domingo, 22 de julio de 2018

2018 - HÉLIO EICHBAUER



[Rio de Janeiro, 21 de outubro de 1941 – Rio de Janeiro, 20 de julho de 2018]




@Moreno_Veloso
21/07/2018

Esse sol que nos ilumina vem do gênio de Hélio Eichbauer. Ele nos deixou ontem. Estou profundamente triste. Minha alegria é ter convivido tantos anos com ele. Todo cultura, todo inteligência, todo delicadeza, todo amor. 


Foto: Gabriela Bilo / Estadão

LUTO! É com muita tristeza que comunicamos o falecimento do nosso grande mestre e amigo Helio Eichbauer (76), cenógrafo e artista, de extrema importância e contribuição com seus cenários para a cultura brasileira. Sua arte será eterna. Aos amigos, fãs e familiares, o velório será amanhã, dia 22/7, na Capela 8 do Memorial do Carmo (RJ), de 10h às 16h.



Fonte: Facebook






FOLHA DE S.PAULO

Em Roma, Caetano Veloso emociona e faz tributo ao cenógrafo Helio Eichbauer
Ao lados dos filhos Zeca, Tom e Moreno, cantor apresenta o show 'Ofertório'

24.jul.2018 às 2h00

Igiaba Scego

ROMA

Roma ama Caetano Veloso. E Caetano ama Roma. Um amor correspondido e que a cada momento desponta na música, especialmente nas homenagens que o cantor brasileiro vem fazendo durante toda a sua carreira ao cinema e à cultura italianos.

Na bela sala do Auditorium Parco della Musica, projetado por Renzo Piano, a expectativa quanto ao show "Ofertório" é forte, um pouco porque a acústica do auditório é excelente e um pouco porque todos se sentem convidados para uma reunião especial.

A banda é formada pela família Veloso: o pai Caetano e os filhos Zeca, Tom e Moreno. Idades diferentes, maneiras diferentes de abordar a música, vozes diferentes, mas, canção após canção, todos se fundem em um grande vórtice.


21/7/2018

É difícil falar de "Ofertório" sem se comover. Cristina Vuerich, veterana fã de Caetano, que não perde um de seus shows, diz que ele "expôs seus afetos muito mais do que em qualquer outro espetáculo", e acrescenta que sentiu "que estava sentada ao lado de dona Canô, a mãe de Caetano".

E é assim que nos sentimos. É como estivéssemos em Santo Amaro, ou na casa deles no Rio de Janeiro; cada canção oferecendo vislumbres da intimidade, das conversas pessoais entre pai e filhos. E tudo isso mostra o jeito deles de amar a música e de brincar com ela.

O show começa com "Alegria, Alegria" —e um tremor de emoção toma o público italiano. "Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro, eu vou" traz a muitos dos espectadores recordações não só da estreia do jovem Caetano, com seus cabelos encaracolados, mas da coragem dos migrantes que, apesar de tudo, atravessam o Mediterrâneo em barcos precários, para cruzar fronteiras. Foi isso que pensou Farida Nemiri, argelina.

Era sua primeira experiência em um show de Caetano Veloso, e dizia que "é uma emoção que prende. A vontade é de ficar aqui e escutá-los para sempre".

A música é doce, o som murmurante de uma intimidade que não grita e não se apressa, mas acompanha o ouvinte como escolta enquanto ele mergulha em atmosferas tanto benignas quanto sulfurosas.

É aí que entram os solos de guitarra de Tom, a voz rouca e pastosa de Zeca e o brilho rápido de Moreno. Caetano não rege a orquestra; é como se fosse conduzido pelos filhos.

Ele é pai, mas também, em certo sentido, o filho de seus filhos. Aprende com eles a aspirar ventos novos. E juntos nos levam pela mão a Santo Amaro. Vemos a procissão de Nossa Senhora, o Carnaval, as missas.

E em "Genipapo Absoluto", aquela cidadezinha onde tudo começou se torna visível de Roma. E é como se a capital italiana se transformasse um pouco em Santo Amaro quando eles tocam a canção "Reconvexo".

