De 5/9/2006 até 22/10/2006 |
Texto escrito por José Celso Martinez Corrêa na ocasião da exposição retrospectiva dos trabalhos de cenografia de Hélio Eichbauer.
Dois Sóis iluminaram o Tropicalismo,
dois Helios Cosme & Damião:
o Oiticica,
que libertou as artes plásticas do quadro,
trouxe pro corpo dançante no parangolé
e pro espaço todo,
na instalação ambiental,
tropical;
e
o Eichbauer = agricultor de carvalhos [1],
EL HELIO, Éliogabalo [2]
que de uma velinha de sebo,
acesa no Rei da vela,
na escuridão da ditadura militar,
acendeu o SOL no Teatro
Oficina, brasileiro e mundial.
Como o outro Hélio nas artes plásticas,
no Teatro, esse Helio,
trouxe, pro corpo do ator, a pintura modernista,
conseqüentemente pro corpo do mundo,
aquilo que somente os quadros coloridamente
pintavam.
O corpo: quatro baldes de água,
um pacote de sal (Bertolt Brecht),
Helio trans - humanizou,
fez virar entidade,
médium
de tudo,
antena-carne de arte
e antropofagiou a Cenografia mundial,
pendurada como carne,
num açougue de urdimentos,
para ser comida
e se expandir não somente pelo Teatro,
mas pela cidade,
pelas extensões corporais em todas as mídias.
Sua “Cenografia” e seus “Figurinos” antropofagiaram
todos os teatros e modas,
do mundo: dos construtivistas rusos
ao teatro de revista da Praça Tiradentes,
até o da Sociedade de Espetáculos,
(para ser prático: para ser mais específico,
o próprio vestido negro de noiva de Heloísa de
Lesbos, Helio tirou do baú de sua tia, esposa do embaixador brasileiro em Praga
– um vestido pretinho, da pompa dos grandes rituais oficiais.)
revolucionaram todo visual brazyleiro,
descolonizaram totalmente a imagem cega
que tínhamos de nós mesmos,
e contagiaram:
o Cinema – vide “Macunaíma” de Joaquim Pedro, e
muitos outros filmes;
a Moda – vide o desfile da Rhodia em 1968, lançando
a Linha Internacional Tropicalista;
a Arquitetura – vide o Novo Teatro Oficina,
terreiro eletrônico de Lina Bardi e Edson Elito;
o comportamento – a religação teatro-arte popular
orgyástica brazyleira
and pop global e
muito mais.
O Teatro Oficina, incendiado por um terrorista de
direita em 1966, em 1967, ressurgia das cinzas como o Novo Teatro Oficina, o
número II, dos grandes cenógrafos arquitetos artistas, Flávio Império e Rodrigo
Lefèvre.
Eu havia pedido um teatro brechtiano (estava
totalmente colonizado pelo Berliner Ensemble) a Flávio Império, contra a
vontade dele, que tinha se encantado com teatro incendiado, sem teto,
e nos escombros berrava feliz:
“Acabou a casinha dos pequeno-burgueses, olhem o
céu!”
O palco que o artista Flávio fez para Helio fazer O
rei da vela, sim, um palco onde somente foi feita esta peça, porque, depois
de tudo, aquele palco não tinha mais sentido, a ação precisou se expandir pelo
espaço todo, como o próprio Flávio sacou, quando fizemos juntos o filho do Rei,
Roda viva, expandindo a cena por todo o espaço do teatro e fora dele.
O teatro de O rei da vela tinha o, muito em
moda, palco giratório elétrico,
uma arquibancada frontal de cimento,
tudo à mostra,
refletores, urdimentos, araras…
Helio pendurou os cenários dos 4 atos
em cordas, aparecendo todos, de cara.
No chão, criou ribalta de teatro bem antigo, muitas
latas de óleo da Shell, vermelhinhas
com sua conchinha amarela.
