[Rio de Janeiro, 21 de outubro de 1941 – Rio de Janeiro, 20 de julho de 2018]
@Moreno_Veloso
21/07/2018
Esse sol que nos ilumina vem
do gênio de Hélio Eichbauer. Ele nos deixou ontem. Estou profundamente triste.
Minha alegria é ter convivido tantos anos com ele. Todo cultura, todo
inteligência, todo delicadeza, todo amor.
Foto: Gabriela Bilo / Estadão
|
LUTO! É com muita tristeza que
comunicamos o falecimento do nosso grande mestre e amigo Helio Eichbauer (76),
cenógrafo e artista, de extrema importância e contribuição com seus cenários
para a cultura brasileira. Sua arte será eterna. Aos amigos, fãs e familiares,
o velório será amanhã, dia 22/7, na Capela 8 do Memorial do Carmo (RJ), de 10h
às 16h.
Fonte: Facebook
FOLHA DE S.PAULO
Em Roma, Caetano Veloso
emociona e faz tributo ao cenógrafo Helio Eichbauer
Ao lados dos
filhos Zeca, Tom e Moreno, cantor apresenta o show 'Ofertório'
24.jul.2018 às 2h00
Igiaba Scego
ROMA
Roma ama Caetano Veloso. E
Caetano ama Roma. Um amor correspondido e que a cada momento desponta na
música, especialmente nas homenagens que o cantor brasileiro vem fazendo
durante toda a sua carreira ao cinema e à cultura italianos.
Na bela sala do Auditorium Parco
della Musica, projetado por Renzo Piano, a expectativa quanto ao show "Ofertório"
é forte, um pouco porque a acústica do auditório é
excelente e um pouco porque todos se sentem convidados para uma reunião
especial.
A banda é formada pela família
Veloso: o pai Caetano e os filhos Zeca, Tom e Moreno. Idades diferentes,
maneiras diferentes de abordar a música, vozes diferentes, mas, canção após
canção, todos se fundem em um grande vórtice.
21/7/2018 |
É
difícil falar de "Ofertório" sem se comover. Cristina Vuerich,
veterana fã de Caetano, que não perde um de seus shows, diz que ele "expôs
seus afetos muito mais do que em qualquer outro espetáculo", e acrescenta
que sentiu "que estava sentada ao lado de dona Canô, a mãe de
Caetano".
E
é assim que nos sentimos. É como estivéssemos em Santo Amaro, ou na casa deles
no Rio de Janeiro; cada canção oferecendo vislumbres da intimidade, das
conversas pessoais entre pai e filhos. E tudo isso mostra o jeito deles de amar
a música e de brincar com ela.
O
show começa com "Alegria, Alegria" —e um tremor de emoção toma o
público italiano. "Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, no
sol de quase dezembro, eu vou" traz a muitos dos espectadores recordações
não só da estreia do jovem Caetano, com seus cabelos encaracolados, mas da
coragem dos migrantes que, apesar de tudo, atravessam o Mediterrâneo em barcos
precários, para cruzar fronteiras. Foi isso que pensou Farida Nemiri, argelina.
Era
sua primeira experiência em um show de Caetano Veloso, e dizia que "é uma
emoção que prende. A vontade é de ficar aqui e escutá-los para sempre".
A
música é doce, o som murmurante de uma intimidade que não grita e não se apressa,
mas acompanha o ouvinte como escolta enquanto ele mergulha em atmosferas tanto
benignas quanto sulfurosas.
É
aí que entram os solos de guitarra de Tom, a voz rouca e pastosa de Zeca e o
brilho rápido de Moreno. Caetano não rege a orquestra; é como se fosse
conduzido pelos filhos.
Ele
é pai, mas também, em certo sentido, o filho de seus filhos. Aprende com eles a
aspirar ventos novos. E juntos nos levam pela mão a Santo Amaro. Vemos a
procissão de Nossa Senhora, o Carnaval, as missas.
E
em "Genipapo Absoluto", aquela cidadezinha onde tudo começou se torna
visível de Roma. E é como se a capital italiana se transformasse um pouco em
Santo Amaro quando eles tocam a canção "Reconvexo".
