No texto da seção GQ
Vozes, Caetano Veloso narra o dia que os dois se conheceram em sua casa em Salvador.
Revista GQ Brasil
Outubro
Caetano Veloso apresenta Majur: "Ouvi-la e vê-la é, hoje, um luxo para os brasileiros"
A convite da GQ Brasil, o ícone da MPB descreve uma de suas vozes mais
jovens: “Uma expressão artística saída da zona nuclear da sociedade baiana, de
sua história e de seus espontâneos projetos rebeldes”
CAETANO VELOSO
05 OUT 2019
05 OUT 2019
Um canto e um instante: “É uma menina de 23 anos pertencente à geração que trata desses assuntos de fluidez de gênero com naturalidade”, diz Caetano Veloso Foto: Vavá Ribeiro |
Majur
surgiu pela porta da sala de jantar da minha casa em Salvador. Ele veio trazido
por Maria Gadú e Lua Leça. Digo “ele” porque, ao ver aquela pessoa de 1 metro e
93, com pernas enormes, sentar-se à mesa, pensei: “Nunca tinha encontrado esse
cara alto que chegou com Lua e Gadú. Ninguém me apresentou. Ele fica muito
bonito assim com esse cabelo de mulher e essa roupa que poderia ser de mulher,
além da gesticulação bem definida no que é visto como feminino hoje em dia”.
Alguns
longos minutos depois, ele tinha se aproximado da cadeira que ficava perto da
minha e dito: “Nem imaginava que estava
vindo a sua casa. Meu nome é Majur”. E conversamos sobre nossas amigas não
terem avisado a nós dois sobre o encontro que estava se dando. Demoro muito
para comer um prato. Quando repito, então, a mesa fica vazia antes que eu
chegue à metade do segundo. Quando finalmente saí da mesa, fomos todos para a sala
onde tem sofás e poltronas. Ali ouvi mais Majur. Observei sua beleza peculiar e
o casal Gadú-Lua riu conosco do susto duplo que elas nos prepararam.
Dentro
de algum tempo Majur estava cantando. A primeira vez que eu a ouvi em música foi
“a palo seco”, “a capella”: sem violão ou pandeiro, piano ou xique-xique. Aqui
já penso “ela”, escrevo que “a ouvi”. Desde esse instante fiquei sabendo que
era indiferente chamá-la de “ela” ou “ele”: diz-se “não binário”. É uma menina
de 23 anos, pertence à geração que trata desses assuntos de fluidez de gênero
com naturalidade. Mas a voz! A voz!
Majur
sem microfone é muito mais Majur. Sem instrumentos e sem microfone, é muito
mais do que um canto. Aqui a gente enfim percebe a estética do volume e do
timbre.
Depois
disso, todos os que estavam naquela sala se enamoraram da personalidade
artística de Majur. Mas não paramos por aí. Ela tinha sua história na cidade.
Nascera e começara a crescer no Uruguai, não o país que fica ao sul do Rio
Grande do Sul e ao leste da Argentina, mas o bairro da Cidade Baixa onde se
ergueu o que veio a se chamar de Alagados, conjunto precário e amplo de
palafitas que entrou em verso de música dos Paralamas.
Ele
– ela – era também um ponto profundo da estrutura da cidade. Menino negro e bonito,
que encontrara, juntamente com sua irmã, amparo, compreensão e exemplo na mãe,
assistente e educadora social. Esta os levava para ver o que se passava com os
menores carentes de quem ela devia cuidar. A irmã de Majur, irmã única e mulher
cis, hoje mãe de um bebê, foi sempre uma protetora intuitiva do moleque
talentoso e fora do comum.
Majur
não é só uma voz potente. Muito menos apenas uma pessoa exuberante, de pele
muito lisa e quadríceps deslumbrantes, que não se define pelo sexo biológico em
que nasceu. Ele não é um gesto de afirmação política de um grupo ou de uma
tendência. Ela é uma expressão artística saída da zona nuclear da sociedade
baiana, de sua história e de seus espontâneos projetos rebeldes.
Com
sua boca enorme, passa pelos roucos aveludados e pelos ásperos, pelos falsetes
delicados e pelos agudíssimos gritos que saem como que de grandes cavernas.
Atenta ao carnaval, conhecedora do rap e das ondas de trap e reggaeton, Majur
tem ouvido para o desenrolar do rhythm & blues e compõe e canta dentro do
gosto pop da história dessa corrente. É o pop captado diretamente pela
sensibilidade popular, constantemente refeito por essa sensibilidade que lhe
deu nome.
Ouvir
e ver Majur é, hoje, um luxo para os brasileiros. Que o Brasil acerte a fazer vozes
como a sua ecoarem no mundo. Que sua elegância ensine os modos refinados ao
mundo meio desengonçado que temos hoje em dia. E que o brilho de sua pele o
ilumine.
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