Tudo contrastava escandalosamente com aquele teatro
sóbrio, de tijolinhos expostos, poltronas azuis de couro.
Helio criou o Tarô do Brasil rodando em falso no
mesmo mecanismo,
toda metáfora que Oswald-Poeta viu.
Todas as máscaras do jogo do mecanismo da
“Sociedade de Espetáculo” do poder brasileiro, exposto na sua antigüidade e
pretensão à modernidade progressista.
No primeiro ato, Abelardo I.
Barriga postiça, criada por Helio, de um delirante
Ademar de Barros-Ubu Rei, sobrancelhas em triângulo preto e bigodes pintados de
carvão,
rosto rosadinho de palhaço,
batom vermelho-sangue nos lábios,
tudo em cima de uma máscara riscada, enquadrando o
rosto,
vazando os traços de jogo da velha,
para fora, no pescoço e na testa,
charuto na mão,
girava no palco abrindo os janelões
do escritório de usura de Abelardo &
Abelardo para a paulicéia desvairada e financista.
No seu terno, fantasia de executivo de ponte aérea,
como em todos os trajes da peça, de homens ou mulheres,
uma seta de pano,
apontando o sexo.
Chamava por um botão sonoro seu secretário Abelardo
II, vestido de fantasia de guerrilheiro
com farda de domador,
trazendo também uma máscara, dividida
esquizofrenicamente ao meio.
O primeiro socialista do Teatro Brasileiro
tinha um rosto riscado pela metade:
Uma, já de Rei da vela,
outra, levando, em torno do olho, uma ferida de
porrada,
sangue em forma de rosácea,
como todas as personagens do Teatro do Oprimido da
jaula de devedores também tinham levado.
Ao mesmo tempo, essa mesma máscara em torno de um
dos olhos, estava enorme, num tapete, enorme gota de sangue pingado espalhando
em sol vermelho purgando amarelo(?).
Ao lado direito da boca de cena, um bonecão tomando
todo pé direito do teatro,
tendo escondido debaixo das calças um Abelardão,
canhão caralho que somente se revelava quando
tesudo, ereto,
esporreando luzes de fogo e
fuzilando os Clientes Devedores Inadimplentes.
Os Devedores vinham de uma jaula,
abrindo-se para os fundos do Teatro Oficina II, em
que o palco ocupava somente meia área da que ocupa agora a pista do terreiro
eletrônico.
Os objetos eram todos fálicos:
castiçais, imenso lápis de ponta em cúpula russa,
por exemplo, da Secretária,
uma espécie de Emília do Monteiro Lobato, tranças
louras artificiais, bundona aplicada, tendo em torno dos olhos a mesma rosácea
de sangue de Abelardo II e do tapete,
na máscara branca de faces rosadinhas de boneca
cabaço.
Heloísa de Lesbos
entrava de Marlene, terno branco, chapéu panamá,
bengala,
um V branco de linho,
superpondo-se ao seu terno masculino
no lugar do sexo.
A entidade (sim porque Helio criou, repito,
entidades do tarô da corte brazyleira)
tinha no rosto a mesma máscara de jogo da velha,
toda branca, lábios rubros de Kabuki,
na testa o V negro belíssimo de vampira
máscara de Tarsila do Amaral.
Fumava uma cigarrilha imensa, apitando fumaça em
seus deslocamentos de diva, pela cena.
Esses figurinos e maquiagem foram criados, todos,
com os atores.
Helio pedia a todos que se desenhassem e
imaginassem suas meias, roupas de baixo, de cima, adereços das personagens e
lhe encaminhassem.
No trabalho de Heloísa,
Ítala Nandi e Helio construíram uma obra prima.
Dina Sfatt e Estér Goes fizeram o mesmo papel, mas a máscara era tão forte,
que, muitas vezes, não é possível distinguir as atrizes nas fotos.
