HISTORIADOR QUE LOCALIZOU DOSSIÊ CONTRA CAETANO ALERTA QUE HÁ MUITO A SER DESCOBERTO
Lucas Pedretti ressalta que documentos da ditadura estão na internet e
aponta 'Narciso em férias' como resultado de conjunção de fatores
Luiz Fernando Vianna
10/09/2020
O historiador Lucas Pedretti, que localizou o dossiê que a ditadura militar usou para prender Caetano Veloso - Foto: Bira Soares / Divulgação |
Foi
o historiador Lucas Pedretti quem localizou o dossiê que a ditadura militar
utilizou para prender Caetano Veloso, em dezembro de 1968. A documentação
funcionou como ponto de partida para o filme “Narciso em férias”, disponível no
Globoplay. O compositor recorda, aos diretores Renato Terra e Ricardo Calil, os
54 dias que passou em diferentes quartéis do Rio de Janeiro.
Embora
reconheça a importância histórica de seu achado, Pedretti credita a descoberta
e o alcance que ele tomou a um conjunto de fatores, a começar pelo acaso.
Ele
pesquisava no acervo digital do Arquivo Nacional (no site Memórias Reveladas)
para sua dissertação de mestrado na PUC-Rio, sobre a perseguição promovida pela
ditadura aos bailes de música soul. Encontrou citações a Gilberto Gil e acabou
chegando, em abril de 2018, à prisão dos dois artistas baianos. Gil e Caetano
foram detidos juntos em São Paulo, em 27 de dezembro, e libertados na
quarta-feira de cinzas de 1969.
A
companheira de Pedretti, Virna Plastino, fez doutorado em antropologia, no
Museu Nacional (UFRJ), com Clara Flaksman, mulher de Moreno Veloso, filho de
Caetano. Foi graças a essas relações que o dossiê de cerca de 180 páginas
chegou até o compositor.
“Quando
eu me deparei com o material, percebi que era algo quente. Mas achava possível
que Caetano conhecesse”, conta o historiador, de 27 anos. “Virou um fator em
meio a uma convergência de coisas que levaram ao filme. Caetano já pretendia
publicar o capítulo ‘Narciso em férias’, do ‘Verdade tropical’, em separado. E
Paula Lavigne [mulher e empresária do artista] tem dito que o contexto
eleitoral de 2018 pesou na decisão.”
O historiador Lucas Pedretti, de 27 anos - Foto: Bira Soares / Divulgação |
O
favoritismo de Jair Bolsonaro, um apologista da ditadura, sua vitória em
outubro e, de lá para cá, seus atos como presidente tornam fundamental a
revisão daquele período, exaltado por parte da população. O “processo” – como
se costuma dizer – que levou Caetano à prisão é, na verdade, uma reunião de
informações esparsas, boa parte tiradas de notícias de jornal. Órgãos da
repressão como o SNI (Serviço Nacional de Informações) interpretavam as
notícias de modo a “incriminar” o compositor.
“Na
lógica dos regimes autoritários, primeiro vai-se contra o alvo, depois
buscam-se as provas”, afirma Pedretti. Ele assessorou a Comissão Estadual da
Verdade, que investigou, entre 2013 e 2015, violações de direitos humanos
ocorridas no Rio durante o regime militar.
Numa
página do prontuário de Caetano, ele é “relacionado entre os elementos
divulgadores de propaganda de caráter subversivo” por causa, especialmente, da
música “Che”. O detalhe é que ele nunca compôs nada com esse título. Pode ter
sido uma alusão a “Soy loco por ti, América”, que Caetano gravou, mas cujos
autores são Gilberto Gil e Capinan.
“Na
melhor das hipóteses, foi burrice. Na pior, foi mentira mesmo”, diz Pedretti.
Ele
afirma ser um engano fazer, em regimes autoritários, uma separação entre
repressão política e censura moral, dando a esta certo tom anedótico, por causa
dos lances de estupidez.
“O
projeto moral é tão ou mais importante do que o político e o econômico.
