2003
Terceira
Margem
Revista do Centro de Estudos Brasileiros
(Adolfo Casais Monteiro)
Facultade de Letras da Universidade do Porto
n° 4
Revista do Centro de Estudos Brasileiros
(Adolfo Casais Monteiro)
Facultade de Letras da Universidade do Porto
n° 4
Direção
Arnaldo Saraiva
Pág. 47
Arnaldo Saraiva
Pág. 47
O Poeta em Dacar
Cabral ombreia o grou coroado:
Sumário confronto sobre a grama
Em frente ao palácio oficial.
Alguns toureiros trazem socorro:
Vêm de seus versos. Muito econômicos,
Nenhum ostenta cores ou cheiros;
Nenhum, sensualidade; embora
Aceso tenham o sexo. Nenhum
Senegaliza. Porém a cola
Que não mascam é como se fosse
A fibra mesma, o osso-poeta
Que sustenta o corpo pequenino
Desse homem desembaraçado
Em sua angústia. Expositivo,
Ele apenas informa é um coan
Sobre a particularidade deles,
Os grous, de, macho ou fêmea, terem
Reações opostas à chegada
De outro animal aqui, este homem
Em seu território: a fêmea avança,
O macho, muito tímido, esquiva-se.
Ou será o contrário, pergunta-nos
O poeta sério e buster keaton.
E conclusivo: um ou outro é
O que ataca; um ou outro, o que foge.
Volta à lajota da varanda sem
Olhar para as aves no gramado
Atrás de si. E muda de assunto
CAETANO VELOSO O POETA
‘O Poeta em Dacar’ é o título do primeiro poema do músico, letrista e intérprete Caetano Veloso, que decidiu privilegiar uma publicação portuguesa para a edição da obra que, assume, ter sido concebida como “não letra de canção”.
27 de Fevereiro de 2004.
O poema em causa figura no número 4, da revista
literária ‘Terceira Margem’, e evoca, com uma aura épica, a estada do poeta João Cabral
de Melo Neto em Dacar (Senegal), onde desempenhou o cargo de embaixador do
Brasil.
Editada pelo Centro de Estudos Brasileiros (Adolfo
Casais Monteiro) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ‘Terceira Margem’
dá assim continuidade, neste registo com foros de inusitado, à sua aposta de
revelar a nova poesia brasileira.
“Os poemas publicados nessa secção são sempre
presumidos como inéditos. É o caso dos assinados, neste número, por Tarso de
Melo e Ruy Espinheira Filho. Essa condição também teria de ser contemplada, no
que se refere ao de Caetano, por ele apresentado como um texto assumidamente de
poesia”, explica o Prof. Arnaldo Saraiva, director da revista.
Entre outras colaborações inéditas de autores brasileiros,
este número insere textos em prosa de Ignácio de Loyola Brandão e Cláudio
Aguiar.
SINTONIAS
Reputado como um dos maiores especialistas
portugueses em Literatura Brasileira, Arnaldo Saraiva explica a primazia dada
por Caetano à revista, pelas sintonias culturais e intelectuais que os unem,
consolidadas em encontros frequentes, ora no Brasil, ora em Portugal. Certa
ocasião, professor e artista visitaram precisamente o poeta João Cabral de Melo
Neto, vivência que terá estado na origem da poesia e da sua publicação com
prioridade em Portugal.
A faceta de poeta é apenas a mais recente desta
inquieta e irrequieta figura da cultura contemporânea do Brasil, nascida em
Santo Amaro da Purificação, Bahia, em 1942.
Após ter liderado, nos anos 60, a revolução
tropicalista na música brasileira, Caetano experimentou os seus dotes de
cineasta – em ‘Cinema Falado’, agora reeditado em DVD – e alardeou talentos
literários como prosador em ‘Verdade Tropical’, edição da Quasi Edições. Esta
mesma editora deu recentemente à estampa ‘Letra Só’, uma antológica recolha das
líricas de Veloso nos seus quase 40 anos de canções, seleccionada por Eucanaã
Ferraz. Embora seja difícil catalogar como apenas “letra só”, textos plenos de
textura e densidade poéticas como ‘Sampa’ ou ‘Terra’.
2001
Revista CULT
n° 49 - Ano V
REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA
Agosto de 2001
n° 49 - Ano V
REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA
Agosto de 2001
Bernardo Vorobow e Carlos Adriano
. . .