Máscaras obras-primas de criação do Teatro Brazyleiro,
Teatro de Entidades,
irmãs do Kabuki, do Nô, da Comeddia dell’arte.
Criação vinda do Modernismo, da Antropofagia de
1967,
no fim dos 1960,
quando as últimas tribos
dos antropófagos da Amazônia
desapareciam
e retornavam a sampa.
O Intelectual
portava a farda da Academia Brasileira de Letras e
uma faca de madeira com sangue respingando seco.
No final do ato,
o Americano era anunciado por Abelardo II, que
estirava um tapete de curvas de Copacabana.
Detalhes, “pequena maravilha”, como dizia Eugenio
Kusnet,
o que mais interessa na nossa arte,
necessários para perceber a riqueza de sinais que a
arte de Helio espalha por tudo,
vírus de peste nova, contagiando todos.
O segundo esplendoroso ato coroava o teatro de
revista da Praça Tiradentes, com um telão tarsilamente pintado da Baía de
Guanabara,
que depois Caetano Veloso internacionalizou na capa
do disco Estrangeiro,
e que hoje é capa de um livro escrito pelo
professor de literatura americano Cristopher Dunn: Brutality Garden,
o melhor estudo sobre o Tropicalismo já escrito no
mundo.
As personagens que, na rubrica, Oswald-Poeta pedia
vestidas “na mais furiosa fantasia tropical” estão materializadas,
no tarô da oligarquia brazyleira em
iconografia exaltação & esculhambação.
Toda a corte da Família da Burguesia Rural
Brasileira, coroada com ramos e frutos rubros de sua exploração mono-máxima: o
café.
Dona Cesarina, a matriarca,
inspirada em uma dama socialite paulista de 400
anos de criação de porcos, como Oswald dizia.
A metade do corpo com o jabot rendado, rolos altos
no cabelo, a maquiagem de perua, corpete de fino veludo, luvas verdes em renda,
com os dedos de fora. Isso da cintura pra cima. Da cintura pra baixo:
pernas à mostra das vedetes,
meias verde arrastão e coturnos dourados com salto
da Praça Tiradentes,
bunda realçada caprichosamente com duas chamadas de
cortinas esvoaçantes,
em que Cesarina esbaldava-se
no balanço romântico campestre,
todo enfeitado de cobras e flores,
no limite da plataforma do palco,
lançando foguetes com os muitos quilos da atriz,
em cima dos espectadores.
Um enorme leque de plumas de Lady Windermere e um
sorvete banana-split na vertical, derramando “leje de pica” do seu cume,
sorvido com voracidade,
no passeio nobre, sobre o palco girótorio ao som de
"Casinha pequenina" arranjado por Rogerio Duprat.
Totó Fruta do Conde,
“O Pederasta” da FamILHA Papai Mamãe, vestido de
odalisca, de tamanquinho português com meias brancas curtas.
Helio revelava, aí, a origem dos brilhos dos
concursos de fantasia do carnaval e das escolas de samba do Rio:
a famosa temporada dos Ballets Russes,
com Nijinski, no Municipal do Rio,
que apaixonaria sobretudo os viados cultos da
época, que legaram a grandiosidade dos brilhos ao carnaval brazyleiro.
Os tamanquinhos com meias brancas geraram muita polêmica. Clodovil clamava
:“Jamais uma bicha brasileira, por mais pobre que seja, usaria tamancos com
meias brancas!!!!!!!!!”
João dos Divãs,
a sandalhona, a bolacha da FamILha,
se vestia como uma menininha de Renoir,
de organdi rosa, sapatinhos de verniz,
meias brancas 3/4, mas bigodes de Samurai
e luvas de boxe, trazendo na calcinha um coração
vagina vermelho bem almofadado.
Dona Poloca,
a Rainha Mãe, trazia trajes de veludo negro até os
pés, botinhas do império, chapeuzinho-coroa de flores de café, um chicote
fálico escravagista e um enorme terço de Marchadeira de 64.
