No
dia 13 de dezembro de 1968, a ditadura decretava o AI-5 (Ato Institucional n°
5), conhecido como o golpe dentro do golpe militar.
“Ande em frente e não olhe
para trás. Aí eu fiquei com medo. E fui andando. Aí eu pensei que eles iam
atirar. Eu fui tirado de meu apartamento, minha casa, de minha vida. E fui
levado por um caminho absurdo que começou com uma viagem grande de São Paulo ao
Rio. Depois fui jogado numa solitária. Comecei a achar que a vida era aquilo
ali. Só aquilo. E durmia. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida
lá fora, era um espécie de sonho que eu tenha tido... A gente não tinha fama de
ser esquerda. A esquerda reagia contra nós, contra o que a gente fazia. E aí eu
me olhei no espelho. E não é que eu não sabia quem era. Eu não sabia o que era
aquilo”. Fiquei num sofrimento total. Num desespero total. Meu pai veio na
frente e me viu: ‘Não me diga que estes filhos da puta te botaram nervoso!’. Ele falou isto e eu fiquei bom.
Me lembro muito de
uma frase de Rogério [Rogério Duarte] quando a gente é preso é
preso para sempre”. E eu às vezes sinto isso”.
[do depoimento de Caetano Veloso sobre os dias na prisão decretada pelo AI-5]
Com Danilo Rodrigues |
“NARCISO EM
FÉRIAS" na Biennale di Veneza!
O
documentário dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil produzido por Paula
Lavigne, em coprodução com a VideoFilmes (Walter Salles e João Moreira Salles) foi selecionado
para o 77º Festival de Veneza, na categoria oficial Out of Competition.
No
longa, Caetano Veloso relembra sua prisão na Ditadura
Militar, quando ele e Gilberto Gil foram retirados de suas casas e deixados em
celas sem nenhuma explicação do regime. Cinquenta e dois anos depois, Caetano
relata o período mais duro de sua vida e reflete sobre os 54 dias que passou
encarcerado.
O
77º Festival de Veneza, que acontece de 2 a 12 de setembro, na Itália, o
primeiro festival em formato presencial desde o início da pandemia de covid-19.
Viva
o Cinema Brasileiro!
[28/7/2020, Uns Produções
e Filmes, Facebook]
O Globo
28/07/2020
Documentário sobre prisão
de Caetano Veloso em 1968 é selecionado para Festival de Veneza
No filme dirigido por Renato
Terra e Ricardo Calil, compositor narra suas memórias do cárcere
Caetano lembra de prisão na ditadura em documentário Foto: Divulgação |
O documentário “Narciso em Férias”, sobre a prisão de Caetano Veloso em 1968, foi selecionado para o 77º Festival de Veneza, previsto para ocorrer de 2 a 12 de setembro, na Itália. No longa, Caetano Veloso relembra sua prisão na ditadura militar, quando ele e Gilberto Gil foram retirados de suas casas em São Paulo por agentes à paisana duas semanas após o decreto do AI-5.
O
filme participa da seção oficial Out of
Competition. Escrito e dirigido por Renato Terra (“Uma noite em 67”) e
Ricardo Calil (“Cine Marrocos”), o documentário é produzido por Paula Lavigne,
e coproduzido pela VideoFilmes, de Walter Salles e João Moreira Salles.
O
título "Narciso em Férias", que também dá nome ao capítulo sobre a
prisão de Caetano em seu livro "Verdade tropical", foi tirado do
romance “Este lado do paraíso”, do escritor norte-americano F. Scott
Fitzgerald. Ele se refere ao fato de Caetano ter passado quase dois meses sem
se olhar no espelho.
Foi
na prisão que o compositor recebeu de sua então esposa Dedé um exemplar da
revista "Manchete", com fotos inéditas da Terra vista do espaço, o
que inspirou a composição da música "Terra" dez anos depois. Na
cadeia, compôs "Irene", lembrando a risada de sua irmã mais nova.
