Caetano
Veloso: Inventivo e contínuo
De volta a Fortaleza,
Caetano Veloso comenta a turnê que divide com os filhos e declara que teme pela
qualidade da democracia brasileira
26/10/2018
O clã Veloso: Tom, Zeca, Caetano e Moreno - Divulgação |
"Temo que a democracia
brasileira perca qualidade com essa conjuntura. Mas, quem sabe, talvez
estejamos escrevendo certo por linhas muito tortas".
É o que diz Caetano
Veloso diante de um Brasil às portas do segundo turno das eleições presidenciais.
Sem esconder suas preferências políticas, ele busca tranquilidade na família e
se cerca dos filhos na turnê Ofertório, que volta este fim de semana a
Fortaleza. Em única apresentação no Centro de Eventos, o show traz o ídolo
baiano ao lado de Zeca, Tom e Moreno, e todos apresentam suas experiências em
música num encontro de afetos e histórias pessoais.
Em entrevista ao O POVO, por email, Caetano
narra esse percurso que saiu de dentro de casa e ganhou os palcos do mundo.
O POVO- Imagino que haja uma diferença grande entre ser um
pai presente em casa e sair em turnê com a família. Como tem sido essa
experiência?
Caetano Veloso - Pra mim tem sido uma felicidade. Eles já estão
crescidos, esse é um jeito de eu ficar mais tempo perto deles. E é uma
maravilha que eles cantem e toquem comigo. É bom ver que eles também se sentem
bem, se comovem e se divertem.
O POVO - É muito natural que boa parte do público vá ao show
querendo ver Caetano Veloso. De que forma você pode apresentar o trabalho dos
seus filhos para que o público perceba que este é mais que um show de Caetano
Veloso?
Caetano - É um show meu, mas o conteúdo é místico e meus
filhos são os raios de uma luz que vem da minha família em Santo Amaro. Além
disso, cada um deles é um artista genuíno em si mesmo. Em todos os lugares por
que passamos as plateias são tomadas pela atmosfera que emana da nossa turma -
e fica extasiada com Zeca cantando Todo homem, Moreno cantando Um passo à
frente ou Tom dançando passinho. Também os quatro cantando em vozes O seu amor,
de Gil, é um fato cultural que tem valor único. Diz respeito à parte essencial
da história da música brasileira moderna. Nós somos a experiência de um momento
da vida brasileira que engrandece as pessoas.
O POVO - No texto que você escreveu sobre o novo show,
existe muita afirmação sobre o caráter sentimental do projeto, mas você também
fala da "responsabilidade de apresentar números com qualidade
profissional". Como é hoje sua autocobrança pela qualidade do trabalho?
Com o tempo, isso cresceu, diminuiu, se manteve?
Caetano - Escrevi aquilo antes de termos o show ensaiado. À
medida que ia ficando pronto, me surpreendi com a dedicação de Zeca e a
naturalidade do talento de Tom. Moreno já é profissional há muitos anos, com
uma obra refinada. Mas primeiro pensamos que iríamos convidar instrumentistas
profissionais pra tocar conosco. Aos poucos, vimos que era mais bonito o som
especial que produzimos nós mesmos. Não somos virtuoses, mas fazemos a música
com respeito e cuidado. O sentimento dos temas e dos nossos afetos dá
intensidade emocional ao que seria apenas correto. E mesmo alguns leves
tropeços vêm com seu encanto.
O POVO - O "berço" sempre foi muito presente na
sua música. Além de Bethânia, Nicinha esteve nos seus discos, você tem músicas
dedicadas a Dona Canô, a Paula Lavigne e a Santo Amaro. Como esses elementos
foram costurados no novo show? Isso foi um facilitador na hora de selecionar o
repertório?
Caetano - Foi facilitador e também dificultador, porque tem
muitas músicas feitas pra Dedé e pra Paulinha, tem muitas feitas para eles e
tem muitas sobre meus pais, meus irmãos: o tema da família é abundante em meu
trabalho. A questão era fazer um roteiro que tivesse estrutura e passasse pelo
tempo como um filme passa.
O POVO - Ainda sobre o repertório, o que foge a essa ideia de
celebrar a casa e a família no show?
Caetano - As coisas da vida, o gosto da música. Tom me pediu
que cantássemos O seu amor, que pertence ao repertório dos Doces Bárbaros.
Achamos que tinha ficado tão bonito que íamos abrir o show com ela. Zeca
sugeriu que eu cantasse Alegria, alegria antes. Isso já mudou o show - e já
mostra quão abrangente, para além da família, é nosso espetáculo. E há também o
mero gosto: Tom e Zeca pediram pra eu cantar o Trem das cores. O cristal vai-se
abrindo para mil lados, mostrando planos e arestas diferentes. Quando canto
Gente, é ainda celebração de sermos gente real, uma família, mas já é a família
humana toda.
O POVO - Passados 50 anos, ainda é comum usar expressões como
"eterno tropicalista" para se referir a você. O que você acha desse
tipo de expressão? Você se vê assim, como um "eterno tropicalista"?