Coronel Belarmino,
o Rei Caído do Café,
paletó escocês, chapéu de palha, fumando um
mata-rato apoiado numa bengala com um único fio de barba branca do império,
lembrando cacos de Clark Gable.
Perdigoto,
o filho fascista, fantasiado de verde-milico,
condecorado com as insígnias dos ramos do café.
O Índio das Bolachas Aimoré,
tênis branco, cocar de vassoura, e saiote de penas
de galinha, como os do “Guarany” do velho Municipal da infância de Hélio.
O
Americano,
dourado: The golden man,
capacete safari, bermudas, meias 3/4, maquiadíssimo,
galã de Hollywood da cena muda, de batom.
Walkíria Heloísa no segundo ato.
Trajava biquíni de metal, capa de plástico cinza
longuíssima, uma mitra interplanetária e bélica na cabeça, lembrando já a
Mulher Futurista de Maikovski do Percevejo, óculos escuros gigantes,
vestida para os conchavos com o Americano e toda a Frente Sexual Agrária e
Banqueira, no banho de mar,
seguida logo por:
Dona Poloca
com um maiô centenário de listras paulistas
rubro-negras, sapatilhas, touquinha de banho, e um enorme xale negro espanhol:
pronta para o banho.
Mas era a grande virada do segundo ato: encontrava
um Abelardo I –
camisa verde de cetim, um lenço amarelo esvoaçante
no pescoço, um bonezinho de plástico verde claro
comprado em quiosque de praia, calças de veludo
creme –
absolutamente desesperado depois de tanto ser
sugado pela FamILHA toda,
do dinheiro arrancado por Perdigoto para criar uma
Milícia Rural Fascista para atacar os colonos do latifúndio,
aproximando-se da capitulação absoluta diante do
“Nosso Senhor do Arame”:
o Americano Banqueiro Imperialista.
Via-se, de repente, diante de Dona Poloca (ou
Piroca) praieira e, num ímpeto, prometia-lhe suicidar-se,
testando o moralismo da Rainha, o CERNE da
Tradição, FamILHA, Propriedade,
deixando um milhão de dólares,
se ela lhe revelasse seu maior desejo secreto de
vida.
Poloca confessa:
“Ir para Petrópolis.”
Abelardo I a seduz, comovido. Uma noite de amor
para a primeira da anciã cabaço. Poloca cede. Um beijo sela o compromisso.
Helio faz baixar, neste instante, um telão ao som do "Descobrimento do
Brasil", de Villa-Lobos, com os versos pintados de Olavo Bilac – Criança,
nunca verás um país igual a este –, concluindo o 2º ato num patético
tragicomicorgyástico.
Para o terceiro ato,
Helio recriou as cortinas de correr da boca de
cena, de Ópera Mambembe, com as máscaras douradas da Tragédia e da Comédia. A
cena se abre solenemente, com a "Alvorada", de Carlos Gomes, com as
luzes das Alvoradas das encenações, mais uma vez do Municipal de sua infância.
Abelardo I veste um imenso robe rubro, um Ivã o Terrível, que agigantava o
corpo de Renato Borghi, com uma enorme cauda de grande divo.
Heloísa era, agora, a do mito medieval,
trazia um traje branco com cintura logo abaixo do
peito e um veludo vermelho de corrimento vaginal, cabelos soltos de diva
wagneriana. Abelardo I foi golpeado por Abelardo II e escolhe o suicídio para
passar o poder ao ex-socialista.
Despede-se da noiva, com:
“Dê-me o último beijo, meu cravo de defunto!”. As
cortinas se fecham ao som-clímax da "Alvorada" e o Abelardão,
Bonecão, torna ereto seu cacete canhão e atira ejaculando tchaikoviskianamente.
