martes, 7 de enero de 2020

2003 - O POETA EM DACAR


2003
Terceira Margem
Revista do Centro de Estudos Brasileiros
(Adolfo Casais Monteiro)
Facultade de Letras da Universidade do Porto
n° 4

Direção
Arnaldo Saraiva

Pág. 47



O Poeta em Dacar

Cabral ombreia o grou coroado:
Sumário confronto sobre a grama
Em frente ao palácio oficial.
Alguns toureiros trazem socorro:
Vêm de seus versos. Muito econômicos,
Nenhum ostenta cores ou cheiros;
Nenhum, sensualidade; embora
Aceso tenham o sexo. Nenhum
Senegaliza. Porém a cola
Que não mascam é como se fosse
A fibra mesma, o osso-poeta
Que sustenta o corpo pequenino
Desse homem desembaraçado
Em sua angústia. Expositivo,
Ele apenas informa é um coan
Sobre a particularidade deles,
Os grous, de, macho ou fêmea, terem
Reações opostas à chegada
De outro animal aqui, este homem
Em seu território: a fêmea avança,
O macho, muito tímido, esquiva-se.
Ou será o contrário, pergunta-nos
O poeta sério e buster keaton.
E conclusivo: um ou outro é
O que ataca; um ou outro, o que foge.
Volta à lajota da varanda sem
Olhar para as aves no gramado
Atrás de si. E muda de assunto



CAETANO VELOSO O POETA

‘O Poeta em Dacar’ é o título do primeiro poema do músico, letrista e intérprete Caetano Veloso, que decidiu privilegiar uma publicação portuguesa para a edição da obra que, assume, ter sido concebida como “não letra de canção”.


27 de Fevereiro de 2004.

O poema em causa figura no número 4, da revista literária ‘Terceira Margem’, e evoca, com uma aura épica, a estada do poeta João Cabral de Melo Neto em Dacar (Senegal), onde desempenhou o cargo de embaixador do Brasil.

Editada pelo Centro de Estudos Brasileiros (Adolfo Casais Monteiro) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ‘Terceira Margem’ dá assim continuidade, neste registo com foros de inusitado, à sua aposta de revelar a nova poesia brasileira.

“Os poemas publicados nessa secção são sempre presumidos como inéditos. É o caso dos assinados, neste número, por Tarso de Melo e Ruy Espinheira Filho. Essa condição também teria de ser contemplada, no que se refere ao de Caetano, por ele apresentado como um texto assumidamente de poesia”, explica o Prof. Arnaldo Saraiva, director da revista.

Entre outras colaborações inéditas de autores brasileiros, este número insere textos em prosa de Ignácio de Loyola Brandão e Cláudio Aguiar.

SINTONIAS

Reputado como um dos maiores especialistas portugueses em Literatura Brasileira, Arnaldo Saraiva explica a primazia dada por Caetano à revista, pelas sintonias culturais e intelectuais que os unem, consolidadas em encontros frequentes, ora no Brasil, ora em Portugal. Certa ocasião, professor e artista visitaram precisamente o poeta João Cabral de Melo Neto, vivência que terá estado na origem da poesia e da sua publicação com prioridade em Portugal.

A faceta de poeta é apenas a mais recente desta inquieta e irrequieta figura da cultura contemporânea do Brasil, nascida em Santo Amaro da Purificação, Bahia, em 1942.

Após ter liderado, nos anos 60, a revolução tropicalista na música brasileira, Caetano experimentou os seus dotes de cineasta – em ‘Cinema Falado’, agora reeditado em DVD – e alardeou talentos literários como prosador em ‘Verdade Tropical’, edição da Quasi Edições. Esta mesma editora deu recentemente à estampa ‘Letra Só’, uma antológica recolha das líricas de Veloso nos seus quase 40 anos de canções, seleccionada por Eucanaã Ferraz. Embora seja difícil catalogar como apenas “letra só”, textos plenos de textura e densidade poéticas como ‘Sampa’ ou ‘Terra’.