Naturalmente
não faltam nos show os grandes sucessos de Caetano. Mas todos são revisitados
sutilmente por essa linha vestida de rosa que é sua família.
"Trem
das Cores" e "Oração ao Tempo" se transformam diante de nossos
olhos estupefatos em orações laicas, que sobem ao céu abafado de Roma neste fim
de julho.
Rino
Bianchi, fotógrafo que já assistiu a muitos shows do brasileiro, diz sem
rodeios que acaba de ver "Caetano em estado de graça". "Foi
quase como tocar algo de sagrado. Não sei explicar bem, mas era como se
houvesse algo de sagrado nesse show".
E
a espiritualidade e religiosidade foram de fato evocadas no palco pela família
Veloso. Caetano confessa não ser religioso, mas, em seguida, em italiano
aprendido de tanto assistir aos filmes de Fellini e Antonioni, diz: "Meus
filhos são religiosos". Zeca e Tom são cristãos e Moreno se interessa
pelas religiões orientais e afro-brasileiras. Moreno acrescenta que é
macumbeiro.
E
é nesse ponto que o título "Ofertório" é explicado. Dona Canô,
em certo sentido, era muito devota, e por isso seu filho escreveu uma canção em
primeira pessoa, falando sobre o sagrado que o cerca.
Trata-se
de uma homenagem à mãe, mas também à terra natal, devota e ligada ao mundo que
não se vê a olhos nus.
O
show emociona, mas com leveza. E há também o momento da risada, da batucada, do
jogo.
A
cenografia de um sol que se tinge de arco-íris mergulha o público em um
universo paralelo onde tudo pode acontecer. Uma cenografia de beleza
perturbadora em sua simplicidade que desarma.
E
é da cenografia que os nossos mosqueteiros da música falam, em dado momento do
show.
O
homem que a criou se foi. Antes do espetáculo, surgiu a notícia da morte de Helio
Eichbauer (1941-2018), um dos melhores cenógrafos latino-americanos.
A
voz de Caetano fica embargada. Surgem lágrimas nos olhos da banda e do público.
E
Moreno, como se oficiando o luto, diz, singelamente: "Dedicamos este show
a ele".
21/7/2018 |
Igiaba
Scego
Convidada da Flip 2018, é escritora e jornalista italiana de origem somali
O GLOBO
Cultura
Caetano: 'Cenário de Eichbauer é um poema sobre o que buscamos com nossa música'
Cenógrafo morto nesta sexta trabalhou em
inúmeras turnês de músico, a mais recente delas, 'Ofertório', em turnê pela
Europa
3/10/2017 - Show de Caetano Veloso com seus filhos Moreno, Zeca
e Tom no Teatro Net Rio, em Copacabana com cenário de Helio Eichbauer
Foto: Leo Martins / Agência O Globo
|
3/10/2017 - Zeca, Caetano, Moreno e Tom no show "Ofertório", com cenário assinado por Helio Eichbauer - Foto: Leo Martins / Agência O Globo |
por Caetano Veloso
21/07/2018
Em 1967, a visão do cenário de "O Rei da Vela" me botou em contato com a arte de Helio Eichbauer. É uma ligação que nasceu no momento do tropicalismo e que terminou virando, a partir dos anos 80, uma parceria que dura décadas: de "Circuladô" a "Abraçaço", Helio fez todos os cenários dos meus shows.
Caetano Veloso e o cenógrafo Helio Eichbauer - Divulgação |
O método foi sempre o mesmo: quando já tínhamos os números razoavelmente preparados e o roteiro do show basicamente estabelecido, Helio vinha ao estúdio de ensaio e assistia a uma passagem das músicas em ordem. Ele ficava calado e nem esboçava reação de agrado ou desagrado durante a audição.
Antes de ir embora, ele
falava sobre algum detalhe que lhe tivesse chamado a atenção, como se fosse um
espectador casual. Ia pra casa e voltava (muitas vezes no dia seguinte) com um
(ou alguns) projeto(s) de cenografia. Sempre assombrava com sua captação do
sentido profundo o espetáculo.