O pano se reabre e Abelardo I, sentado na cadeira
de rodas, tem no peito a rosácea de sangue em cetim vermelho do tapete do chão,
e dos devedores, seu “útero coração de homem”. Abelardo II entra todo
transmutado em executivo, de colete prateado, óculos, e máscara completa de
burguês, sem divisões socialistas, e presenteia Abelardo I com seu último lenço
vermelho, que traz no bolsinho do paletó.
Disputam com o palco e a cadeira de rodas girando,
numa alucinação cênica cinética.
A disputa termina com Abelardo II oferecendo,
depois de muita onda, a vela da agonia do castiçal de Madame Lanale, instalada
no altar de Getúlio Vargas = Mona Lisa, “o primeiro sorriso burguês”, pedida
por Abelardo I. Enquanto Abelardo I reza de quatro no chão com a vela, Abelardo
II arranca-a nas mãos e penetra Abelardo I, enfiando a vela em seu rabo.
O ato se encerra com caveiras em tule negro, que
baixam dos urdimentos, para o epílogo da peça: a missa negra trazida pela
marcha nupcial do casamento de Abelardo II, ex-socialista, com a Burguesia
Rural sobre o cadáver de Abelardo I.
Heloísa, de noiva de preto, com o famoso vestido
pretinho oficial da tia de Helio, buquê de rosas negras nas mãos. A famILHA
toda coberta de tules negros, tendo como padre, padrinho, o Americano, com os
“braços abertos sobre a Guanabara”
como o Corcovado,
encerrando a peça com seu good business. O
palco roda tocando a gravação original de Francisco Alves para "Aquarela
do Brasil'
e um telão marginado por um friso negro de cartão
de luto se desenrola de baixo para cima, ao som de percussão solene, tomando
toda a boca de cena, com as falas do Hiorofante de A morta, de Oswald de
Andrade:
“Respeitável Público!
Não vos pedimos palmas.
Pedimos bombeiros!
Se quizerdes salvar as vossas tradições e a vossa moral,
ide chamar os bombeiros ou se preferirdes, a
polícia!
Somos como vós mesmos, um imenso cadáver
gangrenado!
Salvae vossas podridões e talvez vos salvareis da
fogueira acesa do mundo!”
O elenco não voltava para agradecer, o público
ficava perplexo e as mais inesperadas reações aconteciam, como um espectador
chamando Oswald de Andrade para a porrada, ou enfurecidos que atiravam coisas
no telão.
O elenco ficava atrás, protegido pelas paredes,
apavorado, mas se deliciando com a reações. Helio quis completar soltando
enxofre, ou algum cheiro que trouxesse a sensação do cadáver gangrenado, podre,
brazyleiro. O elenco o convenceu a desistir da idéia.
26 anos depois fizemos juntos Ham-let.
O elenco havia treinado, com roupas de ensaios, as
6 horas do texto integral de Shakepeare e, mais uma vez, inaugurávamos, em
1993, um novo teatro: o terreiro eletrônico de Lina Bardi e Edson Elito, o
atual Teatro Oficina.
Helio resolveu usar como base os figurinos dos
ensaios, depurando-os com roupas-base: moletons negros, capas de veludo,
coturnos de militares. Moletons brancos para a cena do duelo final. Depois,
cada ator e atriz tinha uma consulta particular com ele, e com cordões
coloridos de coringa, de jogral, ia criando um laço, um nó, uma maneira de uso
para cada ator. Todos saíam exultantes das consultas. O cenário era o próprio Globe
Theatre do Oficina, inaugurado com o teto móvel se abrindo para o céu
poluído da Dinamarca, o subterrâneo como túmulo de Ofélia, e carrinhos que
entravam e saíam como carros alegóricos pelados: um palquinho de rodas somente
com chão e um alçapão, como um buraco de ponto. Uma enorme cortina transversal
varando a pista do Oficina, coroas de papel dourado para os reis, e só. Ah! Um
enorme caralho ejaculando confete na cena da entrada dos atores. Os figurinos
da rainha foram feitos por Caio Rocha, estilista de São Paulo. Beleza Pura.