Naturalmente não faltam nos show os grandes sucessos de Caetano. Mas todos são revisitados sutilmente por essa linha vestida de rosa que é sua família.

"Trem das Cores" e "Oração ao Tempo" se transformam diante de nossos olhos estupefatos em orações laicas, que sobem ao céu abafado de Roma neste fim de julho.

Rino Bianchi, fotógrafo que já assistiu a muitos shows do brasileiro, diz sem rodeios que acaba de ver "Caetano em estado de graça". "Foi quase como tocar algo de sagrado. Não sei explicar bem, mas era como se houvesse algo de sagrado nesse show".

E a espiritualidade e religiosidade foram de fato evocadas no palco pela família Veloso. Caetano confessa não ser religioso, mas, em seguida, em italiano aprendido de tanto assistir aos filmes de Fellini e Antonioni, diz: "Meus filhos são religiosos". Zeca e Tom são cristãos e Moreno se interessa pelas religiões orientais e afro-brasileiras. Moreno acrescenta que é macumbeiro.

E é nesse ponto que o título "Ofertório" é explicado. Dona Canô, em certo sentido, era muito devota, e por isso seu filho escreveu uma canção em primeira pessoa, falando sobre o sagrado que o cerca.

Trata-se de uma homenagem à mãe, mas também à terra natal, devota e ligada ao mundo que não se vê a olhos nus.

O show emociona, mas com leveza. E há também o momento da risada, da batucada, do jogo.

A cenografia de um sol que se tinge de arco-íris mergulha o público em um universo paralelo onde tudo pode acontecer. Uma cenografia de beleza perturbadora em sua simplicidade que desarma.

E é da cenografia que os nossos mosqueteiros da música falam, em dado momento do show.

O homem que a criou se foi. Antes do espetáculo, surgiu a notícia da morte de Helio Eichbauer (1941-2018), um dos melhores cenógrafos latino-americanos.

A voz de Caetano fica embargada. Surgem lágrimas nos olhos da banda e do público.

E Moreno, como se oficiando o luto, diz, singelamente: "Dedicamos este show a ele".



21/7/2018
Igiaba Scego
Convidada da Flip 2018, é escritora e jornalista italiana de origem somali









 















O GLOBO
Cultura

Caetano: 'Cenário de Eichbauer é um poema sobre o que buscamos com nossa música'

Cenógrafo morto nesta sexta trabalhou em inúmeras turnês de músico, a mais recente delas, 'Ofertório', em turnê pela Europa




3/10/2017 - Show de Caetano Veloso com seus filhos Moreno, Zeca e Tom no Teatro Net Rio, em Copacabana  com cenário de Helio Eichbauer 
Foto: Leo Martins / Agência O Globo

3/10/2017 - Zeca, Caetano, Moreno e Tom no show "Ofertório", com cenário assinado por Helio Eichbauer - Foto: Leo Martins / Agência O Globo


por Caetano Veloso

21/07/2018



Em 1967, a visão do cenário de "O Rei da Vela" me botou em contato com a arte de Helio Eichbauer. É uma ligação que nasceu no momento do tropicalismo e que terminou virando, a partir dos anos 80, uma parceria que dura décadas: de "Circuladô" a "Abraçaço", Helio fez todos os cenários dos meus shows.



Caetano Veloso e o cenógrafo Helio Eichbauer - Divulgação

O método foi sempre o mesmo: quando já tínhamos os números razoavelmente preparados e o roteiro do show basicamente estabelecido, Helio vinha ao estúdio de ensaio e assistia a uma passagem das músicas em ordem. Ele ficava calado e nem esboçava reação de agrado ou desagrado durante a audição.

Antes de ir embora, ele falava sobre algum detalhe que lhe tivesse chamado a atenção, como se fosse um espectador casual. Ia pra casa e voltava (muitas vezes no dia seguinte) com um (ou alguns) projeto(s) de cenografia. Sempre assombrava com sua captação do sentido profundo o espetáculo.


