil no outro. Só por não estar mais na solitária já era melhor, mas continuava ruim. Não tinha onde dormir, tinha mais gente do que a cela podia comportar, tínhamos que dividir um chuveiro para todos. Por fim, me transferiram para o quartel dos paraquedistas do Exército. Desta vez, eu tinha cama, travesseiro, lençol. Tinha até um banheiro separado.

Você dividia a cela com outros artistas e intelectuais?
Eu não. No xadrez de Gil estavam alguns nomes da cultura brasileira, como o poeta Ferreira Gular, o escritor Antônio Calado, o jornalista e romancista Paulo Francis. Geraldo Vandré era procurado. Os militares tinham um ódio violento dele por causa daquela canção Pra não dizer que não falei das flores, que falava de "soldados armados, amados ou não". Eu estava com líderes estudantis, rapazes vinculados à Igreja Católica, mas de esquerda. O Gil estava numa cela melhor porque tinha diploma, ele podia até ter violão. O sofrimento era grande. A minha mulher [Dedé Gadelha] não sabia onde eu estava. Ninguém da minha família sabia. Eu fui sequestrado, estava desaparecido. E já fazia um mês.



Foto do corte de cabelo feito na prisão foi parar no cartaz do filme "Narciso em férias"

Foi nesse momento que você achou que poderia ser assassinado?
Eu vivi muitos momentos terríveis. No período final da primeira semana nessa solitária que eu descrevi, fiquei muito mal da cabeça. Achei que a vida tinha sido sempre aquilo. Porque eu dormia e acordava, e estava sempre ali. Não via ninguém, não via nem a mim mesmo. O carcereiro colocava café e um pedaço de pão através de uma portinhola. Eu tinha uma alucinação de que a minha vida era só aquilo. Eu me lembrava das coisas como se elas fossem apenas sonhos.

Um dia, quando eu estava no segundo quartel, o tenente chegou com um soldado. Eu me lembro que o soldado me olhava chorando. Ele balançava a cabeça, como se reprovasse aquela situação. Eu pensei: "O que será que vai acontecer?" Lembro-me de meus companheiros de cela assustados. Eles me olhavam com uma cara como se também estivessem se perguntando: "O que será que vai acontecer?" Esse tenente e outros dois outros militares me tiraram da cela. Eles me mandaram andar na frente deles. Eu saí da minha cela bastante tenso. Estávamos em uma vila militar. Quando eu estava andando na frente, eles armados atrás de mim disseram para eu não olhar para trás, e eu pensei: "Vão atirar, vão atirar."
Então um deles me disse: "Vire à direita."Eu fui por um corredor, era o barbeiro. Eles cortaram o meu cabelo, e embora eles estivessem simbolicamente tirando mais um pedaço da minha liberdade, fiquei feliz. Eles tosaram meu cabelo num estilo militar, bem batidinho dos lados [A foto do corte foi parar no cartaz do filme].

Você só compôs uma música na prisão. Em qual momento isso aconteceu?
Foi no terceiro quartel, o dos paraquedistas do Exército. A minha mulher [Dedé], enfim, me encontrou. Ela ficava do lado de fora da grade e, assim, podíamos nos ver. Aí minha cabeça melhorou e fiz uma canção meio de vontade de estar fora, de ser solto para eu ver minha irmã mais nova de novo, que era adolescente e tinha uma risada linda, a Irene. Eu fiz essa música sem violão, sem nada.


"Nesse momento do país, sinto que o filme entra como um sopro de afeto, de esperança", diz o diretor Renato Terra

Este é o momento em que você chora no filme, quando a Dedé vai te visitar?
Eu me emocionei por não lembrar o nome do sargento baiano que facilitou meu encontro com Dedé. Depois, ele acabou sendo preso. Não gosto de falar disso. A gente teve que parar a gravação. Mas é preciso ter coragem de enfrentar o tema.