Bolsonaro pode abraçar qualquer agenda econômica, mas não vai mudar uma linha
da sua visão moral.”
Parte do dossiê que a ditadura militar usou para prender Caetano Veloso Foto: Reprodução |
No
filme, Caetano relata conversa com um capitão do Exército que o apontava como
mais perigoso do que os autores de canções de protesto. O cantor pretenderia
mudar a situação do país “por dentro”, pelos costumes, não pelo confronto
político explícito. O capitão estava preocupado com o que hoje a direita chama
de “marxismo cultural”.
Pedretti
desmistifica a ideia de “documentos secretos”. O que os órgãos estatais
produziram durante a ditadura vem sendo digitalizado e está disponível no
Sistema de Informações do Arquivo Nacional. O historiador pesquisava no fundo
documental do Conselho de Segurança Nacional quando encontrou o dossiê de
Caetano. Em 2011, com a Lei de Acesso à Informação, ficou mais viável ter
acesso a documentos.
“Quantas
reportagens e quantos filmes não estão à espera de serem feitos a partir de
documentos que podem ser pesquisados pela internet?”, diz Pedretti, que agora
cursa doutorado em sociologia na UERJ (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro).
Desconhecidos
são, sim, os materiais do CIE (Centro de Informações do Exército), do Cenimar
(Centro de Informações da Marinha) e do Cisa (Centro de Informações da
Aeronática). As Forças Armadas alegam que tudo foi destruído, mas, por vezes,
aparecem pedaços dessas documentações decisivas para se saber mais sobre
prisões, torturas, desaparecimentos e assassinados perpetrados pela ditadura.
PROCESSO DE CAETANO EMANOEL VIANA TELES VELOSO N8. PRO.CSS. 56 1 |
© 2020 Deutsche Welle
ENTREVISTA
"Temos um governo inimigo das
liberdades", diz Caetano Veloso
Em entrevista à DW Brasil, artista fala sobre os 54 dias que passou na
prisão durante a ditadura militar, tema do documentário "Narciso em
férias", e diz ver uma perspectiva "sombria" para o Brasil sob
Bolsonaro.
10/09/2020
"Não podemos esquecer que o golpe militar de 1964 foi apoiado por grande parte da população", diz Caetano |
Aos
78 anos, Caetano Veloso convida espectadores a mergulharem em algumas de suas
mais profundas e dolorosas memórias. Ao assistir ao documentário Narciso em Férias, que estreou na
última segunda-feira (07/09) na 77ª edição do Festival de Veneza,
experimenta-se a força da narrativa, mas também da linguagem corporal e
simbólica do cantor e compositor baiano.
Tudo
começou quando Paulinha, como Caetano se refere carinhosamente à companheira
Paula Lavigne, teve a ideia de recontar o capítulo Narciso em Férias, do livro de memorias Verdade Tropical, com imagens em
movimento. Nesse capítulo, o baiano descreve a temporada que passou no cárcere
durante a ditadura militar.
A
produtora e empresária Lavigne idealizou o documentário e, para dirigi-lo,
convidou Renato Terra, que repetiu a parceria com Ricardo Calil, iniciada no
longa Uma Noite em 67.
"Nesse momento do país, sinto que o filme entra como um sopro de afeto, de
esperança, de força e de clareza", diz Terra à DW Brasil.
Os
dois diretores optaram por um formato minimalista, no qual cada detalhe ganha
relevância: os silêncios, as pausas, as inflexões de Caetano. "Tiramos
imagens de arquivo, tiramos entrevistas, tiramos trilha sonora, tiramos
qualquer efeito de câmera", explica Terra.
No
longa, com 83 minutos de duração e também disponibilizado no Globoplay, Caetano
aparece numa sala cinza vazia da Cidade das Artes, espaço cultural inacabado no
Rio de Janeiro. Ele está sentado em uma cadeira e algumas vezes, poucas, pega o
violão e canta.