Cenário de Helio Eichbauer para show "Abraçaço", de Caetano Veloso - Divulgação


Agora, com o "Ofertório", mais do que nunca: Moreno e eu já tínhamos intimidade com a genialidade de Helio, mas Zeca e Tom ficaram surpresos e emocionados com o que ele mostrava e observava em comentários. Faz meses, o Museu de Arte Moderna de Nova York me convidou para falar sobre a exposição de Tarsila do Amaral. Lá eu disse sobre Eichbauer: "Ele é que devia estar falando aqui".

Agora, excursionando com "Ofertório" pela Europa, a Tate Modern de Londres me fez uma entrevista gravada para ser usada na exposição de Hélio Oiticica que vai se dar lá. Queriam entender a relação entre o tropicalismo musical e as artes plásticas. Falei em Eichbauer como sendo o primeiro forte vínculo que tive com as artes visuais: o cenário de "O Rei da Vela" mostrara-se identificado com o que mais profundamente desejávamos, Gil e eu, fazer.



Caetano e Gil no show 'Dois amigos, um século de música', com cenário de Helio Eichbauer - Divulgação

Hélio morreu ontem, deixando uma imagem de grande porte em nossa vida cultural — e uma imensa saudade. Quem me deu a notícia foi meu filho Moreno, seu enteado querido e que o amava tanto: Dedé, sua mãe, viveu mais de vinte anos com Helio, desde que nos separamos.

Quem viu as aulas que Helio dava no Parque Lage encantou-se com sua cultura, sua clareza e sua inspiração. Além de toda uma história de cenografia para teatro, nós da música popular devemos a ele muito do que conseguimos. Recentemente suas cordas (motivo recorrente em suas delicadas peças) foram o aspecto visual das "Caravanas" de Chico. 



Cenário do show Caravanas, de Chico Buarque, foi idealizado por Eichbauer
Leo Aversa / Canivello Comunicação

Abril de 2018 - Chico Buarque grava DVD em SP 
Helio Eichbauer, Chico Buarque e Maneco Quinderé (iluminador)

Nós os Velosos, estamos em Roma, lugar tão em sintonia com ele, e faremos o show em homenagem à sua memória, diante do seu cenário que é um poema sobre o que buscamos com nossa música e com nossa vida. Minha saudade dele é enorme.




Fonte: Facebook
#RIP #LUTO #HelioEichbauer

Caetano Veloso
22/7/2018 14:41


Em 1967, a visão do cenário de O Rei da Vela me botou em contato com a arte de Hélio Eichbauer. É uma ligação que nasceu no momento do tropicalismo e que terminou virando, a partir dos anos 80, uma parceria que dura décadas: de O Estrangeiro a Abraçaço, Hélio fez todos os cenários dos meus shows. O método foi sempre o mesmo: quando já tínhamos os números razoavelmente preparados e o roteiro do show basicamente estabelecido, Hélio vinha ao estúdio de ensaio e assistia a uma passagem das músicas em ordem. Ele ficava calado e nem esboçava reação de agrado ou desagrado durante a audição. Antes de ir embora, ele falava sobre algum detalhe que lhe tivesse chamado a atenção, como se fosse um espectador casual. Ia pra casa e voltava (muitas vezes no dia seguinte) com um (ou alguns) projeto(s) de cenografia. Sempre assombrava com sua captação do sentido profundo do espetáculo. Agora, com o Ofertório, mais do que nunca: Moreno e eu já tínhamos intimidade com a genialidade de Hélio, mas Zeca e Tom ficaram surpresos e emocionados com o que ele mostrava e observava.