E como foi quando a Dedé te mostrou a foto do planeta Terra pela primeira vez na cadeia?
Foi estimulante. Dedé foi me visitar e levou a revista Manchete. E tinha as primeiras fotos da Terra tiradas do espaço sideral. Era a primeira vez que a gente via a Terra. Claro, estudávamos na escola que "a Terra é redonda", tinha o globo para olharmos, mas ver uma fotografia da Terra tirada do espaço sideral foi a primeira vez. Aquilo me entusiasmou, fiquei pensando... Isso não está em lugar nenhum, estou contando a você. Eu pensei assim: "Mas a Terra aqui aparece toda redondinha, a gente estudou que ela é achatada nos polos, mas nas fotografias nunca aparece achatada. Mais ou menos dez anos depois fiz uma canção chamada Terra, que começa justamente por causa do fato de eu ter visto as primeiras fotos da Terra, tiradas de fora, de dentro de uma cela: "Quando eu me encontrava preso, na cela de uma cadeia, foi que vi pela primeira vez, as tais fotografias…"

O governo Bolsonaro pode ser comparado ao período da ditadura militar?
Nós temos agora um governo de extrema direita, mas que foi eleito democraticamente. Oficialmente, não temos um governo autoritário. Temos um governo inimigo das liberdades. Eles aparelharam as áreas de cultura, de educação. Eles estão fazendo uma corrosão da situação democrática. Isso é perigoso. Sem falar no total desrespeito pelos cuidados ambientais. É duro, porque estão fazendo uma onda populista para se reelegerem em 2022. A perspectiva é sombria. No médio prazo, a gente olha para frente e não vê uma coisa muito boa, não. Eles ficam lutando contra os princípios da democracia, mas dentro das formalidades da democracia. É tenso.

No golpe militar, não houve opção. Foi um golpe. Agora, os brasileiros escolheram este governo...
Olha, não podemos esquecer que o golpe militar de 1964 foi apoiado por grande parte da população e por toda a imprensa. Por toda a imprensa. Ele foi pedido, rogado, pelo Globo, pela Folha de S.Paulo, pelo Estadão, todo mundo. E teve uma passeata que era "Família com Deus pela liberdade", algo assim, que defendia que estávamos sendo ameaçados pelo comunismo, por causa do governo de João Goulart, que, na prática, era de centro-esquerda. Até alguns intelectuais respeitáveis e adoráveis, como Carlos Drummond de Andrade, chegaram a achar razoável que houvesse um golpe.








1969
Revista Manchete
Rio de Janeiro – 11 de janeiro de 1969
Ano 16 – n° 873













OPINIÃO

Alberto Villas: As seis canções do cárcere de um ‘Narciso em férias’

ALBERTO VILLAS
11 DE SETEMBRO DE 2020


Caetano tocando no documentário "Narciso em Férias" - Créditos: Divulgação


Histórias e lembranças por trás das canções compostas por Caetano em 1969

Caetano Veloso cita seis músicas no seu depoimento a Renato Terra e Ricardo Calil, sobre sua prisão em 1969, duas semanas depois do Ato Institucional número 5. No documentário Narciso em Férias, que foi aplaudido em Veneza no dia 7 de setembro, ele canta três canções e, com dor no coração e uma certa angústia, silencia sobre as outras três.

Canta Irene, a única que fez atrás das grades, quando apertou a saudade da irmã, com então 14 anos de idade. Na gravação original, que abre o disco de capa branca e que leva apenas sua assinatura, Caetano erra no início e deixa o erro no vinil: esqueci. Eu vi que você não estava com cara de quem ia cantar. Eu estava esquecido, quando me lembrei já foi em cima da hora. Ah, meu Deus… ah! Na letra, uma única vontade, a de ir embora daquele lugar: eu quero ir minha gente, eu não sou daqui, eu não tenho nada, quero ver Irene rir, quero ver Irene dar sua risada.

Canta Terra, a canção que fez, alguns anos depois, e que sua memória o remeteu ao quartel do Exército. Compôs a lembrança de Dedé que levou para ele ver a revista Manchete com as fotos da Terra vista do espaço. Na verdade, um hino ao Planeta Terra: quando eu estava preso na cela de uma cadeia, foi que vi pela primeira vez as tais fotografias, em que apareceres inteira, porém não estava nua e sim coberta de nuvens. É em Terra que ele reconstrói os versos de Paraíba, de Luiz Gonzaga, aquela Paraíba masculino mulher macho sim senhor! Mando um abraço pra ti pequenina como se eu fosse o saudoso poeta e fosses a Paraíba.

Canta Hey Jude, a canção que ouvia na prisão e que lhe dava a sensação de que dias melhores viriam: Ei, Jude, não fique mal, pegue uma canção triste e torne-a melhor. Lembre-se de deixá-la entrar em seu coração, então você pode começar a melhorar as coisas e sempre que você sentir dor. Ei, Jude, vá com calma, não carregue o mundo nos seus ombros.

