O Nacional foi a última invenção do jornalista gaúcho Tarso
de Castro.
Seu pai, Múcio de Castro
(1915/1981), tinha sido dono de um diário com este nome em Passo Fundo.
Jornal
O Nacional
29 de abril de 1987
Entrevista a Tarso de Castro
Agosto de 1987 - Chico Buarque, Caetano Veloso, Rodrigo Argolo e Tarso de Castro
T - Me diz uma coisa: você lê todos os jornais?
C - Não, sr. Só tenho assinatura do Jornal do
Brasil e da Folha. Eles dois. Esses jornais entram em minha casa todos os dias
trazidos por um sujeito que os distribui e eu dou uma sacada na 1° página de
cada um e, se houver alguma coisa que me interesse muito, eu dou uma olhadinha
uma pouco mais lá prá dentro; olho o "B" e a "Ilustrada".
T - A minha pergunta é a seguinte: eu tenho muita irritação com
jornalista porque eu acho que é uma classe muito desonesta e muito analfabeta,
no Brasil. Inculta posando de arrogante. Eu lhe perguntei, então, esse negócio
de jornais, se você lê todos os jornais porque eu queria situar mais ou menos.
Os jornais têm que falar a respeito dos compositores, artistas e coisas. Até
que ponto vai a sua irritação dessa campanha que fazem contra você?
C - Depende do momento. Às vezes têm coisas que
são, realmente, que têm tom de campanha. Aí, eu fico indignado. Às vezes, reajo
e tal. E têm coisas, é, como é que se diz, é crítica ou objeções ao meu
trabalho, ao que faço, ao que pensam de mim, que eu simplesmente aceito, não
digo nada, passa.
T - Por exemplo isso que o Jornal do Brasil divulgou, de uma maneira
sacana, que você estava em campanha contra o Rio.
C - Isso daí. Você foi absolutamente correto em
dizer que o JB divulgou de uma maneira sacana. Porque eu acho que o Jornal do
Brasil pegou o trecho de uma entrevista que eu dei em Salvador e transformou
aquilo numa espécie de onda de escândalo, não é, para tentar me colocar mal
diante das pessoas que são do Rio ou quem amam o Rio de Janeiro.
T - Como você, aliás.
C - Eu amo muito o Rio e tenho que dizer. Vou
lhe contar uma estória bem rápida do que é aquilo e você já sabe mais ou menos
o que é que é. Essa coisa de antipatia pelos baianos, que foi desenvolvida por
certa ala do pessoal que ficou no Pasquim, depois que você saiu, não é, de uma
certa forma chegou no Paulo Francis, que é o mais sofisticado deles, e, mais
tardiamente, de maneira superior, isso me irritou. Desde a vez que Paulo
Francis escreveu aquele negócio sobre a minha participação na entrevista que o
Roberto d’Ávila foi fazer com Mick Jagger, eu fiquei com raiva do Paulo
Francis. O que ele escreveu sobre mim era de meter raiva. E depois ele fica
toda hora fazendo piadinha contra baiano. Isso me dá um pouco de raiva e me
lembra um período em que o Millôr disse coisas semelhantes, que ele deixou,
depois, de dizer.
T - Deixa eu isolar um pouco (bate na madeira).
C - Entendeu? Então, aquilo pra mim faz um
sentido. Aquilo tudo tem uma espécie de coerência e representa um tipo de
resistência que uma certa área, assim do pessoal do Rio, da época em que nós
começamos a trabalhar, desenvolveu contra nós. Então, eu tenho é muita alegria
em fazer o que falo. Eu sinto quando percebo uma resistência que precisa, por
vezes, ser até desonesta para se exercer, contra o que faço. Eu me sinto no
direito de ficar irado, entendeu? Então, eu não sou jornalista, quer dizer, não
vou descrever.
T - Graças a Deus.
C - Eu tenho outro tipo de poder diante da
opinião pública, que não é o mesmo tipo do poder do jornalista, entendeu?