"O Antônio
Prata me disse que, ao ver o filme, a experiência dele foi muito melhor assim,
porque foi completando o que Caetano estava dizendo com as imagens da cabeça
dele. É como um filme de terror, por exemplo, que fica muito mais interessante
quando você não mostra o monstro. Você só sugere o monstro", diz Terra.
Os
54 dias de encarceramento de Caetano tiveram início em dezembro de 1968, apenas
14 dias depois da emissão do AI-5. Ele e Gilberto Gil fora retirados de suas
casas em São Paulo e levados para o Rio de Janeiro por policiais à paisana. Em
entrevista à DW Brasil, Caetano relembra os horrores do cárcere: "Eu tinha uma alucinação de que a minha
vida era só aquilo. Eu me lembrava das coisas como se elas fossem apenas
sonhos."
Sobre
o atual momento vivido pelo Brasil, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro,
Caetano diz que a perspectiva para o país é "sombria". "Temos um governo inimigo das
liberdades [...] No médio prazo, a gente olha para frente e não vê uma coisa
muito boa."
DW
Brasil: Como era sua rotina durante os 54 dias em que ficou encarcerado?
Caetano Veloso:
Gil e eu fomos levados para o 1º
Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca. Na primeira semana, eu fiquei numa
solitária. Foi terrível. Dormia no chão, tinha uma privada perto da minha
cabeça, um chuveiro por cima da privada e nada mais. Depois de alguns dias, eu
estava muito mal da cabeça. Achava que nunca tinha vivido outra coisa, senão
aquilo. No fim dessa primeira semana, fomos transferidos, Gil e eu, para um
outro quartel (da Polícia do Exército da Vila Militar, no subúrbio de Deodoro),
onde eu dividi o xadrez com outros rapazes. Eu num xadrez, e Gil no outro. Só
por não estar mais na solitária já era melhor, mas continuava ruim. Não tinha
onde dormir, tinha mais gente do que a cela podia comportar, tínhamos que
dividir um chuveiro para todos. Por fim, me transferiram para o quartel dos
paraquedistas do Exército. Desta vez, eu tinha cama, travesseiro, lençol. Tinha
até um banheiro separado.
Você
dividia a cela com outros artistas e intelectuais?
Eu
não. No xadrez de Gil estavam alguns nomes da cultura brasileira, como o poeta
Ferreira Gular, o escritor Antônio Calado, o jornalista e romancista Paulo
Francis. Geraldo Vandré era procurado. Os militares tinham um ódio violento
dele por causa daquela canção Pra não dizer que não falei das flores, que falava de "soldados armados, amados ou não".
Eu estava com líderes estudantis, rapazes vinculados à Igreja Católica, mas de
esquerda. O Gil estava numa cela melhor porque tinha diploma, ele podia até ter
violão. O sofrimento era grande. A minha mulher [Dedé Gadelha] não sabia onde
eu estava. Ninguém da minha família sabia. Eu fui sequestrado, estava
desaparecido. E já fazia um mês.Foto do corte de cabelo feito na prisão foi parar no cartaz do filme "Narciso em férias" |
Foi
nesse momento que você achou que poderia ser assassinado?
Eu vivi muitos
momentos terríveis. No período final da primeira semana nessa solitária que eu
descrevi, fiquei muito mal da cabeça. Achei que a vida tinha sido sempre
aquilo. Porque eu dormia e acordava, e estava sempre ali. Não via ninguém, não
via nem a mim mesmo. O carcereiro colocava café e um pedaço de pão através de
uma portinhola. Eu tinha uma alucinação de que a minha vida era só aquilo. Eu
me lembrava das coisas como se elas fossem apenas sonhos.
Um dia, quando eu estava
no segundo quartel, o tenente chegou com um soldado. Eu me lembro que o soldado
me olhava chorando. Ele balançava a cabeça, como se reprovasse aquela situação.