Caetano não tocou Súplica, sucesso no vozeirão de Orlando Silva, a canção que um velho comunista, companheiro de prisão pedia que ele cantasse: Aço frio de um punhal / Foi o seu adeus para mim / Não crendo na verdade, implorei, pedi / As súplicas morreram num eco em vão / Sofrendo nas paredes frias de um apartamento.

Não cantou também Onde o céu azul é mais azul, uma aquarela brasileira na voz de Francisco Alves, a canção que Caetano tem medo, medo de chorar ao ouvi-la: Eu já encontrei um dia alguém / Que me perguntou assim, iá, iá / O seu Brasil o que é que tem / O seu Brasil onde é que está? / Onde o céu azul é mais azul / E uma cruz de estrelas mostra o sul / Aí, se encontra o meu país / O meu Brasil grande, e tão feliz.

E Caetano não cantou Assum Preto, de Luiz Gonzaga, recuperada pela fatal Gal Costa, outra música que lhe causava uma tristeza profunda; Tudo em vorta é só beleza / Sol de abril e a mata em frô / Mas Assum Preto, cego dos óio / Num vendo a luz, aí, canta de dor / Mas Assum Preto, cego dos óio / Num vendo a luz, aí, canta de dor / Tarvez por ignorança / Ou mardade das pió / Furaro os óio do Assum Preto / Pra ele assim, aí, cantá mió.

Sim, as histórias voltam junto com as canções.




O GLOBO

'Narciso em férias': Caetano foi preso por 'crime' que Noel Rosa cometeu
Grande revelação do filme é que músico foi parar na cadeia pelo simples fato de ser cantor e compositor popular

Hugo Sukman
12/09/2020


Caetano Veloso durante entrevista coletiva sobre seu afastamento
do Festival da Canção em 1968 - Foto: Arquivo / O GLOBO


Caetano Veloso foi preso por um crime que Noel Rosa cometeu. Ou seja, um crime praticado pela música brasileira, que pelo visto ainda não prescrevera em 1969, embora ocorrido em 1929.

“— Noel, há umas coisas aqui que não estão me agradando: ‘Agora vou mudar minha conduta...’ Repete isso.

Noel obedece.

— Essa música não pode ser publicada — interrompe Homero.

— Por que não?

— Porque isso não é samba, é o Hino Nacional Brasileiro. Os homens da censura não vão deixar. Além de proibir, podem até te prender. Não é permitido fazer brincadeiras com o Hino Nacional.

Depois de breve silêncio, Noel indaga, meio assustado:

— E agora?”


O flagrante do “crime” é reproduzido com detalhes por Carlos Didier e João Máximo em “Noel Rosa, uma biografia” a partir de descrições das testemunhas que estavam na casa da Rua Torres Homem, em Vila Isabel, naquela tarde do fim de 1929 — os compositores Braguinha e Almirante e o próprio maestro Homero Dornellas, que passava para a pauta o samba “Com que roupa?”, que Noel queria gravar para o carnaval de 30. Ajudado pelo maestro, depois do susto Noel alterou as notas iniciais do samba, que só seria gravado no ano seguinte, com imenso sucesso no carnaval de 31 e o crime de subverter o Hino devidamente ocultado (na prática, não no espírito).


O músico Noel Rosa, que costumava parodirar o Hino Nacional
Foto: Arquivo / O GLOBO

Quarenta anos depois, também na Zona Norte, no batalhão de paraquedistas em Deodoro, quando se encontrava preso na cela de uma cadeia sem saber bem por quê, como se fosse Noel num flagrante tardio, Caetano é submetido ao interrogatório por um tal major Hilton: “Perguntado se sabe cantar o Hino Nacional responde que sim (...). Perguntado se sabe cantar ‘Tropicália’, responde que ‘sei’ porque é o autor e cantor dessa música. Perguntado se sabe cantar o Hino Nacional com a melodia da Tropicália responde ‘é impossível porque os versos do Hino Nacional são decassílabos e os versos de ‘Tropicália’ têm oito sílabas poéticas’.”

Noel nunca teria esse álibi: basta cantar a letra do “Com que roupa?” na melodia do Hino Nacional que se vê como cabe perfeitamente. Além disso, todos que conheciam Noel sabiam que ele costumava fazer paródias até pornográficas do Hino desde os tempos do Colégio São Bento, e solava sua melodia ao violão.