Então, eu não posso estar escrevendo artigos para analisar o que fulano disse,
o que beltrano falou. Enfim, uma vez ou outra eu dou uma entrevista, como a que
lhe estou dando. Falo casualmente, não é? E faço a minha música e, também, meu
cinema. Agora eu fiz um filme. Então, eu vejo essa coisa como uma utilização que
o Jornal do Brasil fez pra fazer esse tipo, dessa minha ira contra o negócio do
Paulo Francis que é, também, uma ira que não tem muita importância, não é
verdade?
T - Porque o Paulo Francis não tem muita importância...
C - É. Vai ver que não tem. Quer dizer, pode ter
pra mim porque eu sou muito mais jovem do que ele, sou da província, então
conheço ele, como o Millôr, também. O Millôr, no primeiro momento, quando ele
começou a reagir contra mim, aquilo me doía porque eu era muito fã dele quando
era menino. Não do Paulo Francis, desse jeito. Paulo Francis, depois que eu
estava maior um pouco, ainda em Salvador, a partir da revista Senhor. Eu tinha
17 anos. Então eu ficava, gostava muito de ler o Paulo Francis. Até hoje eu
leio com... algum prazer porque acho que ele tem um estilo próprio, engraçado,
interessante, mas de vez em quando eu perco o saco e não leio. E durante o
verão, em Salvador, eu não li porque não tinha a Folha, quer dizer, tem na
banca mas eu não ia comprar e aqui eu leio porque vem em recibo assinado. Mas
eu não queria fazer daquilo uma coisa muito grande. É que estava um jornalista
de Salvador se referindo a alguma coisa mais ou menos recente que o Paulo
Francis teria escrito à qual ele queria se referir, uma coisa dessa esnobação
do mulato, do subdesenvolvido, do baiano, não sei que, e o jornalista de
Salvador, nesse dia da coletiva, ele parecia estar um pouco revoltado e
humilhado por aquilo. Na hora em que eu vi ele se referindo àquele negócio dele
falar "que a Bahia não tem cultura"... Isso eu já tinha lido, já
tinha visto a resposta de Risério, tinha achado que era legal a resposta de
Risério e já tinha até ouvido em São Paulo que a resposta de Risério não
provinha, não sei o que. Eu pensei assim: bom, no momento em que me
perguntarem, eu estou do lado do Risério. Para mim, não tem nuance nesse caso,
entendeu? Eu sei raciocinar muito. Mas eu não quero dedicar meu raciocínio para
esse tipo de nuance. Eu estou com Risério, nesse caso não há a menor dúvida,
entendeu? Eu acho suspeito o jeito de o Paulo Francis falar do negócio da
Bahia. Acho que na verdade é aquela mesma coisa que foi feita no Pasquim,
durante aquele período. É a mesma coisa que o Millôr disse, numa entrevista
anos atrás.
T - É um tipo de fascismo.
C - É uma coisa...
T - Discriminação.
C - De discriminação, que, enfim, eu não sei. Eu
acho que a reação que eu tive contra essa discriminação é legítima. Eu tenho o
direito de ter. O Jornal do Brasil não teria o direito de transformar isso num
pagode, de ofensa gratuita contra uma cidade, entendeu? Para parecer que eu vou
ser apredejado no Rio de Janeiro. Aquilo é uma bobagem. É querer viver de
coisas que não existem. Porque do ponto de vista do escândalo que eles tentaram
fazer não resultou, mas muita gente fica magoada. Eles fizeram aquela enquete,
chamando pessoas por telefone para falar mal de mim. E as pessoas falaram mal
de mim. O Lobão veio atacando, mas o Lobão é um sujeito interessante. Mas o
ataque era pobre. É uma questão de objetividade. A gente vê quando o Marcelo Nova
fala em matéria de limpar a área, tirar essa onda de Gil, Caetano, Bethânia,
Gal, tropicalismo, anos 60, mil coisas, entrar no outro negócio, ir com a
parentela dele pelo lado do Raul Seixas. Ela faz de uma maneira muito clara, e
isso resulta bom para todo mundo, mesmo que seja uma coisa que, aparentemente,
esteja negando. O Lobão tem um pouco disso na rebeldia dele, mas se perde, não
tem tanta firmeza. Então, aquelas respostas do Jornal do Brasil, das pessoas
que deram ao JB contra mim, provocadas pelo JB... é meio chato até responder a
essas pessoas; às vezes, a gente tá em casa, o Jornal do Brasil telefona....