Eu pensei: "O que será que vai acontecer?" Lembro-me de meus
companheiros de cela assustados. Eles me olhavam com uma cara como se também
estivessem se perguntando: "O que será que vai acontecer?" Esse
tenente e outros dois outros militares me tiraram da cela. Eles me mandaram
andar na frente deles. Eu saí da minha cela bastante tenso. Estávamos em uma
vila militar. Quando eu estava andando na frente, eles armados atrás de mim
disseram para eu não olhar para trás, e eu pensei: "Vão atirar, vão
atirar."
Então um deles me
disse: "Vire à direita."Eu fui por um corredor, era o barbeiro. Eles
cortaram o meu cabelo, e embora eles estivessem simbolicamente tirando mais um
pedaço da minha liberdade, fiquei feliz. Eles tosaram meu cabelo num estilo
militar, bem batidinho dos lados [A foto do corte foi parar no cartaz do
filme].
Você só
compôs uma música na prisão. Em qual momento isso aconteceu?
Foi no terceiro
quartel, o dos paraquedistas do Exército. A minha mulher [Dedé], enfim, me
encontrou. Ela ficava do lado de fora da grade e, assim, podíamos nos ver. Aí
minha cabeça melhorou e fiz uma canção meio de vontade de estar fora, de ser
solto para eu ver minha irmã mais nova de novo, que era adolescente e tinha uma
risada linda, a Irene. Eu fiz essa música sem violão, sem nada.
"Nesse momento do país, sinto que o filme entra como um sopro de afeto, de esperança", diz o diretor Renato Terra |
Este é o
momento em que você chora no filme, quando a Dedé vai te visitar?
Eu me emocionei por
não lembrar o nome do sargento baiano que facilitou meu encontro com Dedé.
Depois, ele acabou sendo preso. Não gosto de falar disso. A gente teve que
parar a gravação. Mas é preciso ter coragem de enfrentar o tema.
E como
foi quando a Dedé te mostrou a foto do planeta Terra pela primeira vez na
cadeia?
Foi estimulante.
Dedé foi me visitar e levou a revista Manchete.
E tinha as primeiras fotos da Terra tiradas do espaço sideral. Era a primeira
vez que a gente via a Terra. Claro, estudávamos na escola que "a Terra é
redonda", tinha o globo para olharmos, mas ver uma fotografia da Terra
tirada do espaço sideral foi a primeira vez. Aquilo me entusiasmou, fiquei
pensando... Isso não está em lugar nenhum, estou contando a você. Eu pensei
assim: "Mas a Terra aqui aparece toda redondinha, a gente estudou que ela
é achatada nos polos, mas nas fotografias nunca aparece achatada. Mais ou menos
dez anos depois fiz uma canção chamada Terra,
que começa justamente por causa do fato de eu ter visto as primeiras fotos da
Terra, tiradas de fora, de dentro de uma cela: "Quando eu me encontrava
preso, na cela de uma cadeia, foi que vi pela primeira vez, as tais
fotografias…"
O
governo Bolsonaro pode ser comparado ao período da ditadura militar?
Nós temos agora um
governo de extrema direita, mas que foi eleito democraticamente. Oficialmente,
não temos um governo autoritário. Temos um governo inimigo das liberdades. Eles
aparelharam as áreas de cultura, de educação. Eles estão fazendo uma corrosão
da situação democrática. Isso é perigoso. Sem falar no total desrespeito pelos
cuidados ambientais. É duro, porque estão fazendo uma onda populista para se
reelegerem em 2022. A perspectiva é sombria. No médio prazo, a gente olha para
frente e não vê uma coisa muito boa, não. Eles ficam lutando contra os
princípios da democracia, mas dentro das formalidades da democracia. É tenso.
No golpe
militar, não houve opção. Foi um golpe. Agora, os brasileiros escolheram este
governo...