Agora,
com o "Ofertório", mais do que nunca: Moreno e eu já tínhamos
intimidade com a genialidade de Helio, mas Zeca e Tom ficaram surpresos e
emocionados com o que ele mostrava e observava em comentários. Faz meses, o
Museu de Arte Moderna de Nova York me convidou para falar sobre a exposição de
Tarsila do Amaral. Lá eu disse sobre Eichbauer: "Ele é que devia estar
falando aqui".
Agora, excursionando com
"Ofertório" pela Europa, a Tate Modern de Londres me fez uma
entrevista gravada para ser usada na exposição de Hélio Oiticica que vai se dar
lá. Queriam entender a relação entre o tropicalismo musical e as artes
plásticas. Falei em Eichbauer como sendo o primeiro forte vínculo que tive com
as artes visuais: o cenário de "O Rei da Vela" mostrara-se
identificado com o que mais profundamente desejávamos, Gil e eu, fazer.
Hélio morreu ontem, deixando uma imagem de grande porte em nossa vida cultural — e uma imensa saudade. Quem me deu a notícia foi meu filho Moreno, seu enteado querido e que o amava tanto: Dedé, sua mãe, viveu mais de vinte anos com Helio, desde que nos separamos.
Caetano
e Gil no show 'Dois amigos, um século de música', com cenário de Helio
Eichbauer - Divulgação
|
Hélio morreu ontem, deixando uma imagem de grande porte em nossa vida cultural — e uma imensa saudade. Quem me deu a notícia foi meu filho Moreno, seu enteado querido e que o amava tanto: Dedé, sua mãe, viveu mais de vinte anos com Helio, desde que nos separamos.
Quem viu as aulas que Helio dava no Parque Lage encantou-se com sua cultura, sua clareza e sua inspiração. Além de toda uma história de cenografia para teatro, nós da música popular devemos a ele muito do que conseguimos. Recentemente suas cordas (motivo recorrente em suas delicadas peças) foram o aspecto visual das "Caravanas" de Chico.
Cenário do show Caravanas, de Chico Buarque, foi idealizado por Eichbauer Leo Aversa / Canivello Comunicação |
Abril de 2018 - Chico Buarque grava DVD em SP Helio Eichbauer, Chico Buarque e Maneco Quinderé (iluminador) |
Nós os Velosos, estamos em Roma, lugar tão em sintonia com ele, e faremos o show em homenagem à sua memória, diante do seu cenário que é um poema sobre o que buscamos com nossa música e com nossa vida. Minha saudade dele é enorme.
Fonte: Facebook
#RIP #LUTO #HelioEichbauer
Caetano
Veloso
22/7/2018 14:41
Em
1967, a visão do cenário de O Rei da Vela me botou em contato com a arte de
Hélio Eichbauer. É uma ligação que nasceu no momento do tropicalismo e que
terminou virando, a partir dos anos 80, uma parceria que dura décadas: de O
Estrangeiro a Abraçaço, Hélio fez todos os cenários dos meus shows. O método
foi sempre o mesmo: quando já tínhamos os números razoavelmente preparados e o
roteiro do show basicamente estabelecido, Hélio vinha ao estúdio de ensaio e
assistia a uma passagem das músicas em ordem. Ele ficava calado e nem esboçava
reação de agrado ou desagrado durante a audição. Antes de ir embora, ele falava
sobre algum detalhe que lhe tivesse chamado a atenção, como se fosse um
espectador casual. Ia pra casa e voltava (muitas vezes no dia seguinte) com um
(ou alguns) projeto(s) de cenografia. Sempre assombrava com sua captação do
sentido profundo do espetáculo. Agora, com o Ofertório, mais do que nunca:
Moreno e eu já tínhamos intimidade com a genialidade de Hélio, mas Zeca e Tom
ficaram surpresos e emocionados com o que ele mostrava e observava.