2001
Revista CULT
n° 49 - Ano V
REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA
Agosto de 2001

Bernardo Vorobow e Carlos Adriano


. . . 
CULT Queríamos partir de João Gilberto e chegar a João Cabral, que parecem ter sido referências centrais para você num dado momento, citando um trecho do texto de música popular e poesia, do Antônio Medina Rodrigues: “O canto a palo seco seria uma espécie de arkhé de todo canto, filosofia vocal ou experiência do canto antes do próprio canto. Com muita distância, a voz de João Gilberto faz algo parecido, mas o faz mais por sua semelhança natural com uma das vertentes da poesia de João Cabral de Melo Neto, dada a maneira com que tanto o poeta quanto o cantor parecem mastigar e remastigar as mesmas palavras, levando-as a uma lisura espectral, a uma quase-neblina geométrica. Ambos estão na corrente que busca idéias puras, um depuramento do concreto que, no fim e ao cabo, acaba dando um certo pitagorismo estético”.

CAETANO VELOSO Eu tenho impressão de que esses dois artistas podem ter me atraído, em grande parte, por características semelhantes a essas escritas pelo Medina. Mas o fato é que são dois artistas que me interessaram muito. E nós não falamos mesmo de João Cabral de Melo Neto, que é o mais importante, porque foi no âmbito da poesia; por um momento ele representou para mim uma verdadeira monomania. Ele pareceu centralizar tudo e resolver todos os problemas. Houve um momento em que ele me pareceu ser o maior poeta vivo do mundo.
João Gilberto adora poesia. No texto “João Gilberto e os jovens baianos” (Balanço da bossa), Augusto conta seu encontro com João em 1968 em Nova Jersey. Ele relata a conversa com João, que falou: “Para mim, é Caetano e Drummond”. E aí o Augusto disse: “O Caetano fala que, para ele, é João e João”. [ri] Porque, para mim, era João Cabral e João Gilberto. Nessa época, quando Augusto me conheceu, em 1967, eu dizia isso todo o tempo: para mim, o negócio era João Gilberto e João Cabral. Mas mais do que procurei - ao fazer O cinema falado - não apresentar sotaques godardianos no ritmo ou na feitura ou no que quer que fosse, eu procurava - na mina lírica [ri] e nas minha letras de música -fugir o mais que pudesse dos cabralismos. Eu me lembro de que, quando ainda estaba no secundário em Salvador, no final do curso clássico, eu fazia uns negócios de brincadeira, escrevendo - imitava a Clarice Lispector, imitava o Guimarães Rosa e imitava o João Cabral. Certa vez, eu fui ver umas meninas lutarem capoeira com aqueles velhos capoeiristas da Bahia. Eram amigas minhas, que estavam na escola de dança e entraram na escola de capoeira. Achei aquilo maravilhoso: elas jogando com os caras e depois entre si. Eu descrevi a cena primeiro como se fosse o Guimarães Rosa, depois como se fosse a Clarice Lispector e depois como se fosse um poema do Cabral, com aquelas rimas toantes, aquele ritmo que é uma métrica às vezes um pouco quebrada, mas uma métrica de versos de oito sílabas, sem as cesuras nos lugares confortáveis, que o Cabral procurava na educação dele pela pedra... Se bem que na Educação pela pedra já não são versos de oito sílabas, e sim versos mais longos. Eu fiz um negócio assim, imitando. Mas eu perdi isso, eu fiz só para brincar e mostrar a elas. Então, nas minhas letras de música, eu procurava não me deixar, de forma nenhuma, parecer com aquilo nem por nada, nem na forma nem nas idéias. No Cinema falado tem um pastiche... Isso eu disse ao João Cabral e ele ficou impassível, olhando para mim, com os olhos duros, como quem diz: “Não vou lhe perguntar nada sobre isso, não quero nem saber.” Eu falei para ele: “João, eu fiz um filme, e no filme eu escrevi um falso poema, um pastiche de poema seu sobre você, sobre a sua poesia.” No início do filme, na hora que alguém assobia O cinema falado, aparece o Luiz Zerbini, sentado, na festa, e diz: “João Cabral de Melo Neto / tentando limpar a poesía / de toda rosa / toda merda / e fazendo-a ainda mais ridícula / mas, não poetizar o poema / sim, mas e quanto a poetizá-lo? / seu fado de magia e música o acossa de todos os lados”. É metacrítico, é Cabral e é uma coisa que põe em dúvida a decisão do Cabral, e de uma certa forma critica a crítica que ele faz... Mas é besteira, porque isso também já está incluído na poesia dele - uma resposta crítica à própria crítica a ele feita. É que o meu é feito de fora, o meu é pastiche, como disse a ele. Ele era muito firme, muito engraçado, um homem fascinante. Eu o vi numa das cenas que eu tenho na cabeça como uma das mais deslumbrantes desse mundo, e tão parecida com os poemas dele! Foi em Dacar, quando ele era embaixador. Eu e Gil estávamos saindo de sua casa, que tinha um jardim grande com um gramado bonito. Estávamos conversando, e ele muito afável, atencioso, simpático, direto. Então ele mostrou dois grous coroados. Aquela ave alta, e ele baixinho. E João disse assim: “É, são muito bonitos. Um é macho e a outra é fêmea. Mas são absolutamente iguais. Sabe como a gente sabe qual é o macho e qual é a fêmea? Se você se aproximar, o macho ataca, e a fêmea não ataca. Ou é ao contrário, não sei... Talvez seja a fêmea que ataca e o macho não ataca. Mas é assim que se descobre qual dos dois é o macho e qual dos dois é a fêmea.” Então ele disse: “Vocês querem ver?” E andou diretamente para o gramado, reto assim. E um dos grous atacou, e o outro saiu timidamente de perto dele. Ele parecia um toureiro, porque ele ficou 100% concentrado nos movimentos do grou e se aproximava até o máximo de risco e logo voltava.
E o grou desarmava, e ele de novo, umas três vezes. Parecia a cena de uma tourada... Estranho, o pássaro quase da altura dele. E daí ele voltou, reto, como quem não tivesse feito nada. E continuou a conversa: “Viu? É assim. Ou é o macho ou é a fêmea, é um dos dois. Mas é assim que se sabe.” E mudou de assunto e falou de outras coisas [ri].
. . .