Olha,
não podemos esquecer que o golpe militar de 1964 foi apoiado por grande parte
da população e por toda a imprensa. Por toda a imprensa. Ele foi pedido,
rogado, pelo Globo, pela Folha de S.Paulo, pelo Estadão, todo mundo. E teve uma
passeata que era "Família com Deus pela liberdade", algo assim, que
defendia que estávamos sendo ameaçados pelo comunismo, por causa do governo de
João Goulart, que, na prática, era de centro-esquerda. Até alguns intelectuais
respeitáveis e adoráveis, como Carlos Drummond de Andrade, chegaram a achar
razoável que houvesse um golpe.
1969
Revista Manchete
Rio
de Janeiro – 11 de janeiro de 1969
Ano
16 – n° 873
OPINIÃO
Alberto Villas: As seis canções do cárcere de um
‘Narciso em férias’
ALBERTO VILLAS
11 DE SETEMBRO DE 2020
Caetano tocando no documentário "Narciso em Férias" - Créditos: Divulgação |
Histórias e
lembranças por trás das canções compostas por Caetano em 1969
Caetano Veloso cita seis músicas
no seu depoimento a Renato Terra e Ricardo Calil, sobre sua prisão em 1969,
duas semanas depois do Ato Institucional número 5. No documentário Narciso em Férias, que foi
aplaudido em Veneza no dia 7 de setembro, ele canta três canções e, com dor no
coração e uma certa angústia, silencia sobre as outras três.
Canta
Irene, a única que fez atrás
das grades, quando apertou a saudade da irmã, com então 14 anos de idade. Na
gravação original, que abre o disco de capa branca e que leva apenas sua
assinatura, Caetano erra no início e deixa o erro no vinil: esqueci. Eu vi
que você não estava com cara de quem ia cantar. Eu estava esquecido, quando me
lembrei já foi em cima da hora. Ah, meu Deus… ah! Na letra, uma única
vontade, a de ir embora daquele lugar: eu quero ir minha gente, eu não sou
daqui, eu não tenho nada, quero ver Irene rir, quero ver Irene dar sua risada.
Canta
Terra, a canção que fez,
alguns anos depois, e que sua memória o remeteu ao quartel do Exército. Compôs
a lembrança de Dedé que levou para ele ver a revista Manchete com as fotos da
Terra vista do espaço. Na verdade, um hino ao Planeta Terra: quando eu
estava preso na cela de uma cadeia, foi que vi pela primeira vez as tais
fotografias, em que apareceres inteira, porém não estava nua e sim coberta de
nuvens. É em Terra que ele reconstrói os versos de Paraíba,
de Luiz Gonzaga, aquela Paraíba masculino mulher macho sim senhor! Mando um
abraço pra ti pequenina como se eu fosse o saudoso poeta e fosses a Paraíba.
Canta
Hey Jude, a canção que ouvia
na prisão e que lhe dava a sensação de que dias melhores viriam: Ei, Jude,
não fique mal, pegue uma canção triste e torne-a melhor. Lembre-se de deixá-la
entrar em seu coração, então você pode começar a melhorar as coisas e sempre
que você sentir dor. Ei, Jude, vá com calma, não carregue o mundo nos seus
ombros.
Caetano
não tocou Súplica, sucesso no
vozeirão de Orlando Silva, a canção que um velho comunista, companheiro de
prisão pedia que ele cantasse: Aço frio de um punhal / Foi o seu adeus para
mim / Não crendo na verdade, implorei, pedi / As súplicas morreram num eco em
vão / Sofrendo nas paredes frias de um apartamento.
Não
cantou também Onde o céu azul é mais
azul, uma aquarela brasileira na voz de Francisco Alves, a canção que
Caetano tem medo, medo de chorar ao ouvi-la: Eu já encontrei um dia alguém /
Que me perguntou assim, iá, iá / O seu Brasil o que é que tem / O seu Brasil
onde é que está? / Onde o céu azul é mais azul / E uma cruz de estrelas mostra
o sul / Aí, se encontra o meu país / O meu Brasil grande, e tão feliz.