Faz
meses, o Museu de Arte Moderna de Nova York me convidou para falar sobre a
exposição de Tarsila do Amaral. Lá eu disse sobre Eichbauer: "Ele é que
devia estar falando aqui". Agora, excursionando com Ofertório pela Europa,
a Tate Modern de Londres me fez uma entrevista gravada para ser usada na
exposição de Hélio Eichbauer que vai se dar lá. Queriam entender a relação
entre o tropicalismo musical e as artes plásticas. Falei em Eichbauer como
sendo o primeiro forte vínculo que os tropicalistas tiveram com as artes
visuais: o cenário do Rei da Vela mostrara-se identificado com o que mais
profundamente desejávamos, Gil e eu, fazer. Hélio morreu ontem, deixando uma
imagem de grande porte em nossa vida cultural - e uma imensa saudade. Quem me
deu a notícia foi meu filho Moreno, seu enteado querido e que o amava tanto:
Dedé, sua mãe, viveu quase trinta anos com Hélio.
Quem
viu as aulas que Hélio dava no Parque Lage encantou-se com sua cultura, sua
clareza e sua inspiração. Além de toda uma história de cenografia para teatro,
nós da música popular devemos a ele muito do que conseguimos. Recentemente suas
cordas (motivo recorrente em suas delicadas peças) foram o aspecto visual das
Caravanas de Chico. Nós os Velosos, estamos em Roma, lugar tão em sintonia com
ele, e faremos o show em homenagem à sua memória, diante do seu cenário que é
um poema sobre o que buscamos com nossa música e com nossa vida. Minha saudade
dele é enorme.
Hélio
Eichbauer foi discípulo do grande modernizador da cenografia tcheco, Joseph
Svoboda, com quem estudou em Praga. Voltando ao Brasil, combinou Expressionismo
com carnavalização na peça de Oswald encenada pelo Oficina. Em várias montagens
teatrais mostrou que cenário é arquitetura, poesia e música. Manteve a
documentação visual da divina obra de Martim Gonçalves na Escola de Teatro de
Salvador (sobre a qual publicou livro feito em parceria com Dedé Veloso). Fez a
cenografia da grande montagem de Escolas de Bufões de Moacyr Goes nos anos
1980. No cinema (que não era seu maior amigo) trabalhou com Glauber, Rui
Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e Arnaldo Jabor. Era um homem refinado e
firme. Sua autobiografia conta a experiência de um gênio carioca enfrentando o
mundo. Culto e livre, ele combinava rigor e disciplina com inspiração lírica,
gravidade com ironia. Foi um esteio de resistência à vulgarização de tudo. Conhecia
o Rio em seus detalhes de sobrevida elegante. Mas não sofria com o
desmantelamento do casario da ora da Cidade Baixa na Bahia: "Eu
gosto", dizia das novas fachadas com grades e azulejos. Um mestre. Um
homem adorável para se trabalhar em colaboração. Uma pessoa profunda e exigente
mas delicada e doce. Um tesouro brasileiro.
2017 - “Ofertório”
2013 - “Abraçaço”
2015 - “Dois Amigos, Um Século de Música”
1995 - “Fina Estampa”
1989 - “Estrangeiro”
2008 - “Obra em progresso”
1998 - “Prenda Minha”
2009 - “zii e zie”
2004 - “A Foreing Sound”
1995 - Cenário de Fina Estampa, fragmento do painel de Diego Rivera
2018
Revista
Continente
Edição #207
Edição #207
Março
2018
Revista
Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco
PORTFÓLIO
Hélio
Eichbauer
Painel
da obra do cenógrafo, que realizou a cenografia do emblemático “O rei da vela”,
em 1967
HÉLIO EICHBAUER
O escultor dos vazios
TEXTO MARIANA FILGUEIRAS E RONALDO PELLI
01 de Março de 2018
Desenho do cenário criado para 'O rei da vela', montagem de 1967, dirigida por José Celso Martinez - Imagem: Divulgação |
Assim como Michelangelo, para quem o bloco de
mármore já continha a escultura que ele apenas revelaria ao desbastar a pedra,
o principal cenógrafo brasileiro, Hélio Eichbauer, enxerga nos vazios de um
palco virgem todas as formas que precisam ser retiradas para compor um cenário.