Sem
receber explicações do regime, Caetano e Gil foram levados ao Rio de Janeiro,
deixados em duas solitárias por uma semana e depois transferidos para celas. A
censura prévia impediu os jornais de divulgarem suas prisões. Cinquenta e dois
anos depois, Caetano relata o período mais duro de sua vida e reflete sobre os
54 dias que passou encarcerado.
Dos
dias na solitária, Caetano lembra: "Eu
tinha que comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma
eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a
lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho
que eu tinha tido. Me lembro muito de uma frase que o Rogério Duarte me disse
logo que eu fui solto: 'Quando a gente é preso, é preso para sempre'. Acho que
é assim mesmo", afirma o cantor no documentário.
Ficou pronto o cartaz do "Narciso em
Férias", que dirigi com o Ricardo Calil. O filme estreia dia 7 de setembro no festival de
Veneza. Essa foto rara do @caetanoveloso foi encontrada
pelo @lpedret. É uma das surpresas do filme. Vem mais por aí. A arte é da
Claudia Warrak.
[Renato Terra]
Programa do Festival |
FOLHA DE S.PAULO
São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997.
O
TROPICALISMO NO CÁRCERE
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Hoje pode soar ingênuo, quase improvável, mas na
manhã do dia 27 de dezembro de 1968, quando agentes da Polícia Federal o
levaram preso, Caetano Veloso não entendeu por quê.
Foi só durante o cárcere que encontrou a resposta,
como demonstra em "Verdade Tropical".
E a resposta lhe chegou sob a roupagem de uma tese
que, no final das contas (e sempre de acordo com a ótica muito pessoal de
Caetano), tende a diferenciar e engrandecer o tropicalismo. Coloca-o um patamar
acima das outras correntes culturais que sacudiram o Brasil dos anos 60.
Para o cantor, setores do governo militar nutriam
um juízo específico (e sofisticado) do movimento que os baianos capitanearam.
Tomavam-no como mais ameaçador à ordem instituída do que, por exemplo, as
canções engajadas de Geraldo Vandré ou as peças politizadas de Gianfrancesco
Guarnieri e Augusto Boal.
Cinco relatórios que a Folha descobriu nos arquivos
do extinto Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), em São
Paulo, apontam para um caminho diferente.
Permitem inferir que os militares não distinguiam o
tropicalismo entre as tantas manifestações culturais ditas de oposição.
Confundiam umas com outras e reuniam, todas, sob os rótulos de
"subversivas" ou "esquerdistas".
A palavra "tropicalismo" não aparece em
nenhum documento. Somente dois trazem a expressão "tropicália" ou
"tropicalista".
Convém ressalvar que os cinco relatórios são apenas
a parte visível de milhares de outros papéis que se perderam ou que a própria
máquina da repressão destruiu -e que poderiam eventualmente corroborar a tese
de Caetano.
Cheios de erros gramaticais e redigidos por
informantes anônimos dos serviços de espionagem, os documentos localizados pela
Folha ostentam as inscrições "reservado", "secreto" ou
"confidencial".
Em 1992, durante uma entrevista para Jô Soares, o
autor de "Verdade Tropical" mencionou o assunto pela primeira vez e
abriu uma discussão sobre a figura do "dedo-duro" no meio artístico.
Agora, o livro -que não se preocupa em disfarçar o
tom passional quando descreve as angústias do cárcere- volta a investir contra
Juliano.
Narciso e as baratas
Duas semanas antes da prisão de Gil e Caetano, o
presidente Costa e Silva colocou o Congresso em recesso e assinou o AI-5 (Ato
Institucional nº 5), que cassava o mandato de parlamentares e inaugurava a
etapa mais dura do governo militar.
Naquele período, os tropicalistas comandavam o "Divino Maravilhoso", programa semanal da TV Tupi que surpreendia pelo espírito anárquico.
Já na estréia, em 28 de outubro, Gil entoava
"Bat Macumba" entre gargalhadas e rodopios.