Duas experiências juntos e dezenas de peças de que
fui espectador, como os inúmeros trabalhos com Luís Antonio, meu irmão,
principalmente o extraordinário Percevejo de Maiakovski.
Tudo que pude ver com todas as companhias do
Brasil, que criaram o melhor do teatro nesses últimos anos, até chegarem os
shows com Caetano Veloso. Começando no Estrangeiro, para o qual
reconstruiu o cenário do segundo ato do Rei da vela, numa parte do show
e, em outra, um friso pintado de material luminoso que, do fundo do palco,
acendia uma luz divina no espaço, censora, sensitiva, cybernética. Genial!
Felizmente, filmei a peça toda – que agora vai sair
em DVD produzido pela Dueto Filmes, tanto a Versão-Cinema como a Versão-Teatro:
1º, 2º, 3º atos na ordem do espetáculo.
Em 1974, no sufoco dos 10 anos de ditadura militar,
no dia 31 de março para o 1º de abril saímos pelas ruas de São Paulo, com os
maravilhosos cenários de Helio. Era uma manhã chuvosa. Fomos, nós do Oficina
Samba (assim nos chamávamos: o grupo que então vivia em comunidade no Teatro
Oficina e não tinha mais condições, pela repressão militar, de fazer nada que
desejava), até o cemitério da Consolação, procuramos o mausoléu de Oswald de
Andrade, não encontramos. Topamos com o de Mário de Andrade e resolvemos rodar
lá mesmo as cenas finais do filme Rei da vela, que estávamos montando.
Instalamos os cenários entre túmulos e os
queimamos. Para nós, era como se precisássemos queimar aquele Brasil que o Rei
da vela revelava, para nos libertarmos do jogo imutável dos dois Abelardos:
I e II, sucedendo-se em aliança com as cortes oligárquicas, apadrinhados por
Mr. Jones, torturando a JAULA. Era um ato de feitiçaria, de vodu, que
tínhamamos que fazer. Filmamos, levamos as cinzas para a Praia da Boracéia,
então deserta, e nós, os então ENJAULADOS no Teatro Oficina, saímos por aquela
praia deserta, trocamos alianças com cinzas do cenário no corpo, e entramos no
mar.
Saímos de lá outros, com o compromisso de expulsar
de dentro de nós o jogo repetitivo ao infinito dos Abelardos que, até os dias
hoje, domina o Brasil.
Fomos presos, exilados. Em Portugal, veio morar em
nossa comunidade internacional o francês Gill de Stall, da nobreza de São
Petersburgo, tornado um revolucionário dos anos 70, com quem me reencontrei em
Paris, tornando-se um dos meus melhores amigos. Gill vendia, saindo das horas
de aperto financeiro, desenhos de figurinos, pedaços de cenários dos Ballets
Russes de um parente seu, que trabalhava na direção de arte com Diaghilev.
Além do valor inestimável da obra genial de Helio,
aquele cenário queimado acabaria tendo, hoje, o valor dos quadros de Tarsila.
Tive fases de vergonha, de arrependimento, hoje
assumo este ato necessário, que não se pode apagar, por amor aos fatos, sem
culpa, mesmo porque Helio reconstruirá quase tudo e, no ano que vem, vamos
tirá-los das cinzas e Fênix vai aparecer numa mega exposição que vamos fazer no
SESC Pompéia, na qual estes cenários estarão reconstruídos.
Devo ter magoado Helio – que adoro – profundamente
num primeiro momento. Mas ele sabe, óbvio, que fizemos esse ato exatamente
porque queimávamos alguma coisa de valor incontabilizável, de grandeza estética
trans-humana, que sacrificávamos aquilo pela vida do Brasil que temos
que, mais que nunca, transformar, e nós, brazyleiros, estamos
conseguindo.