CULT Queríamos partir de João Gilberto e chegar a João Cabral, que
parecem ter sido referências centrais para você num
dado momento, citando um trecho do texto de música popular e poesia, do Antônio
Medina Rodrigues: “O canto a palo seco seria uma espécie de arkhé de todo canto,
filosofia vocal ou experiência do canto antes do próprio canto. Com muita distância, a
voz de João Gilberto faz algo parecido, mas o faz mais por sua semelhança natural com
uma das vertentes da poesia de João Cabral de Melo Neto, dada a maneira com que tanto
o poeta quanto o cantor parecem mastigar e remastigar as mesmas palavras,
levando-as a uma lisura espectral, a uma quase-neblina geométrica. Ambos estão na
corrente que busca idéias puras, um depuramento do concreto que, no fim e ao cabo,
acaba dando um certo pitagorismo estético”.
CAETANO VELOSO Eu tenho impressão de que esses dois artistas podem ter me atraído, em grande parte, por
características semelhantes a essas escritas pelo Medina. Mas o fato é que são dois
artistas que me interessaram muito. E nós não falamos mesmo de João Cabral de Melo
Neto, que é o mais importante, porque foi no âmbito da poesia; por um momento ele
representou para mim uma verdadeira monomania. Ele pareceu centralizar
tudo e resolver todos os problemas. Houve um momento em que ele me pareceu ser o
maior poeta vivo do mundo.
João Gilberto adora poesia. No texto
“João Gilberto e os jovens baianos” (Balanço da bossa), Augusto conta seu encontro
com João em 1968 em Nova Jersey. Ele relata a conversa com João, que falou: “Para
mim, é Caetano e Drummond”. E aí o Augusto disse: “O Caetano fala que, para ele,
é João e João”. [ri] Porque, para mim, era João Cabral e João Gilberto. Nessa época,
quando Augusto me conheceu, em 1967, eu dizia isso todo o tempo: para mim, o
negócio era João Gilberto e João Cabral. Mas mais do que procurei - ao fazer O cinema
falado - não apresentar sotaques godardianos no ritmo ou na feitura ou no que quer
que fosse, eu procurava - na mina lírica [ri] e nas minha letras de música -fugir o mais
que pudesse dos cabralismos. Eu me lembro de que, quando ainda estaba no
secundário em Salvador, no final do curso clássico, eu fazia uns negócios de brincadeira,
escrevendo - imitava a Clarice Lispector, imitava o Guimarães Rosa e imitava o
João Cabral. Certa vez, eu fui ver umas meninas lutarem capoeira com aqueles
velhos capoeiristas da Bahia. Eram amigas minhas, que estavam na escola de
dança e entraram na escola de capoeira. Achei aquilo maravilhoso: elas jogando
com os caras e depois entre si. Eu descrevi a cena primeiro como se fosse o Guimarães Rosa, depois como se fosse
a Clarice Lispector e depois como se fosse um poema do Cabral, com aquelas rimas
toantes, aquele ritmo que é uma métrica às vezes um pouco quebrada, mas uma
métrica de versos de oito sílabas, sem as cesuras nos lugares confortáveis, que
o Cabral procurava na educação dele pela pedra... Se bem que na Educação pela
pedra já não são versos de oito sílabas, e sim versos mais longos. Eu fiz um
negócio assim, imitando. Mas eu perdi isso, eu fiz só para brincar e mostrar a
elas. Então, nas minhas letras de música, eu procurava não me deixar, de forma
nenhuma, parecer com aquilo nem por nada, nem na forma nem nas idéias. No Cinema falado tem um
pastiche... Isso eu disse ao João Cabral e ele ficou impassível, olhando para mim, com os
olhos duros, como quem diz: “Não vou lhe perguntar nada sobre isso, não quero
nem saber.” Eu falei para ele: “João, eu fiz um filme, e no filme eu escrevi um
falso poema, um pastiche de poema seu sobre você, sobre a sua poesia.” No
início do filme, na hora que alguém assobia O cinema falado, aparece o
Luiz Zerbini, sentado, na festa, e diz: “João Cabral de Melo Neto / tentando
limpar a poesía / de toda rosa / toda merda / e fazendo-a ainda mais ridícula /
mas, não poetizar o poema / sim, mas e quanto a poetizá-lo? / seu fado de magia
e música o acossa de todos os lados”. É metacrítico, é Cabral e é uma coisa
que põe em dúvida a decisão do Cabral, e de uma certa forma critica a crítica
que ele faz... Mas é besteira, porque isso também já está incluído na poesia dele
- uma resposta crítica à própria crítica a ele feita. É que o meu é feito de fora,
o meu é pastiche, como disse a ele. Ele era muito firme, muito engraçado,
um homem fascinante. Eu o vi numa das cenas que eu tenho na cabeça como uma das
mais deslumbrantes desse mundo, e tão parecida com os poemas dele! Foi em
Dacar, quando ele era embaixador. Eu e Gil estávamos saindo de sua casa, que
tinha um jardim grande com um gramado bonito. Estávamos conversando, e ele
muito afável, atencioso, simpático, direto. Então ele mostrou dois grous coroados.