T - É uma coisa produzida?
C - É uma coisa produzida pelo Jornal do Brasil.
É uma coisa totalmente artificial.
T - Zuenir Ventura, tão inteligente, tão amigo, né?
C - O Zuenir sempre pareceu meu amigo, sempre me
disse que era meu amigo. Eu achei suspeita a maneira como eles noticiaram a
estréia do meu filme, no FestRio; o modo como eles puseram. Eu disse isso ao
Zuenir pelo telefone. Ele ficou sentido, me disse, porque quando ele escreveu
um elogio ao meu respeito eu não telefonei a ele para agradecer. Mas a verdade
é que a chamada da capa do 1º Caderno do FestRio era estranha porque tinha uma
fotografia do Lulu Santos me dando um beijo na boca e uma legenda que dizia:
"Lulu Santos foi prestar solidariedade a Caetano Veloso" (risos)
24/11/1986 - Foto: Marcelo Carnaval - Jornal do Brasil |
T - Já joga pra baixo, mesmo.
C - É uma coisa de jogar pra baixo, pra da um
tom que não é real. Lulu foi falar comigo alegríssimo. Realmente, adorou meu
filme e como outras pessoas também gostaram, a gente estava falando normal,
entendeu? Não se tratava de me prestar... mas tudo bem. Ele disse que não era
intenção, pois eu acho que vocês não são tão ingênuos. Mas, enfim, ficou por
isso. Mas com o Chico, eles foram sacanas e eu xinguei o Jornal do Brasil,
entendeu?
T - Mas me diga uma coisa: você sabe que é bom se tocar nisso porque a
gente falou muito, muitas vezes do Jornal do Brasil, e o João Ubaldo, o nosso
João Ubaldo, outro dia me disse o seguinte: "Olha, Tarso, nós fomos
praticamente educados pra não gostar d’O Globo, é difícil, porque tem atitudes
reacionárias e coisas... Agora, O Globo nessas coisas é muito mais correto do
que o ...
C - Muito mais correto do que o Jornal do
Brasil. Mas é verdade. eu já percebi isso há muito tempo. O Globo é mais
correto do que o Jornal do Brasil nessas coisas.
T - Porque, de repente, um jornal diz assim: nós somos os liberais, e
podemos fazer tudo o que quisermos. O Tom Jobim já me disse assim: "Meu
Deus, Tarso, se o Jornal do Brasil é o liberal, então nós estamos
fodidos".
C- É hilário, porque, veja bem, eles
transcreveram a entrevista que eu dei em Salvador.
T - Você falou duas horas, não foi?
C - É. Eles tiraram o que eles quiseram, botaram
o que eles queriam botar. Agora, eles transcreveram trechos da entrevista que
dei em Salvador. Onde você lê na transcrição do Jornal do Brasil a palavra
panaca, que eu na verdade não uso, eu tinha falado babaca e saiu no jornal de
Salvador babaca. São uns babacas. E saiu são uns panacas. O Jornal do Brasil
copidescou, tirou a palavra babaca e botou panaca. Eu quero que você ponha no
seu jornal que eu disse "são uns babacas" e não uns panacas, porque
eu acho que o Jornal do Brasil considera a palavra babaca muito grossa.
T - Todo babaca é só babaca e panaca (risos).
C- Eu acho que os babacas são panacas. E eu
falei babacas; não falei panacas. E eu acho que o Jornal do Brasil é engraçado.
Não pode botar babacas. Eu acho que não é veículo ideal para o Lobão.
T - Ah! Me diz uma coisa: e o Cinema Falado é um negócio engraçado. Eu
sempre brinquei com a coisa...
C - Houve, houve reação contra o fato de eu ter
feito um filme, né?
T - Mas você esperava uma reação assim?
C - Não, eu não sabia que tipo de reação ia ter.
Eu estava muito envolvido em fazer o filme. Dá muito trabalho fazer um filme.
Eu acordava todo dia às 7 horas da manhã.
T - E não me chamou pra fazer o papel principal.
C - Não, não lhe chamei para o papel principal.