Fica apenas o essencial. Para o polivalente e minimalista artista de 76 anos, o
espaço é a sua principal matéria-prima.
“Você
precisa de um espaço para o teatro e a música acontecerem. Esse espaço cúbico e
esférico, como eu os vejo, é o começo do projeto. É na planta que começo a
descobrir o cenário. Como preencher esse espaço. Ou melhor, como retirar desse
excesso. Eu enxergo o múltiplo, depois vou abstraindo, vou retirando, vou
aparando”, explica ele, sentado entre suas obras expostas no seu ateliê, no
Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. “No bruto, já está incluído o desenho.”
Só
por ter sido o autor do cenário da montagem emblemática que o diretor José
Celso Martinez Corrêa fez em 1967 de O rei da vela, peça de autoria de
Oswald de Andrade, Hélio já teria o nome cravado na história do teatro
brasileiro. Sua leitura visual da obra modernista influenciou gerações de
artistas, e foi um marco de outro movimento de vanguarda no Brasil: o
Tropicalismo. Desde então, Helio Eichbauer seguiu criando a estética de peças
de teatro e espetáculos que marcaram a nossa história cultural, como Antígona,
de Sófocles, para o Teatro Opinião, em 1969, ou a adaptação Os Lusíadas,
com direção de Celso Nunes, em 1974.
Outro desenho do cenário da montagem de O rei da vela de Zé Celso Imagem: Reprodução |
Seus últimos trabalhos mostram
que ele seguiu desenhando grande: só nos últimos meses, Eichbauer assinou o
palco dos shows Caravanas,
de Chico Buarque; Ofertório, de Caetano Veloso com seus três filhos,
Moreno, Zeca e Tom Veloso; Trinca de ases, de Gilberto Gil, Gal Costa e Nando
Reis e a remontagem de 50 anos de O rei da vela pelo Teatro Oficina.
Não que a história da
cenografia no Brasil não tivesse pares. Mas é que poucos foram tão iconoclastas
quanto ele. Em Cenografia
brasileira – Notas de um cenógrafo (Edições Sesc), J. C. Serroni
lembra que o espaço cênico no teatro nacional se manteve praticamente
inalterado até o início da década de 1940. Muitas vezes, as cenas eram
compostas apenas de um pano de fundo, sem muita importância para a ação
dramatúrgica – quando muito, telões pintados para os teatros de revista, mas
sem investidas conceituais.
A primeira ruptura aconteceu
com a peça Vestido de noiva,
de 1943, um marco do teatro moderno brasileiro. Lembra Serroni que o projeto de
Tomás Santa Rosa foi o primeiro a imaginar a ambientação como parte da própria
concepção narrativa. Sob a direção do polonês Zbigniew Ziembinski, que trazia
da Europa Central a experimentação daquela linguagem, Santa Rosa concretizou os
três planos simultâneos em que corre a ação do texto seminal de Nelson
Rodrigues – a realidade, a alucinação e a memória. Assim, a figura do
cenotécnico ficava na coxia, e a do cenógrafo ganhava a boca de cena.
O próximo marco dessa história
viria a ser a arte de O rei da vela, de Eichbauer. Quando o concebeu, uma de
suas sacadas foi ter feito três palcos com referências estéticas diferentes
para cada um dos atos – na entrada da sua casa, figura um pôster que reproduz a
arte do início da peça, como uma imagem a antecipar, e sintetizar, o seu autor.
O primeiro cenário seguia um realismo crítico, com predominância de cores
escuras e pintadas de verde-amarelo, em contraposição a um tipo de
expressionismo de figuras deformadas e grandes sombras. O segundo ressaltava
referências mais solares, como Tarsila do Amaral, suas cores quentes e alegres,
em um painel que mostrava uma estilizada Baía de Guanabara. O terceiro ato era
uma espécie de embate dos dois primeiros, culminando na morte do personagem
principal – e o cenário que o acompanhava era uma cortina vermelha que envolvia
uma sombria fileira de esqueletos segurando velas. Um desfile de cores e
figuras desesperadas, a surpreender a plateia com reações guturais. Os cenários
eram tão marcantes, que, quando a peça foi censurada pela ditadura militar em
1968, o primeiro ato simbólico do diretor Zé Celso foi queimá-lo num cemitério
– gesto do qual diz se arrepender profundamente.