Caetano -então cultivando uma cabeleira selvagem-
se atirava, trôpego, de um lado para o outro e plantava bananeira diante de um
cenário incomum: quatro painéis em alto relevo e cores berrantes, que exibiam
seios, uma boca enorme e dentaduras.
Fechou o programa de maneira emblemática -com a música "É Proibido Proibir", que começou a cantar deitado no chão.
Fechou o programa de maneira emblemática -com a música "É Proibido Proibir", que começou a cantar deitado no chão.
As semanas seguintes revelaram peripécias ainda
maiores. Dentro de uma jaula, o elenco do "Divino Maravilhoso" chegou
a simular um banquete de mendigos.
Cartas iradas do público mais conservador não
paravam de pedir explicações à Tupi e de condenar as "ofensas" dos
tropicalistas.
Nessa fase conturbada, a polícia bateu à porta do
apartamento de Caetano, na avenida São Luís, centro de São Paulo.
"Nem eu nem Gil imaginávamos que seríamos
presos. Não havia expectativa de que nada de grave pudesse acontecer
conosco", escreve em "Verdade Tropical".
Toda a terceira parte do livro se dedica à anatomia do cárcere. São 62 páginas que levam o título de "Narciso em Férias".
Toda a terceira parte do livro se dedica à anatomia do cárcere. São 62 páginas que levam o título de "Narciso em Férias".
Mesclam reminiscências dos quase dois meses que
Caetano passou entre grades (sua libertação e a de Gil só ocorreram no dia 19
de fevereiro de 1969, uma Quarta-Feira de Cinzas) com a tentativa de desvendar
a razão de tudo aquilo.
O leitor acompanha a busca como quem vê um filme
labiríntico, protagonizado por um jovem bem distinto daquele que despejava
irreverência sobre o palco.
Mais magro do que o habitual, confuso e frágil, o
cantor caçava respostas não apenas nas raras conversas com militares, mas
também em estranhos sinais metafísicos que, acreditava, poderia extrair de
baratas e músicas do rádio.
Num trecho desconcertante, Caetano esmiúça tais
rituais premonitórios -um sistema que usava menos para adivinhar as causas da
prisão e mais para tentar antever quando o suplício terminaria.
"Se eu lançar o jato de Baygon nessa barata e
ela conseguir fugir, haverá um atraso de três dias na ordem de liberação",
raciocinava.
Foi assim, na solidão do cárcere, num ambiente que
lhe estimulava tanto a superstição quanto o exercício da lógica, que Caetano
concluiu por que o prenderam.
O compositor destrincha a tese contando, primeiro,
que teve medo quando a polícia chegou a seu apartamento -mas "não era, de
modo nenhum, um medo que correspondesse ao tamanho do que de fato" iria
acontecer.
E explica: "Estávamos tão habituados a
hostilizações por parte da esquerda, éramos tantas vezes acusados de alienados
e americanizados, que, quando me vi diante daqueles policiais, imaginei que me
estavam levando para uma conversa com algum oficial de São Paulo, o qual nos
trataria como rapazes interessados apenas em divertir o público".
A realidade se mostrou menos otimista. Os dois
baianos seguiram, juntos, para prisões cariocas e iniciaram um penoso caminho
que culminaria com o exílio.
Certo dia, na cela da Vila Militar, em Deodoro,
subúrbio do Rio, um sargento chamou Caetano e se pôs a atacar a peça "Roda
Viva".
O espetáculo -escrito por Chico Buarque, que José
Celso Martinez Corrêa montou em 1968 e cujo elenco sofreu agressões de
militantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas)- lançava mão de uma
linguagem cênica chocante. Ora sugeria ações canibais e expunha a nudez dos
atores, ora estilizava símbolos religiosos.
"Em suma", resume Caetano, "era tudo
com que nosso trabalho, meu e de Gil -dos tropicalistas-, se
identificava."
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