E
Caetano não cantou Assum Preto,
de Luiz Gonzaga, recuperada pela fatal Gal Costa, outra música que lhe causava
uma tristeza profunda; Tudo em vorta é só beleza / Sol de abril e a mata em
frô / Mas Assum Preto, cego dos óio / Num vendo a luz, aí, canta de dor / Mas
Assum Preto, cego dos óio / Num vendo a luz, aí, canta de dor / Tarvez por
ignorança / Ou mardade das pió / Furaro os óio do Assum Preto / Pra ele assim,
aí, cantá mió.
Sim,
as histórias voltam junto com as canções.
O GLOBO
'Narciso em férias':
Caetano foi preso por 'crime' que Noel Rosa cometeu
Grande revelação do filme é que músico foi parar na cadeia pelo simples
fato de ser cantor e compositor popular
Hugo Sukman
12/09/2020
Caetano Veloso durante entrevista coletiva sobre seu afastamento do Festival da Canção em 1968 - Foto: Arquivo / O GLOBO |
Caetano
Veloso foi preso por um crime que Noel Rosa cometeu. Ou seja, um crime
praticado pela música brasileira, que pelo visto ainda não prescrevera em 1969,
embora ocorrido em 1929.
“—
Noel, há umas coisas aqui que não estão me agradando: ‘Agora vou mudar minha
conduta...’ Repete isso.
Noel
obedece.
—
Essa música não pode ser publicada — interrompe Homero.
—
Por que não?
—
Porque isso não é samba, é o Hino Nacional Brasileiro. Os homens da censura não
vão deixar. Além de proibir, podem até te prender. Não é permitido fazer
brincadeiras com o Hino Nacional.
Depois
de breve silêncio, Noel indaga, meio assustado:
—
E agora?”
O
flagrante do “crime” é reproduzido com detalhes por Carlos Didier e João Máximo
em “Noel Rosa, uma biografia” a partir de descrições das testemunhas que
estavam na casa da Rua Torres Homem, em Vila Isabel, naquela tarde do fim de
1929 — os compositores Braguinha e Almirante e o próprio maestro Homero
Dornellas, que passava para a pauta o samba “Com que roupa?”, que Noel queria
gravar para o carnaval de 30. Ajudado pelo maestro, depois do susto Noel
alterou as notas iniciais do samba, que só seria gravado no ano seguinte, com
imenso sucesso no carnaval de 31 e o crime de subverter o Hino devidamente
ocultado (na prática, não no espírito).
O músico Noel Rosa, que costumava parodirar o Hino Nacional Foto: Arquivo / O GLOBO |
Quarenta anos depois, também na Zona Norte, no batalhão de
paraquedistas em Deodoro, quando se encontrava preso na cela de uma cadeia sem
saber bem por quê, como se fosse Noel num flagrante tardio, Caetano é submetido
ao interrogatório por um tal major Hilton: “Perguntado
se sabe cantar o Hino Nacional responde que sim (...). Perguntado se sabe
cantar ‘Tropicália’, responde que ‘sei’ porque é o autor e cantor dessa música.
Perguntado se sabe cantar o Hino Nacional com a melodia da Tropicália responde
‘é impossível porque os versos do Hino Nacional são decassílabos e os versos de
‘Tropicália’ têm oito sílabas poéticas’.”
Noel
nunca teria esse álibi: basta cantar a letra do “Com que roupa?” na melodia do
Hino Nacional que se vê como cabe perfeitamente. Além disso, todos que
conheciam Noel sabiam que ele costumava fazer paródias até pornográficas do
Hino desde os tempos do Colégio São Bento, e solava sua melodia ao violão.
Essa
fenda no espaço-tempo se abriu devido à talvez mais importante revelação
histórica de “Narciso em férias”, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil
em cartaz no Globoplay, sobre o capítulo do livro de Caetano “Verdade
tropical”, no qual o compositor destrincha as memórias do tempo em que ficou
preso logo após o AI-5, entre dezembro de 68 e fevereiro de 69.