“A gente não tinha muita noção do
que estava fazendo. Estávamos apenas reeditando a obra de Oswald. Mergulhamos
no Modernismo e acabamos criando o Tropicalismo”, comenta Eichbauer, lembrando
o sucesso da peça que, seguindo a trilha da anarquia oswaldiana, abriu outra
vertente estética para além do chamado teatro engajado.
O teatro engajado ganhou força com o cenário do artista Imagem: Reprodução |
O rei da vela selou a formação profissional de Hélio. Ele tinha
voltado ao Brasil havia pouco tempo de uma temporada de quatro anos em Praga
(1962 a 1966), estudando com um dos principais cenógrafos do século XX, o
tcheco Josef Svoboda, um pioneiro em projetos que casavam tecnologia e
humanismo, lançando mão de materiais até então improváveis no teatro, como laser, espelhos,
projeções múltiplas de luz e som. Responsável por mais de 700 cenografias para
as mais importantes companhias de teatro e ópera do mundo, Svoboda fundou o
famoso grupo teatral Lanterna Mágica, de Praga.
A passagem de Eichbauer pela
Tchecoslováquia no pós-guerra o fez mergulhar no universo do Construtivismo e
do Abstracionismo, com enfoque em sombras e luz, volumes e tons de cinza entre
o preto e o branco. Mas antes de voltar em definitivo ao Brasil, naquele 1966,
o artista ainda aceitaria um convite para passar uma breve temporada em Cuba. A
estada seria fundamental para lhe injetar de volta as cores dos trópicos, o que
culminaria no resultado final exitoso de O rei da vela. “Passei do art déco geométrico para o fauvismo
expressionista”, diria ele, anos depois.
* * *
O cenário queimado de O rei da vela ganharia
sobrevida em 1989, quando Caetano Veloso – que se tornou seu amigo naquela
alegria-alegria de 1967 – pediu para usar o painel do segundo ato na capa de
seu novo álbum, Estrangeiro.
Era o início da longa parceria de trabalho dos dois. Eichbauer refez o cenário,
e, desde então, assinou 12 cenários de shows de Caetano Veloso.
Estrangeiro também era o início do uso de um elemento em cena que
se transformou em uma de suas marcas: os fios, as cordas, as linhas. Apesar de
já seguir a cartilha da geometria e do minimalismo – a exemplo dos trabalhos
nas das peças Verão,
de Roman Weingarten, também em 1967; ou Álbum de família, de Nelson Rodrigues, dois anos
depois (ambas dirigidas por Martim Gonçalves) – esses elementos geométricos e
minimalistas só se transformariam em uma assinatura em Estrangeiro.
Projeções foram usadas na montagem de 1969 de Álbum de família, direção de Martim Gonçalves - Foto: Divulgação |
Para o cenário, traçou dois
fios, um acima do outro, em uma complementaridade imperfeita, como se o de cima
sugerisse uma concavidade, mais redonda, mais sensual, lembrando o relevo das montanhas
do Rio, enquanto o de baixo, convexo e pontilhado, formava um ângulo reto, mais
rígido. “O cenário para música e para ópera não é realista, nem tão somente
figurativo. É um cenário minimalista, musical, abstrato. Daí eu utilizar, às
vezes, a geometria. A minha base de cenografia é o abstracionismo geométrico”,
diz ele. Para o artista, esses fios, barbantes, cordas “são, na verdade,
trajetórias, vetores”.
No atual show de Caetano com os
filhos, batizado de Ofertório, suas “cordas de assinatura”, como o próprio
Caetano as chama, voltaram a aparecer. Hélio colocou um conjunto de quatro
linhas no horizonte – os quatro intérpretes –, vindo de ambos os lados do
palco. Elas se encontram ao seu centro, mas um centro assimétrico, e se
entrelaçam, pendendo, delicadamente. Ao fundo, uma esfera, como um corpo
celeste. À frente e à direita, um tecido suspenso, como uma nuvem confortável.