Não se pode dizer que no meu haja um papel principal. O filme é todo de
falações, né! Então, os atores vão se alternando. Mas o negócio da reação
contra o fato de eu fazer um filme, sempre vem de um jeito que a gente não
espera. Durante o filme, passando pela primeira vez, três mulheres que fazem
cinema e não tinham visto o filme já xingando.
T - Dê os nomes...
C - A que dirigiu "A Hora da Estrela",
Suzana Amaral, aquela Vera Figueiredo e a Tizuka Yamazaki. A Suzana Amaral me
chamou de urubu da vanguarda.
T - (risos)
C - Xingou. Só faltou xingar a minha mãe. A Vera
Figueiredo disse que era uma porcaria dos anos 60, que ela nem queria nem ver.
E a Tizuka Yamazaki, que não falou mal do filme, disse assim: "Ah,
Caetano, nunca quis fazer cinema. Ele sempre quis fazer polêmica". Então,
ele está fazendo polêmica. De uma certa forma, sem falar mal, mas ela já
descartou a possibilidade de o filme ser um filme, de ser visto, de que eu
fazer um filme fosse uma coisa ceitável, possível. Mas as duas primeiras me
xingaram e nenhuma das três viu o filme, não viram nada, e diziam abertamente
na entrevista que não tinham visto e que não queriam ver. E que eu não tinha
nada que fazer cinema. Isso eu acho um absurdo. É chato. Quem diz quem é que
pode, quem não pode fazer cinema... Então na época, eu respondi. Eu disse
assim: é engraçado que as donas de casa possam fazer cinema e os artistas não
possam.
T - E você gosta do filme?
C - Gosto muito.
T - Qual é a sensação de você dirigir um filme assim?
C - É o máximo! Parece uma aventura, uma viagem.
É alegre e corrido, e vou ficar com um rítmo de vida diferente. Parece que vai
mudar o seu metabolismo.
T - Que coisa! Você fala mal das pessoas dizendo que elas são
discriminativas.
C - Eu me auto discrimino.
Mas eu não sou contra a discriminação totalmente. A capacidade de
discriminar as coisas pode ser útil, entende? Pode ser útil. Eu estou dizendo
que é uma questão de a gente não perder a perspectiva assim do que a gente está
falando, né? Porque eu não sou um partidário das rixas e das discriminações,
nem das convenções que se formaram do que é a alta cultura, cultura popular,
enfim, essas coisas todas na verdade estão num nó difícil de desatar. Enfim,
essas coisas estão num momento esse que ninguém pode dizer com muita clareza
onde está o mais importante sendo produzido em matéria de cultura, entendeu? E
muita gente se sente mal com isso e até eu às vezes, me sinto mal, mas muita
gente se sente bem, também. E eu às vezes me sinto muito bem porque parece que
há uma certa vitalidade nessa situação, que é boa. Tem algo de difícil e tem
algo que venha, talvez, resultar muito mal para a história do mundo. Mas pode
ser que não. Pode ser que daí saia uma coisa maravilhosa e que já tem
proporcionado vivências maravilhosas. Essa situação de você não saber de onde
está saindo a info rmação, e a
criação mais importante, entendeu, o que é que é o primeiro plano hoje em dia,
exatamente. Muitas vezes não se sabe. Muita gente está dizendo:
"Não!". Temos que voltar a exigir essas delimitações de alta cultura,
baixa cultura e tal, e botar as coisas nos seus lugares. Eu acho louvável o
intuito, e acho que muito disso deve ser feito. Mas acho que é muito difícil
fazer, e que não há propriamente um retorno possivel no sentido do que já se
experimentou até aqui. Eu acho que, realmente, uma situação nova a esse
respeito aconteceu, né. E então eu não sei lhe dizer o que é, o que eu faço. O
que é que o Bob Dylan faz, o que é que o Prince faz, o que é que o Akira
Kurosawa faz, entendeu? Eu não sei porque cinema. Eu estava dizendo, eu me
sentia atraído por coisas que eram ligadas diretamente com o público assim em
geral. Era uma questão de sentir vitalidade nessas coisas, entendeu?
T - Você se sente bem hoje?
C - Me sinto.
T - É bom, né? E quando chega aquela gente com você?
C - De cantar com o público, eu adoro. Quando é
bom, é muito bom. A coisa que eu mais gosto de fazer é cantar. Eu canto através
das pessoas, por dentro, passando por entre as pessoas, a voz...