Faz meses, o Museu de Arte Moderna de Nova York me convidou para falar sobre a exposição de Tarsila do Amaral. Lá eu disse sobre Eichbauer: "Ele é que devia estar falando aqui". Agora, excursionando com Ofertório pela Europa, a Tate Modern de Londres me fez uma entrevista gravada para ser usada na exposição de Hélio Eichbauer que vai se dar lá. Queriam entender a relação entre o tropicalismo musical e as artes plásticas. Falei em Eichbauer como sendo o primeiro forte vínculo que os tropicalistas tiveram com as artes visuais: o cenário do Rei da Vela mostrara-se identificado com o que mais profundamente desejávamos, Gil e eu, fazer. Hélio morreu ontem, deixando uma imagem de grande porte em nossa vida cultural - e uma imensa saudade. Quem me deu a notícia foi meu filho Moreno, seu enteado querido e que o amava tanto: Dedé, sua mãe, viveu quase trinta anos com Hélio.

Quem viu as aulas que Hélio dava no Parque Lage encantou-se com sua cultura, sua clareza e sua inspiração. Além de toda uma história de cenografia para teatro, nós da música popular devemos a ele muito do que conseguimos. Recentemente suas cordas (motivo recorrente em suas delicadas peças) foram o aspecto visual das Caravanas de Chico. Nós os Velosos, estamos em Roma, lugar tão em sintonia com ele, e faremos o show em homenagem à sua memória, diante do seu cenário que é um poema sobre o que buscamos com nossa música e com nossa vida. Minha saudade dele é enorme.

Hélio Eichbauer foi discípulo do grande modernizador da cenografia tcheco, Joseph Svoboda, com quem estudou em Praga. Voltando ao Brasil, combinou Expressionismo com carnavalização na peça de Oswald encenada pelo Oficina. Em várias montagens teatrais mostrou que cenário é arquitetura, poesia e música. Manteve a documentação visual da divina obra de Martim Gonçalves na Escola de Teatro de Salvador (sobre a qual publicou livro feito em parceria com Dedé Veloso). Fez a cenografia da grande montagem de Escolas de Bufões de Moacyr Goes nos anos 1980. No cinema (que não era seu maior amigo) trabalhou com Glauber, Rui Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e Arnaldo Jabor. Era um homem refinado e firme. Sua autobiografia conta a experiência de um gênio carioca enfrentando o mundo. Culto e livre, ele combinava rigor e disciplina com inspiração lírica, gravidade com ironia. Foi um esteio de resistência à vulgarização de tudo. Conhecia o Rio em seus detalhes de sobrevida elegante. Mas não sofria com o desmantelamento do casario da ora da Cidade Baixa na Bahia: "Eu gosto", dizia das novas fachadas com grades e azulejos. Um mestre. Um homem adorável para se trabalhar em colaboração. Uma pessoa profunda e exigente mas delicada e doce. Um tesouro brasileiro.








2017 - “Ofertório”


2013 - “Abraçaço”


2015 - “Dois Amigos, Um Século de Música”


1995 - “Fina Estampa”




1989 - “Estrangeiro”


2008 - “Obra em progresso”


1998 - “Prenda Minha”


2009 - “zii e zie”






2004 - “A Foreing Sound”






1995 - Cenário de Fina Estampa, fragmento do painel de Diego Rivera








2018
Revista Continente
Edição #207
Março 2018

Revista Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco


PORTFÓLIO
Hélio Eichbauer
Painel da obra do cenógrafo, que realizou a cenografia do emblemático “O rei da vela”, em 1967



HÉLIO EICHBAUER
O escultor dos vazios

TEXTO MARIANA FILGUEIRAS E RONALDO PELLI
01 de Março de 2018


Desenho do cenário criado para 'O rei da vela',
montagem de 1967, dirigida por José Celso Martinez - Imagem: Divulgação


Assim como Michelangelo, para quem o bloco de mármore já continha a escultura que ele apenas revelaria ao desbastar a pedra, o principal cenógrafo brasileiro, Hélio Eichbauer, enxerga nos vazios de um palco virgem todas as formas que precisam ser retiradas para compor um cenário. Fica apenas o essencial. Para o polivalente e minimalista artista de 76 anos, o espaço é a sua principal matéria-prima.