A cenografia pode ser vista como uma metáfora para o encontro familiar,
caloroso, íntimo. Sugere que os Veloso estão sentados na calçada em frente de
casa de Santo Amaro, no Recôncavo baiano, a cantar a vida que passa.
Não foi só a família de Dona
Canô que se enredou no seu talento. Praticamente todos os grandes nomes da
chamada MPB, aqueles da geração do próprio Hélio, já fizeram uso dos seus
trabalhos e das suas criações. De Chico Buarque a Gilberto Gil, passando por
nomes como Milton Nascimento e Gal Costa, até artistas mais novas que seguem a
mesma toada, como Adriana Calcanhotto ou Marisa Monte. Não só: já assinou o
cenário de óperas, cinema, exposições. Encenou Villa-Lobos, Mozart, Verdi,
Shakespeare, Tchekhov, Brecht. Fez filmes com Glauber Rocha, Joaquim Pedro de
Andrade, Arnaldo Jabor. Ganhou várias vezes o prêmio Molière e o Sharp.
Esculpe, pinta, desenha, ilustra, constrói mecanismos. A cenografia não o
limita: ele pode trocar de materiais ou de técnicas, dependendo do estímulo.
“Trabalhar com os nomes da
minha geração é fácil, porque vivemos um passado em comum. Há uma cumplicidade
silenciosa, anterior, de gostos. São concordâncias harmônicas, tem uma relação
com a música. É um diálogo interno, há subtextos quase telepáticos.”
Show recente de Caetano e filhos com cenário dele - Foto: Ney Coelho/Divulgação |
O processo de criação é
simples: ele recebe as músicas ou o texto da peça; recolhe-se, fica
escutando-as, lendo, imergindo; e começa a rascunhar, analogicamente, sobre uma
prancheta. Não há pedidos insistentes, briefing detalhado ou receita de bolo. Se ele percebe
que não se encaixa com o artista, cede o seu lugar para outro cenógrafo.
* * *
A história com Chico Buarque
também começou de forma curiosa: entre os grandes nomes da música, ele foi o
primeiro a lhe encomendar um cenário – mas para o teatro. Eichbauer foi chamado
para conceber o palco de Calabar, peça de Chico com Ruy Guerra. E a censura,
mais uma vez, interrompeu os planos. Os artistas não desistiram e criaram um
show completamente novo com as músicas já compostas. Assim, nasceu Tempo e contratempo, em
1974, a primeira parceria dos dois, que também dura até hoje.
Para o show Caravanas, atualmente
em cartaz, ele voltou a usar os elementos-assinatura: são várias cordas
penduradas, pendentes, umas apoiadas nas outras, dinâmicas, que dão leveza ao
mesmo tempo em que emprestam movimento e balanço para o fundo, o horizonte de
quem observa o palco. Ao centro, uma esfera armilar – um antigo e icônico
instrumento de astronomia usado para ajudar nas navegações.
“O cenário do Chico são ondas
eletromagnéticas, que é a parte do iluminador Maneco Quinderé; e ondas
mecânicas, a minha parte, que são as ondas do mar. E também as sonoras. Ondas
que são linhas”, diz ele, antes de mostrar a maquete em que Chico brincou com
as cordas de seu futuro cenário.
Outro exemplo de extensão
das suas linhas-trajetórias está no cenário para o show Trinca de ases. As
linhas aparecem outra vez, criando elementos bem mais figurados: três pipas –
uma para cada intérprete. A luz dialoga, mexendo nas formas, nos volumes,
ressaltando-as ou escondendo-as. Linhas retas, duras, que formam uma imagem
lúdica, flexível, brasileira. Eichbauer sabe que é possível criar balanço até
com as linhas mais insofismáveis. Que toda reta é um pedaço de uma curva. E que
a alegria é a prova dos nove, como enunciou, lá atrás, o mesmo Oswald de
Andrade.
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