T - Chamada força estranha.
C - É superlegal!
T - Pois é, você fez a coisa mais bonita do programa que o Roberto já
cantou, na minha opinião. Quer dizer, eu gosto muito do Roberto cantando,
mas...
C - É Roberto é bacana.
T - "Força estranha" é fantástico. Agora, e essa briga de
vocês?
C - Eu não briguei com o Roberto, propriamente.
T - Você brigou com a teoria do Roberto?
C - Eu briguei com a atitude que ele tomou
quando o filme "Je vous salue Marie", que foi um filme que eu adorei
quando vi em Paris, foi proibido pelo presidente...
T - Pelo
chefe do governo. Não tem presidente da República.
T - É claro, porra! Não foi eleito.
C - Pois é. Por influência da igreja. Eu achei
aquilo horroroso, né? E olha até fiz um elogio ao Paulo Francis porque ele teve
uma reação na Folha de S. Paulo, que eu achei absolutamente perfeita do ponto
de vista jornalístico. Não se poderia ter tido uma atitude mais lúcida, mais
corajosa e mais límpida da qual ele teve naquele momento. E o Roberto Carlos se
apressou em mandar um telegrama...
T - Foi triste aquilo.
C - O presidente, o chefe do governo, dizendo
que apoiava e que era contra o desrespeito à Virgem Maria. Eu fiquei com raiva
de tudo que se relacionava com a proibição do filme. Achei o Roberto... Quis
deixar bem claro que eu discordo frontalmente da atitude dele; que minha
atitude ficasse bem clara, que a minha atitude era oposta a dele; que eu exigia
a liberação do filme, que eu continuo exigindo. Eu acho que é absolutamente
inaceitável que isso tenha acontecido no Brasil, entendeu? Não tem nenhuma
justificativa para que isso tenha acontecido. Isso, é apenas uma vergonha para
o Brasil, que o presidente tenha proibido um filme, pessoalmente, porque nem a
censura dele tem cara de proibir. Então, eu não briguei com o Roberto. Eu gosto
do Roberto. Agora, eu fiquei com raiva dele falar, dele tomar aquela atitude,
que eu acho aquilo uma coisa burra e acho hipócrita, esquisito. Vai ver o
Roberto - é certo, tudo dele tem um tom de sinceridade - vai ver que ele é
sincero por um lado; ele tem as devoções dele. Enfim, as transas místicas, as
superstições, as fés (risos)
T - É, você também tem...
C - Também tenho. Mas eu tenho horror ao
obscurantismo, entendeu? Isso é, eu acho que de jeito nenhum toda essa carga do
irracional que irrompeu é com a minha geração e que eu acho que foi uma coisa
assim, inevitável e maravilhosa, entendeu? Não me interessaria, absolutamente,
se fosse um caminho para negar qualquer, como é que se diz, possibilidade de
clareza, entendeu? Com relação às coisas, possibilidade de razão, entendeu? Eu,
no fundo, gosto da razão. E o Jorge Mautner dizia com ironia, pra mim, em
Londres: você é um iluminista (risos).
T - Me diga uma coisa. Você tocou aí no negócio de relações pessoais.
Por que é que surgiu aquela onda de você brigado com o Chico? Você se lembra
disso?
C - Não me lembro direito a época.
T - Já houve algumas.
C - Foi mesmo. Houve algumas coisas. Teve um
período quando eu comecei a ficar famoso, o Chico é que era a figura mais
famosa assim da música popular no Brasil e naquela época ainda se tinha o
hábito de pensar. Não sómente isso. Tinha-se o hábito de pensar que não havia
lugar para mais do que um ídolo de primeira.
T - A Globo continua pensando a mesma coisa.
C - Mas, na verdade, o povo não. Hoje em dia
você vê, tem inúmeras pessoas do primeiro time em música popular no Brasil.
T - E foi bom trabalhar com o Chico nesse programa?
C - Muito bom.
Trabalhar com o Chico no programa foi muito bom. E a única razão que me deixa
um pouco de tristeza por ter parado o programa, embora eu mesmo tenha decidido
parar, pois a convivência com o Chico, que era boa, foi ficando ótima; e de
ótima foi ficando excelente, entendeu?