“Você precisa de um espaço para o teatro e a música acontecerem. Esse espaço cúbico e esférico, como eu os vejo, é o começo do projeto. É na planta que começo a descobrir o cenário. Como preencher esse espaço. Ou melhor, como retirar desse excesso. Eu enxergo o múltiplo, depois vou abstraindo, vou retirando, vou aparando”, explica ele, sentado entre suas obras expostas no seu ateliê, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. “No bruto, já está incluído o desenho.”

Só por ter sido o autor do cenário da montagem emblemática que o diretor José Celso Martinez Corrêa fez em 1967 de O rei da vela, peça de autoria de Oswald de Andrade, Hélio já teria o nome cravado na história do teatro brasileiro. Sua leitura visual da obra modernista influenciou gerações de artistas, e foi um marco de outro movimento de vanguarda no Brasil: o Tropicalismo. Desde então, Helio Eichbauer seguiu criando a estética de peças de teatro e espetáculos que marcaram a nossa história cultural, como Antígona, de Sófocles, para o Teatro Opinião, em 1969, ou a adaptação Os Lusíadas, com direção de Celso Nunes, em 1974.



Outro desenho do cenário da montagem de O rei da vela de Zé Celso
Imagem: Reprodução


Seus últimos trabalhos mostram que ele seguiu desenhando grande: só nos últimos meses, Eichbauer assinou o palco dos shows Caravanas, de Chico Buarque; Ofertório, de Caetano Veloso com seus três filhos, Moreno, Zeca e Tom Veloso; Trinca de ases, de Gilberto Gil, Gal Costa e Nando Reis e a remontagem de 50 anos de O rei da vela pelo Teatro Oficina.

Não que a história da cenografia no Brasil não tivesse pares. Mas é que poucos foram tão iconoclastas quanto ele. Em Cenografia brasileira – Notas de um cenógrafo (Edições Sesc), J. C. Serroni lembra que o espaço cênico no teatro nacional se manteve praticamente inalterado até o início da década de 1940. Muitas vezes, as cenas eram compostas apenas de um pano de fundo, sem muita importância para a ação dramatúrgica – quando muito, telões pintados para os teatros de revista, mas sem investidas conceituais.

A primeira ruptura aconteceu com a peça Vestido de noiva, de 1943, um marco do teatro moderno brasileiro. Lembra Serroni que o projeto de Tomás Santa Rosa foi o primeiro a imaginar a ambientação como parte da própria concepção narrativa. Sob a direção do polonês Zbigniew Ziembinski, que trazia da Europa Central a experimentação daquela linguagem, Santa Rosa concretizou os três planos simultâneos em que corre a ação do texto seminal de Nelson Rodrigues – a realidade, a alucinação e a memória. Assim, a figura do cenotécnico ficava na coxia, e a do cenógrafo ganhava a boca de cena.

O próximo marco dessa história viria a ser a arte de O rei da vela, de Eichbauer. Quando o concebeu, uma de suas sacadas foi ter feito três palcos com referências estéticas diferentes para cada um dos atos – na entrada da sua casa, figura um pôster que reproduz a arte do início da peça, como uma imagem a antecipar, e sintetizar, o seu autor. O primeiro cenário seguia um realismo crítico, com predominância de cores escuras e pintadas de verde-amarelo, em contraposição a um tipo de expressionismo de figuras deformadas e grandes sombras. O segundo ressaltava referências mais solares, como Tarsila do Amaral, suas cores quentes e alegres, em um painel que mostrava uma estilizada Baía de Guanabara. O terceiro ato era uma espécie de embate dos dois primeiros, culminando na morte do personagem principal – e o cenário que o acompanhava era uma cortina vermelha que envolvia uma sombria fileira de esqueletos segurando velas. Um desfile de cores e figuras desesperadas, a surpreender a plateia com reações guturais. Os cenários eram tão marcantes, que, quando a peça foi censurada pela ditadura militar em 1968, o primeiro ato simbólico do diretor Zé Celso foi queimá-lo num cemitério – gesto do qual diz se arrepender profundamente.