Principalmente todos que fazemos arte no Brasil,
porque a arte é a única a poder nos colocar no estado de criação, a única
aliada da fatalidade da transformação, da morte e da vida, única “verdade”,
única certeza que temos. “Oh Tudo Cria! Oh Tudo Destrói!”
O rei da vela, no
momento em que aconteceu, levou o Brasil a libertar-se do catecismo de Padre
Anchieta e reencontrar-se no eterno retorno dos Caetés (tribo de Lula),
devorando o Bispo Sardinha nos recifes do Nordeste. A peça de Oswald, enjeitada
por anos, encontrou Helio Eichbauer, chegado de Praga, onde tive a felicidade
imensa de conhecê-lo, formado por Svoboda, grande criador da Laterna Mágica de
Luz, da Projeção Cinematográfica no Teatro.
Helio fez, então, um “trabalho” – uma feitiçaria,
absolutamente inesperada para quem chegava com sua formação.
Trazia a luz teatral elétrica mais sofisticada, mas
nos trópicos encontrou o destino que seu nome traz: o de ser o SOL da cultura brazyleira.
Da velinha de sebo,
acendeu um Sol que nos escancarou
o velhíssimo e belo Brasil
enforcado nos urdimentos,
ao mesmo tempo nos revelou
o Teatro Novo da Terra do Sol.
Tudo que o Modernismo, a Antropofagia, tinha
anunciado, virou corpo,
no corpo transfigurinado dos atores,
na ação revolucionária das cores da cultura popular
orgyástica do carnaval brazyleiro de 365 dias, numa peça que denunciava
a ação emperrada
por um Teatro do Mundo preso a velhas figuras de
tarô.
Nunca mais poderemos ver o Brasil da mesma maneira.
O Sol deste agricultor de carvalhos,
vence as queimadas,
e está eternamente presente no país
que está renascendo no eterno retorno do mundo
descatequizado.
Acho que Helio não foi ainda suficientemente
reconhecido e exaltado como o grande artista que reinventou Teatro Brasileiro
fora dos padrões coloniais.
E como não falar de sua dupla fértil com Martim
Gonçalves,
reinventando o Álbum de Família, de Nelson
Rodrigues, na Venezuela!
De sua amizade (via Martim) criadora com Lina
Bardi, que o venerava,
e da musa das musas, Dedé Veloso.
Eu poderia nunca mais sair desta batucada no
computador exaltando este milagre de pessoa, vida-arte com quem tive, e ainda
sonho ter, o prazer de criar e conviver.
Esta amizade dourada, adorada,
queria eu ter o poder de Walt Whitman
pra cantar, em letra, música e dança.
Helio, além de tudo, é um dançarino.
O Dançarino.
Vamos dançar neste Parangolé humano e vivo de
Eichbauer, Apolo-Dionísio do irmão Apolo- Dionísio Oiticica.
Os gêmeos sagrados Cosme & Damião
Sem esquecer que Dedé é o terceiro: o Doum
Do nosso Olimpo Teatral Brazyleiro:
A multidão que nos insPIRA!
Paixão ETHERNURA.
José Celso Martinez Corrêa
M E R D A
Fonte: Jornalismo Cultural
1967
- O Rei da Vela - Foto: Arquivo Oficina / Divulgação
[Oswald de Andrade, A morta, III, 1937]
|
Corrêa,
José Celso Martinez. Primeiro Ato: Cadernos, Depoimentos, Entrevistas, (1958-1974). São Paulo:
Editora 34, 1998.
Seleção,
organização e notas
Ana Helena Camargo de Staal
Ana Helena Camargo de Staal
2006. “El sol rubio” in Catálogo da exposição Helio
Eichbauer: 40 anos de cenografia (1966/2006). Rio de Janeiro: Centro
Cultural dos Correios, 2006.
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