T - Houve penetração, não? (risos)
C - Eu não vou revelar.
T - (Risos)
C - Eu adorei os meninos da Camisa de Vênus que
disseram que não aceitavam participar do Chico e Caetano porque não queriam
participar de triângulo amoroso na TV. (risos)
T - Namoro na TV é sensacional (risos). Somos dois vagabundos né?
C - É sensacional.
T - Agora, vem cá! E esse negócio de neguinho como secretário de
Cultura, como é o caso de Gilberto Gil?
C - É menino...
T - Eu quero saber sua opinião.
C - Acho muito bom, acho que é assim mesmo. Eu
acho que é o risco que as pessoas devem correr, chegar lá, tentar fazer, as
pessoas que têm pique como o Gil. O Gil tem pique pra negócio de trabalhar, administrar
e não sei o que. Ele gosta desse negócio e precisa de alguém que faça alguma
coisa.
T - E tenha coragem para fazer este tipo de coisa.
C - E que tenha coragem de chegar lá. O Capinan
também está lá. Agora tá lindo lá, né?
T - Risério, Capinan, Gil...
C - O pessoal está trabalhando. Vamos ver no que
dá. O problema é o Brasil ser ou não ser viável.
T - Vem cá, Caetano, tem um negócio que eu quero muito falar. É o
seguinte: eu te acho muito corajoso, até discuti, briguei com o Tom Jobim. O Tom,
quando lê o jornal diz assim: "O,
Tarso, amanhã eu vou dar uma entrevista dizendo que o Jornal do Brasil é uma
escrotidão total, que me discrimina." Aí, eu falo pra ele do João
Ubaldo. Os dois estão vivos, então, posso falar claramente. Eu digo assim:
"Vocês têm palavra, vocês têm palavra de ordem, vocês têm que falar essas
coisas porque é muito melhor para o país o que se faz no palco. E sempre cito
você como exemplo. Digo: "Olha, o Caetano vai no palco e diz que está
puto...
C - Ah, cansei de fazer!
T - Você não acha que isso deveria ser seguido por outros artistas
também? De falar no palco? Afinal, o palco é a tribuna dos artistas.
C - Ah! E eu fiz isso muito tempo porque houve
um período que realmente o lance de campanha contra mim, contra o que representava
o meu trabalho, era tão frequente e as mentiras tão absurdas, que eu ía pro
palco e respondia e provava, argumentava, desmentia, entedeu? Desafiava. Agora,
eu não sei se isso deve ou não ser seguido por outros porque dependente do
temperameno e da situação.
T - Mas qual é a abertura que o artista tem? Você acha que a imprensa
tem dado espaço?
C - Por exemplo, o Carlos Drummond de Andrade,
enquanto poeta, disse que jamais discutiria nenhuma crítica de qualquer tipo
feita à poesia dele. Que uma vez feito o poema, todo o mundo tem o direito de
dizer o que pensa.
T - Mas com isso você não dá espaço pra crítica.
C - Eu tenho vocação crítica.
T - Você não acha que responder é bom?
C - Eu tenho vocação crítica, então eu tenho
vocação pra responder.
T - Sei. Você não dá espaço pra ditadura da imprensa, quando você não
fala, não responde.
C - Eu sou desse tipo. Eu preciso exercer minha
atividade crítica explicitamente, também. Mas, por exemplo, o Milton
Nascimento, o Chico.... O Milton Nascimento não é de falar muito, mas teoriza,
não sei que. Mas a música que ele faz mexe o mundo. O João Gilberto não dá
entrevista, não fala nada com ninguém, mas ele, pô, ele tapa a boca de um
crítico, faz o outro falar só com a música dele. Ele mexe o mundo, entendeu? Eu
acho que a tribuna do artista mesmo é a sua arte, tudo o que ele faz. O que não
quer dizer que a pessoa não tenha uma atuação mista, como eu tenho, de também
falar, enfim, de dar as minhas entrevistas no palco do show, em alguns
momentos, em discutir as coisas que me parecem que vão atrapalhar.