“A gente não tinha muita noção do que estava fazendo. Estávamos apenas reeditando a obra de Oswald. Mergulhamos no Modernismo e acabamos criando o Tropicalismo”, comenta Eichbauer, lembrando o sucesso da peça que, seguindo a trilha da anarquia oswaldiana, abriu outra vertente estética para além do chamado teatro engajado.


O teatro engajado ganhou força com o cenário do artista
Imagem: Reprodução

O rei da vela selou a formação profissional de Hélio. Ele tinha voltado ao Brasil havia pouco tempo de uma temporada de quatro anos em Praga (1962 a 1966), estudando com um dos principais cenógrafos do século XX, o tcheco Josef Svoboda, um pioneiro em projetos que casavam tecnologia e humanismo, lançando mão de materiais até então improváveis no teatro, como laser, espelhos, projeções múltiplas de luz e som. Responsável por mais de 700 cenografias para as mais importantes companhias de teatro e ópera do mundo, Svoboda fundou o famoso grupo teatral Lanterna Mágica, de Praga.

A passagem de Eichbauer pela Tchecoslováquia no pós-guerra o fez mergulhar no universo do Construtivismo e do Abstracionismo, com enfoque em sombras e luz, volumes e tons de cinza entre o preto e o branco. Mas antes de voltar em definitivo ao Brasil, naquele 1966, o artista ainda aceitaria um convite para passar uma breve temporada em Cuba. A estada seria fundamental para lhe injetar de volta as cores dos trópicos, o que culminaria no resultado final exitoso de O rei da vela. “Passei do art déco geométrico para o fauvismo expressionista”, diria ele, anos depois.

* * *

O cenário queimado de O rei da vela ganharia sobrevida em 1989, quando Caetano Veloso – que se tornou seu amigo naquela alegria-alegria de 1967 – pediu para usar o painel do segundo ato na capa de seu novo álbum, Estrangeiro. Era o início da longa parceria de trabalho dos dois. Eichbauer refez o cenário, e, desde então, assinou 12 cenários de shows de Caetano Veloso.

Estrangeiro também era o início do uso de um elemento em cena que se transformou em uma de suas marcas: os fios, as cordas, as linhas. Apesar de já seguir a cartilha da geometria e do minimalismo – a exemplo dos trabalhos nas das peças Verão, de Roman Weingarten, também em 1967; ou Álbum de família, de Nelson Rodrigues, dois anos depois (ambas dirigidas por Martim Gonçalves) – esses elementos geométricos e minimalistas só se transformariam em uma assinatura em Estrangeiro.


Projeções foram usadas na montagem de 1969 de Álbum de família, direção de Martim Gonçalves - Foto: Divulgação


Para o cenário, traçou dois fios, um acima do outro, em uma complementaridade imperfeita, como se o de cima sugerisse uma concavidade, mais redonda, mais sensual, lembrando o relevo das montanhas do Rio, enquanto o de baixo, convexo e pontilhado, formava um ângulo reto, mais rígido. “O cenário para música e para ópera não é realista, nem tão somente figurativo. É um cenário minimalista, musical, abstrato. Daí eu utilizar, às vezes, a geometria. A minha base de cenografia é o abstracionismo geométrico”, diz ele. Para o artista, esses fios, barbantes, cordas “são, na verdade, trajetórias, vetores”.

No atual show de Caetano com os filhos, batizado de Ofertório, suas “cordas de assinatura”, como o próprio Caetano as chama, voltaram a aparecer. Hélio colocou um conjunto de quatro linhas no horizonte – os quatro intérpretes –, vindo de ambos os lados do palco. Elas se encontram ao seu centro, mas um centro assimétrico, e se entrelaçam, pendendo, delicadamente. Ao fundo, uma esfera, como um corpo celeste. À frente e à direita, um tecido suspenso, como uma nuvem confortável. A cenografia pode ser vista como uma metáfora para o encontro familiar, caloroso, íntimo. Sugere que os Veloso estão sentados na calçada em frente de casa de Santo Amaro, no Recôncavo baiano, a cantar a vida que passa.