A
partir do conteúdo do interrogatório, revelado pelo filme e lido pelo próprio
Caetano entre risos nervosos e engasgos de engolir lágrimas, é comprovado que
ele e Gilberto Gil de fato foram presos pela acusação de profanarem o Hino
Nacional no show que fizeram em setembro de 1968 na boate Sucata. Só por isso,
por cantar. O que nem cantaram.
No
filme, Caetano revela que a prisão o fez um pouco mais supersticioso, ou pelo
menos mais atento às coincidências, muitas delas musicais — como a de um
vizinho de cela, que pediu que ele cantasse “Súplica”, a valsa que ele cantava
em casa, horas antes de ser preso.
A
coincidência em responder pelo “crime” de Noel talvez seja das mais
impressionantes. Afinal, “Narciso em férias” é baseado na fala de Caetano, é
literalmente “cinema falado”. “O cinema falado” é o nome do único filme
dirigido por Caetano, com título tirado de um samba de... Noel, “Não tem
tradução”.
Caetano Veloso em cena do documentário "Narciso em férias" Foto: VideoFilmes/divulgação / O GLOBO |
Mas tudo transcende às coincidências. E talvez
reflita o caráter profundamente subversivo da música brasileira, sempre
perseguida e vigiada pelos reacionários de plantão. A denúncia que levou à
prisão de Caetano e Gil partiu, por exemplo, de Randal Juliano, apresentador da
TV Record, que exortou militares a tomarem providências quanto ao Hino
supostamente cantado como paródia na Sucata. O mesmo Randal que no Festival da
Record do ano anterior — retratado, ai as coincidências, no filme “Uma noite em
67”, dos mesmos diretores de “Narciso em férias” — perguntava a Caetano nos
bastidores, com visível má vontade, o sentido que ele não via na letra de
“Alegria alegria”, sendo humilhado por Caetano nas respostas.
Na verdade, os reacionários estavam certos. “Com
que roupa?” era mais que uma subversão do Hino Nacional — Noel teria dito a um
tio que queria retratar “o Brasil de tanga”, por causa da Crise de 29 e de sua
pobreza estrutural —, mas o início da incorporação da arte dos negros e
marginalizados à cultura oficial brasileira através do samba que havia acabado
de conquistar o compositor branco. Naquela mesma tarde de 29, aliás, Almirante
e o maestro Homero Dornellas (escondido sob o pseudônimo Candoca da Anunciação)
fizeram o samba “Na Pavuna”, que seria a primeira gravação da história a ter
percussão de samba, pura subversão.
“Tropicália”, por sua vez, com seu ritmo marcheado
também era um hino brasileiro vocacional, querendo organizar movimentos,
orientar o carnaval, inaugurar monumentos no Planalto Central dando vivas à
Banda (do Chico Buarque, não a militar) e a uma “Carmen Miranda dada”,
dadaísta, rebelde, sem sentido convencional. Subversivo, pois, coisa que foi
percebida melhor pelo segundo oficial a interrogar Caetano, um capitão um pouco
mais informado, que ao ouvir o compositor negar o “crime” da Sucata respondeu
algo como: “Mas você é ingênuo ou acha que pode nos fazer de bobos?”
No
futuro, o pai espiritual de Caetano, João Gilberto, cantaria de fato o Hino nos
seus shows, todo editado, com nova harmonia, ainda mais bonito, com ênfase em
alguns trechos — “Se o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da
pátria neste instante” — subversivo.
A
única canção composta por Caetano na prisão, “Irene”, sobre a saudade do riso
da irmã mais nova, seria também no futuro incorporada a outro hino informal,
“Meninas do Brasil”, de Moraes Moreira e Fausto Nilo: “Quando o povo brasileiro
viu Irene dar risada...”. O que leva a crer que Caetano foi preso, sim, no
lugar de Noel e de todos os subversivos da música brasileira pelo simples fato
de ser cantor e compositor popular. Crime perigoso sempre que ressentidos e
reacionários chegam ao poder. Afinal, “tudo aquilo que o malandro pronuncia,
com voz macia, é brasileiro”. Como aliás cantou Noel (e Caetano citou).
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