T - (risos) Venha cá, vamos mudar um pouco de coisa agora. A gente já
está chegando ao fim. O que você está achando desse país? Nós somos frustados
pela estranha morte do Tancredo, e tem o PDS no poder. Como é que você vê esse
país politicamente?
C - Eu senti profundamente todas essas
frustações a que você se referiu e acho que a gente está numa situação péssima,
no momento. E eu sou otimista por temperamento ou por decisão. Sempre fui,
sempre fui otimista. Mas, como se diz, basta ler os jornais ou ligar a
televisão para que você considere o seu otimismo ridículo (risos). E eu acho
que a situação brasileira é péssima. Eu tenho uma coisa que me dificulta pensar
sobre isso. É que eu não entendo de economia e acho muito difícil entender; e
sempre tive preguiça, medo e dificuldade pra pensar nesse terreno árido das
contas. Eu fico sem ter nada de interressante a dizer a ninguém a respeito
desse assunto, a não ser que eu perceba que a situação está péssima e que, apesar
de eu ter um otimismo básico, eu não tenho razão pra estar esfusiante com
relação ao Brasil, de jeito nenhum. Agora, eu espero que o Brasil possa superar
essas coisas porque tenho muitas esperanças em outros campos. Não quero que o
Brasil pife no momento em que Arraes chegou ao governo de Pernanbuco. Eu quero
algumas coisas viáveis no momento.
T - Waldir Pires, meu Deus.
C - Eu quero algumas coisas móveis no momento em
que Waldir Pires chega ao governo da Bahia. Não é agora que eu quero que o
Brasil caia.
T - Mas qual é a solução?
C - Não vou aceitar isso. Eu acho muito também
sério ser pessimista demais.
T - Mas me diga uma coisa. Você não acha que está na hora de mudar o
governo, colocar eleições diretas, alguma coisa?
C - Acho, eu acho que deveria ter diretas logo.
T - Mas não sentimos nada há 23 anos.
C - É, há muito tempo! Pois é! Há muito tempo.
T - Você pagou por isso já.
C - E muito. As coisas são todas feitas
diretamente, saem diretamente do presidente da República. O presidente sai
assinando. Você não pode chamar isso realmente de uma democracia. É uma
transição. Não é que é lenta e gradual. Não está havendo mais nada. O que está
havendo parece que é uma espécie de constipação um entupimento do canal que
levaria a alguma democracia.
T - É. É uma coisa triste, né!
C - Pois eu acho que o problema fundamental é
crônico e isso eu acho muito triste. Não é que eu ache que a situação seja
péssima porque tá confuso, porque não deu certo o Plano Cruzado, porque o uso
do Plano Cruzado, como campanha para eleger alguns governadores ligados ao
governo, foi um desrespeito ao povo. Não é somente por isso. É que a situação
social no Brasil é apavorante. Quer dizer, o número de pessoas na rua e um
estado de mendicância que você encontra no Rio de Janeiro, sem falar nas
cidades do Nordeste, mas no Rio, em São Paulo, entendeu? Os automóveis, tudo,
as pessoas saem para o restaurante com um gravardozinho na mão...
T - A coisa é triste.
C - Tiram o cassete de dentro do carro, levam
debaixo do braço, botam em cima da mesa do restaurante. É um negócio
tristíssimo. Todos os carros têm alarme, todos eles disparam porque todo mundo
se esquece e ninguém sabe se foi o ladrão ou o dono. Ninguém liga mais. Aqueles
prédios de São Conrado têm metralhadora, polícia, microfone nos elevadores. No
meu filme, eu falo claramente disso. Tá explicitamente falado. E eu acho isso.
É uma coisa da questão social que você vê todo o dia.
T - E a mentirada que você vê todo o dia?
C - Então, eu acho que o Sarney foi um pouco uma
pessoa que caiu ali por acaso e que não tem muita capacidade de realizar uma
coisa forte assim. Não sei.
T - Não adianta.
C - Não sinto, firmeza, como se diz aqui no Rio.
Agora também não sinto antipatia por ele, mas acho que ele é um sujeito, um
cara que votou contra as diretas e agora é presidente da abertura, não é?
T - Quer dizer uma coisa de...