FOLHA DE S.PAULO


ilusTRÍSSIMA


Leia poema de Caetano Veloso em homenagem a João Cabral


Centenário do poeta pernambucano, morto em 1999, será celebrado no próximo dia 9

4 de janeiro 2020
Caetano Veloso

Na minha juventude, João Cabral foi meu poeta preferido. As rimas toantes, a secura, aquele avesso do surrealismo que era o cerne de seu impulso experimental me arrebataram para além do que me parecia ser o mais elevado estágio de poesia: Drummond.


Ilustração feita por Cássio Loredano (*) sobre João Cabral de Melo Neto


Quando conheci Cabral pessoalmente (no Senegal, onde ele era embaixador e aonde fui com Gil, a caminho do Festac na Nigéria) sua personalidade fascinou-me tanto quanto os seus poemas. Estive com ele mais três vezes depois dessa. Uma no Porto, onde ele servia como cônsul, e duas no Rio: em sua casa e numa leitura/palestra que ele deu ao lado de John Ashbery e Joan Brossa, em evento organizado por Waly Salomão e Antonio Cicero.

A suas casas, do Porto e do Rio, quem me levou foi o professor Arnaldo Saraiva, autoridade em modernismo português e brasileiro. Em todos os encontros, a intensidade de sua presença toda cheia de vida foi sempre uma experiência inesquecível.

Quis anotar o que me marcou no primeiro desses encontros de modo adequado e me vi escrevendo um poema que se esforçava por aproximar-se de sua poesia -sem propriamente imitá-la- e de retratar sua pessoa -sem propriamente descrevê-la.

Quando contei a Arnaldo, nosso amigo comum, este quis publicar minha tentativa na revista portuguesa Terceira Margem. Fiquei orgulhoso. E voltei a orgulhar-me quando Claudio Leal me disse que a Ilustríssima talvez a reproduzisse.

Acho que se Cabral estivesse vivo eu teria vergonha. Faço canções e não poemas -e, se estes são coisas muito diferentes daquelas, meus erros e acertos no presente exemplo serão do tipo que reafirma essa diferença.





JORNAL DO BRASIL - 26/10/1993







































 
 









 
 








 
 
 




3/12/1997 - O poeta João Cabral de Melo Neto (Recife, 9/1/1920 — Rio de Janeiro, 9/10/1999) na sala de seu apartamento, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro (RJ). - Foto: Eder Chiodetto / Folhapress)



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Cássio Loredano é caricaturista e ilustrador com colaborações em publicações de relevância internacional, como os jornais "The New York Times" e "El País". Seus trabalhos são tema de mostra no Instituto José Resende em São Paulo (somente aos sábados, de 18/1 a 13/2/2020)





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