Aquela ave alta, e ele baixinho. E João disse assim: “É, são muito bonitos. Um é
macho e a outra é fêmea. Mas são absolutamente iguais. Sabe como a gente sabe
qual é o macho e qual é a fêmea? Se você se aproximar, o macho ataca, e a fêmea
não ataca. Ou é ao contrário, não sei... Talvez seja a fêmea que ataca e o
macho não ataca. Mas é assim que se descobre qual dos dois é o macho e qual dos
dois é a fêmea.” Então ele disse: “Vocês querem ver?” E andou diretamente para
o gramado, reto assim. E um dos grous atacou, e o outro saiu timidamente de
perto dele. Ele parecia um toureiro, porque ele ficou 100% concentrado nos movimentos do grou e se aproximava
até o máximo de risco e logo voltava.
E o grou desarmava, e ele de novo,
umas três vezes. Parecia a cena de uma tourada... Estranho, o pássaro quase da altura
dele. E daí ele voltou, reto, como quem não tivesse feito nada. E continuou a
conversa: “Viu? É assim. Ou é o macho ou é a fêmea, é um dos dois. Mas é assim que se
sabe.” E mudou de assunto e falou de outras coisas [ri].
. . .
FOLHA DE S.PAULO
ilusTRÍSSIMA
Leia poema de Caetano Veloso em homenagem a João
Cabral
Centenário do poeta pernambucano,
morto em 1999, será celebrado no próximo dia 9
4 de janeiro 2020
Caetano Veloso
Na minha juventude, João Cabral foi meu poeta
preferido. As rimas toantes, a secura, aquele avesso do surrealismo que era o
cerne de seu impulso experimental me arrebataram para além do que me parecia
ser o mais elevado estágio de poesia: Drummond.
Ilustração feita por Cássio Loredano (*) sobre João Cabral de Melo Neto |
Quando conheci Cabral pessoalmente (no Senegal,
onde ele era embaixador e aonde fui com Gil, a caminho do Festac na Nigéria)
sua personalidade fascinou-me tanto quanto os seus poemas. Estive com ele mais
três vezes depois dessa. Uma no Porto, onde ele servia como cônsul, e duas no
Rio: em sua casa e numa leitura/palestra que ele deu ao lado de John Ashbery e
Joan Brossa, em evento organizado por Waly Salomão e Antonio Cicero.
A suas casas, do Porto e do Rio, quem me levou foi
o professor Arnaldo Saraiva, autoridade em modernismo português e brasileiro.
Em todos os encontros, a intensidade de sua presença toda cheia de vida foi
sempre uma experiência inesquecível.
Quis anotar o que me marcou no primeiro desses
encontros de modo adequado e me vi escrevendo um poema que se esforçava por
aproximar-se de sua poesia -sem propriamente imitá-la- e de retratar sua pessoa
-sem propriamente descrevê-la.
Quando contei a Arnaldo, nosso amigo comum, este
quis publicar minha tentativa na revista portuguesa Terceira Margem. Fiquei
orgulhoso. E voltei a orgulhar-me quando Claudio Leal me disse que a
Ilustríssima talvez a reproduzisse.
Acho que se Cabral estivesse vivo eu teria
vergonha. Faço canções e não poemas -e, se estes são coisas muito diferentes
daquelas, meus erros e acertos no presente exemplo serão do tipo que reafirma
essa diferença.
JORNAL DO BRASIL - 26/10/1993 |
_________________________
Cássio Loredano é caricaturista e ilustrador com
colaborações em publicações de relevância internacional, como os jornais
"The New York Times" e "El País". Seus trabalhos são tema
de mostra no Instituto José Resende em São Paulo (somente aos sábados, de 18/1
a 13/2/2020)
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