Essa fenda no espaço-tempo se abriu devido à talvez mais importante revelação histórica de “Narciso em férias”, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil em cartaz no Globoplay, sobre o capítulo do livro de Caetano “Verdade tropical”, no qual o compositor destrincha as memórias do tempo em que ficou preso logo após o AI-5, entre dezembro de 68 e fevereiro de 69.

A partir do conteúdo do interrogatório, revelado pelo filme e lido pelo próprio Caetano entre risos nervosos e engasgos de engolir lágrimas, é comprovado que ele e Gilberto Gil de fato foram presos pela acusação de profanarem o Hino Nacional no show que fizeram em setembro de 1968 na boate Sucata. Só por isso, por cantar. O que nem cantaram.

No filme, Caetano revela que a prisão o fez um pouco mais supersticioso, ou pelo menos mais atento às coincidências, muitas delas musicais — como a de um vizinho de cela, que pediu que ele cantasse “Súplica”, a valsa que ele cantava em casa, horas antes de ser preso.


A coincidência em responder pelo “crime” de Noel talvez seja das mais impressionantes. Afinal, “Narciso em férias” é baseado na fala de Caetano, é literalmente “cinema falado”. “O cinema falado” é o nome do único filme dirigido por Caetano, com título tirado de um samba de... Noel, “Não tem tradução”.


Caetano Veloso em cena do documentário "Narciso em férias"
Foto: VideoFilmes/divulgação / O GLOBO


Mas tudo transcende às coincidências. E talvez reflita o caráter profundamente subversivo da música brasileira, sempre perseguida e vigiada pelos reacionários de plantão. A denúncia que levou à prisão de Caetano e Gil partiu, por exemplo, de Randal Juliano, apresentador da TV Record, que exortou militares a tomarem providências quanto ao Hino supostamente cantado como paródia na Sucata. O mesmo Randal que no Festival da Record do ano anterior — retratado, ai as coincidências, no filme “Uma noite em 67”, dos mesmos diretores de “Narciso em férias” — perguntava a Caetano nos bastidores, com visível má vontade, o sentido que ele não via na letra de “Alegria alegria”, sendo humilhado por Caetano nas respostas.

Na verdade, os reacionários estavam certos. “Com que roupa?” era mais que uma subversão do Hino Nacional — Noel teria dito a um tio que queria retratar “o Brasil de tanga”, por causa da Crise de 29 e de sua pobreza estrutural —, mas o início da incorporação da arte dos negros e marginalizados à cultura oficial brasileira através do samba que havia acabado de conquistar o compositor branco. Naquela mesma tarde de 29, aliás, Almirante e o maestro Homero Dornellas (escondido sob o pseudônimo Candoca da Anunciação) fizeram o samba “Na Pavuna”, que seria a primeira gravação da história a ter percussão de samba, pura subversão.

“Tropicália”, por sua vez, com seu ritmo marcheado também era um hino brasileiro vocacional, querendo organizar movimentos, orientar o carnaval, inaugurar monumentos no Planalto Central dando vivas à Banda (do Chico Buarque, não a militar) e a uma “Carmen Miranda dada”, dadaísta, rebelde, sem sentido convencional. Subversivo, pois, coisa que foi percebida melhor pelo segundo oficial a interrogar Caetano, um capitão um pouco mais informado, que ao ouvir o compositor negar o “crime” da Sucata respondeu algo como: “Mas você é ingênuo ou acha que pode nos fazer de bobos?”

No futuro, o pai espiritual de Caetano, João Gilberto, cantaria de fato o Hino nos seus shows, todo editado, com nova harmonia, ainda mais bonito, com ênfase em alguns trechos — “Se o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria neste instante” — subversivo.

A única canção composta por Caetano na prisão, “Irene”, sobre a saudade do riso da irmã mais nova, seria também no futuro incorporada a outro hino informal, “Meninas do Brasil”, de Moraes Moreira e Fausto Nilo: “Quando o povo brasileiro viu Irene dar risada...”. O que leva a crer que Caetano foi preso, sim, no lugar de Noel e de todos os subversivos da música brasileira pelo simples fato de ser cantor e compositor popular. Crime perigoso sempre que ressentidos e reacionários chegam ao poder. Afinal, “tudo aquilo que o malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro”. Como aliás cantou Noel (e Caetano citou).


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