Caetano - Eu gostaria de ser um eterno tropicalista. Bem,
gostaria de ser eterno, de todo modo. O que desbravamos no tropicalismo me
trouxe até aqui. Meus filhos nasceram depois de tudo aquilo e são também
resultado daquilo tudo. Não haveria o tropicalismo sem Dedé e eu não
encontraria Paulinha se não tivesse havido o tropicalismo. Quando Tom toca bem
o violão e canta seus próprios versos bem escritos, vejo resultado do que Gil e
Mutantes e Duprat e Tom Zé e Gal e eu fizemos entre 1967 e 1968.
O POVO - Lá em 1967, você era capaz de imaginar que, 50 anos
depois, ainda estaríamos falando de tropicalismo?
Caetano - Às vezes é capaz que sim. Mas não tinha tempo para
pensar em futuro tão longínquo. Eu queria fazer ainda algumas coisas em música
e deixar isso para fazer filmes. Aí veio a prisão e veio o exílio e eu, ao fim
de três anos de sofrimento, já não tinha forças para mudar a direção da minha
vida. E a música é uma coisa muito forte entre nós brasileiros.
O POVO - Seu show acontece na véspera de um segundo turno que
será disputado por dois candidatos com pensamentos bem distintos. Que leitura
você faz desse momento histórico e quais suas expectativas para o Brasil a
partir de 2019?
Caetano - Neste momento, preparo-me para votar em Haddad.
Votei em Ciro Gomes no primeiro turno. E gostaria que Lula tivesse se abstido
de se dizer candidato e de ter candidatura própria do PT. Bolsonaro, embora
seja um fenômeno genuíno dentro da sociedade brasileira, representa ideias
opostas às que me interessam. Temo que a democracia brasileira perca qualidade
com essa conjuntura. Mas, quem sabe, talvez estejamos escrevendo certo por
linhas muito tortas. Eu tenho fé no Brasil e não deixei de ter porque essas
tensões se apresentam.
Show Ofertório
Quando: sábado, 27/10, às 20 horas
Onde: Centro de Eventos (av. Washington Soares, 999 - Edson
Queiroz)
Quanto: R$ 160 (arquibancada), R$ 200 (plateia B) e R$ 260
(plateia A) - Preços de inteira. À venda nas lojas Feitiço e Aliança de Ouro
A política do afeto
Pela
segunda vez, Ofertório emocionou o público no Centro de Eventos
30/10/2018
AO LADO dos filhos, Caetano Veloso voltou a Fortaleza com o show Ofertório Maria Clara Medeiros / Especial para O POVO |
Quem esperava muitos "ele não" na noite
do último sábado, 27, véspera da eleição, deve ter saído decepcionado do Centro
de Eventos. Na segunda passagem da turnê Ofertório por Fortaleza, a maior parte
dos comentários políticos foi feita pelo público, que não se furtou o direito
de usar camisas, adesivos e puxar palavras de ordem. Já no palco, Caetano
Veloso e seus filhos Zeca, Tom e Moreno contaram histórias que saíram de Santo
Amaro da Purificação e ganharam o mundo. Ainda assim, na hora do bis, sozinho
no palco, Moreno puxou o assunto com um "primeiramente, ele não" e se
disse do orgulho de ter antepassados cearenses.
O tom de Ofertório era outro. Caetano e os filhos
falaram de muitos brasis, de família, de respeito, da Bahia, do Rio de Janeiro,
do mundo todo. Logo na abertura, Alegria Alegria transportou o público - que
encheu o espaço sem aperto - para o fim dos anos 1960, tempos de ditadura e
tropicalismo, de festivais de música, luta por democracia, contracultura e sol
nas bancas de revista. Seguindo o roteiro, que já foi registrado em CD e DVD, a
canção foi a largada para uma grande viagem entre muitas memórias.
Em entrevista ao O POVO, publicada no
dia do show, Caetano contou que chegou a cogitar a presença de músicos
profissionais em Ofertório. No fim, a ideia foi dispensada e figuram apenas ele
e os filhos em cena, com suas qualidades e limitações técnicas. Abraçados por
um lindo cenário de Hélio Eichbauer, que remete a Guimarães Rosa e cresce os
sentidos com iluminação impecável, os quatro estavam à vontade para conversar
sobre religião, gostos musicais e outros temas, à medida que emendavam Trem das
Cores, Deusa do Amor, A Luz de Tieta, Alguém Cantando e Genipapo Absoluto.
Muitas delas acompanhadas de histórias sobre como e quando nasceram.
Mesmo sem sair do roteiro (e sendo a segunda
passagem por Fortaleza), o público não deixou de aplaudir os momentos mais
esperados do show. Zeca Veloso garantiu a concentração em Todo Homem e ainda
tentou ensaiar uns passos duros de samba. Tom fez a dança do passinho em
Alexandrino, antes de sentar e entornar uma garrafa inteira de água. Moreno
também sambou ao lado do pai e era o mais sorridente dali. E Caetano,
visivelmente rouco, exalava a sobriedade da experiência e a realização de estar
ao lado dos filhos. Orgulhoso, mas discreto, em muitos momentos, era possível
vê-lo atento aos movimentos deles, como se fosse um jurado do The Voice. Mas
ali ninguém seria "excluído do programa", já que Ofertório é uma bela
cerimônia familiar, uma passagem de bastão para uma nova geração de compositores
que, como disse Moraes Moreira em 1980, "vai botar pra quebrar lá pelos
anos 2000".
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