Não foi só a família de Dona Canô que se enredou no seu talento. Praticamente todos os grandes nomes da chamada MPB, aqueles da geração do próprio Hélio, já fizeram uso dos seus trabalhos e das suas criações. De Chico Buarque a Gilberto Gil, passando por nomes como Milton Nascimento e Gal Costa, até artistas mais novas que seguem a mesma toada, como Adriana Calcanhotto ou Marisa Monte. Não só: já assinou o cenário de óperas, cinema, exposições. Encenou Villa-Lobos, Mozart, Verdi, Shakespeare, Tchekhov, Brecht. Fez filmes com Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor. Ganhou várias vezes o prêmio Molière e o Sharp. Esculpe, pinta, desenha, ilustra, constrói mecanismos. A cenografia não o limita: ele pode trocar de materiais ou de técnicas, dependendo do estímulo.

“Trabalhar com os nomes da minha geração é fácil, porque vivemos um passado em comum. Há uma cumplicidade silenciosa, anterior, de gostos. São concordâncias harmônicas, tem uma relação com a música. É um diálogo interno, há subtextos quase telepáticos.”


Show recente de Caetano e filhos com cenário dele - Foto: Ney Coelho/Divulgação

O processo de criação é simples: ele recebe as músicas ou o texto da peça; recolhe-se, fica escutando-as, lendo, imergindo; e começa a rascunhar, analogicamente, sobre uma prancheta. Não há pedidos insistentes, briefing detalhado ou receita de bolo. Se ele percebe que não se encaixa com o artista, cede o seu lugar para outro cenógrafo.

* * *

A história com Chico Buarque também começou de forma curiosa: entre os grandes nomes da música, ele foi o primeiro a lhe encomendar um cenário – mas para o teatro. Eichbauer foi chamado para conceber o palco de Calabar, peça de Chico com Ruy Guerra. E a censura, mais uma vez, interrompeu os planos. Os artistas não desistiram e criaram um show completamente novo com as músicas já compostas. Assim, nasceu Tempo e contratempo, em 1974, a primeira parceria dos dois, que também dura até hoje.

Para o show Caravanas, atualmente em cartaz, ele voltou a usar os elementos-assinatura: são várias cordas penduradas, pendentes, umas apoiadas nas outras, dinâmicas, que dão leveza ao mesmo tempo em que emprestam movimento e balanço para o fundo, o horizonte de quem observa o palco. Ao centro, uma esfera armilar – um antigo e icônico instrumento de astronomia usado para ajudar nas navegações.

“O cenário do Chico são ondas eletromagnéticas, que é a parte do iluminador Maneco Quinderé; e ondas mecânicas, a minha parte, que são as ondas do mar. E também as sonoras. Ondas que são linhas”, diz ele, antes de mostrar a maquete em que Chico brincou com as cordas de seu futuro cenário.


2017 - Foto: Sebastião Moreira




Outro exemplo de extensão das suas linhas-trajetórias está no cenário para o show Trinca de ases. As linhas aparecem outra vez, criando elementos bem mais figurados: três pipas – uma para cada intérprete. A luz dialoga, mexendo nas formas, nos volumes, ressaltando-as ou escondendo-as. Linhas retas, duras, que formam uma imagem lúdica, flexível, brasileira. Eichbauer sabe que é possível criar balanço até com as linhas mais insofismáveis. Que toda reta é um pedaço de uma curva. E que a alegria é a prova dos nove, como enunciou, lá atrás, o mesmo Oswald de Andrade.






MARIANA FILGUEIRAS, jornalista, mestranda em Literatura pela UFF.
RONALDO PELLI, jornalista e mestre em Filosofia.





Cenário de Hélio Eichbauer para o espetáculo 'o Jardim das Cerejeiras'
Foto: Divulgação













No hay comentarios:

Publicar un comentario