C - Me diga você uma coisa: durante todos os
vinte anos da ditadura mesmo, eu tendo sido preso e exilado eu disse pra muitos
dos meus amigos da esquerda, e disse de público, muitas vezes, que a gente
precisava tirar da cabeça aquela fantasia de que a ditadura caiu de Marte. Eu
achei sempre que a gente nunca se deu conta que a ditadura era a expressão
legítima do Brasil. O Brasil era uma coisa que o Brasil podia fazer no momento
em que o Brasil fez, e que expressava o Brasil de uma maneira genuína; e tanto
isso é verdade que você, olhando em retrospecto poucos períodos de democracia
que tivemos no Brasil, quase nenhuma, então eu lhe pergunto: será que a gente
consegue fazer um estado democrático razoável, ter uma política liberal,
respeitável, entendeu? Ou a gente tem que estar sempre sob o regime de força,
sem que apareça ou um líder carismático. Ou voltar às Forças Armadas, entendeu?
Pra botar essa gente nos eixos. Que gente somos nós? Por que a gente não se dá
ao respeito? Por que eu perco a paciência com isso? Eu acho que, estarem as
coisas como estão, a gente fica com uma impressão de que sempre a gente vai
precisar de uma ditadura, ou será que terá que ser a ditadura do proletariado
como revolução na frente? Eu acho que todo mundo devia se perguntar isso.
T - Eu acho o seguinte: o nosso problema é que nós temos o pior
empresariado do mundo, que não dá uma fatia de bolo e que coloca as Forças
Armadas exatamente como funcionários dessa ditadura; dessa ditadura da
burguesia, não é? E as Forças Armadas aceitam esse papel. Eu acho que
basicamente é um problema de falta de educação, sabe! Nós temos o pior
empresariado do mundo, os fascistas. São piores no empresariado do que nas
forças armadas, entendeu? Sendo que essa você pode ver. O 3º Exército, que é o
maior Exército do Brasil com exceção dos Estados do Sul, Rio Grande do Sul,
Paraná, e Sta. Catarina; eles, os fazendeiros, geralmente casam as filhas com
oficias do Exército.
C - Enfim, formam uma casta de dominação.
T - É, formam aquele negócio. Nós não temos Forças Armadas. Nós temos na
verdade funcionários dos fazendeiros, latifundiários e dos empresários.
C - É. Isso é uma loucura. E como é que isso
pode, de algum modo, mudar? Você acha que é possível o esclarecimento dessas
elites econômicas?
T - Não é que o Brasil é tão horrível, que fingiu que deu liberdade ao
negro, só que colocou o negro na "classe" dele, entendeu?
C - A história do negro do Brasil depois da
Abolição é a própria Abolição, o jeito...
T - Outro dia encontrei o porteiro do meu edifício falando mal de negro
com meu filho. Levou um esporro. Entende?
C - É...
T - Aquele negrinho, sabe! Quer dizer, é foda!
C - Aqui mesmo nesse prédio, eu tenho amigos
negros. Outro dia que teve uma reunião, negócio de síndico, não sei o que, de
condôminos, e alguém disse sobre aquele negócio de trancar a porta para não
passar da área de serviço para o elevador social, não sei o que. Eu sou contra
esse negócio.
T - Acho chato, isso.
C - Não sabem como resolver isso.
T - Por onde é que o Gil entra? (risos)
C - Pois é, o Gil entra pela frente, pelo
elevador social. Porque ia ser muito engraçado se fosse impedido de entrar.
T - Que coisa mais absurda. É um racismo total.
C - Mas não. Existir elevador de serviço, já é
um negócio ridículo. É um negócio horroroso.
T - Encerrando o negócio político. Diga uma coisa: você tem um filho que
estava aqui agora há pouco, o Moreno. O Moreno hoje tem 10 anos, não é?
C - Não, ele tem 14 anos...
1986 - Scarlet Moon de Chevalier, Moreno Veloso e Pedro de Lita |
T - 14 anos? Eu estou ficando velho. Mas vamos supor que o Moreno
tivesse 5 anos e que você o levasse até a Central do Brasil para ele ir ao
surbúrbio. Aí você encontrava lá um sujeito que era o José Sarney. Você
confiava o Moreno ao José Sarney?
C - Não. E por quê?
T - Não
sei. (risos)
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