jueves, 5 de julio de 2018

1988 - PARANGOROMO [Parangolé+Hagoromo]







 












 
 



 







 





















 
 







 
 
 
















24/11/1990 - Gerald Thomas (E), Haroldo de Campos e
Caetano Veloso em Hagoromo - Foto: R.T. Fasanello









CAMPOS, Haroldo de. Hagoromo de Zeami - o charme sutilIlustrações da capa e do miolo de Tomie Ohtake. São Paulo: Estação Liberdade, 1993. 103 páginas




FOLHA DE S. PAULO

São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994


Haroldo de Campos traduz a magia verbal do teatro Nô

NELSON ASCHER 
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Todo poeta tem uma ou mais obsessões. Haroldo de Campos há décadas persegue –ou é perseguido por– um pequeno drama japonês, uma peça Nô chamada "Hagoromo" (O Manto de Plumas). Essa obsessão levou-o ao outro lado do mundo, onde escreveu um livro de poemas com temas (temas, desculpem a redundância, não só temáticos como formais) japoneses, "Yugen", já publicado em espanhol e prestes a sair em português. "Yugen" (traduzível como "charme sutil") é um termo-chave na estética do Nô. A palavra "Nô", que dá nome ao teatro tradicional do Japão, quer dizer, segundo Donald Keene, "talent" (talento), e, de acordo com Royall Tyler (e, salvo engano, Pound antes dele), "accomplishment" (algo como: consumação, arte consumada, realização, perfeição). Mais do que um programa de ação, tradutores, leitores, dramaturgos e, sobretudo, poetas ocidentais do presente século têm visto nesse nome a definição precisa de um resultado estético.

Resultado da convergência gradual e do encontro provável de divertimento popular e rituais de culto religioso, o Nô cristalizou-se na sua forma própria durante o século 14, principalmente devido ao trabalho de Kan'ami Kiyotsugu (1333-84) e de seu filho, Zeami Motokiyo (1363-1443), o maior teórico e praticante da arte em questão, um autor que, quanto mais é conhecido deste lado do planeta, mais parece embrear com Eurípides, Shakespeare, Racine ou Ibsen.

Como não poderia deixar de ser numa literatura cuja admiração pela brevidade, pelo poder da sugestão concentrada que supera a exposição minuciosa materializou-se por exemplo no haicai, as peças do repertório Nô são curtíssimas e virtualmente despidas de trama. Altamente formalizadas, elas revelam seu contexto aristocrático, dependentes que são de referências a obras –o "Dito de Genji", o "Dito de Heike"– que seus autores consideravam arquiconhecidas, além da tradição poética da corte japonesa, da poesia chinesa clássica e das fontes budistas. Não bastasse isso, o texto é apenas parte do conjunto, que consiste também de dança e coreografia, música, canto, máscara etc. –tudo teorizado, codificado, discutido e aplicado no sentido de levar ao palco o tipo de teatro total que os europeus buscam há séculos.

Trata-se então de uma arte incompreensível para os não iniciados, inacessível através da mera leitura de traduções? Paradoxalmente, essa constatação (inevitável para quem, desavisado, já assistiu a encenações na língua original) é falsa, ou pior, só parcialmente verdadeira. Mesmo numa tradução convencional, uma peça Nô, que talvez não fizesse qualquer sentido para um leitor "gaijin" há um século, coincide com muito do que se espera da poesia moderna.

Apesar do que se pensa corriqueiramente, o alto modernismo e seus desdobramentos não se resumiram numa aspiração desenfreada ao eternamente novo mas, inspirados numa concepção que tanto derivou da, quanto influiu na presente ciência antropológica, empenharam-se em resgatar e incorporar as artes do passado mais remoto e das culturas mais distantes. (O único povo oriental que aderiu a esse projeto eminentemente ocidental –no qual um pobre ideólogo como Edward Said, autor de uma mistificação chamada "Orientalismo", não consegue ver nada além de outra face do imperialismo– foi, obviamente, o japonês). Assim, seja por influência, como é o caso de dramaturgos euro-americanos que estudaram formas não ocidentais de teatro, seja por convergência independente, o resultado prático é que o Nô se oferece facilmente à leitura não-erudita em um número cada vez maior de traduções para o inglês, o francês e outras línguas.

Entre estas, no entanto, o português quase não figura, algo estranho por duas razões: em primeiro lugar, porque foram os portugueses os primeiros europeus a travar contato sistemático, no século 16, com a ilha de Cipango (que é como chamavam o país); em segundo porque a maior comunidade nipônica fora do Japão fixou-se no Brasil. Embora o historiador Paul Johnson afirme –temerariamente– que só a conquista, em 1580, de Portugal pela Espanha frustrou as boas chances que os missionários lusitanos tinham de cristianizar os japoneses, os únicos resultados palpáveis do primeiro contato foram alguns acréscimos às línguas destes últimos. Os resultados mais férteis do contato seguinte começam a surgir sob a forma de trabalhos críticos e especializados de alto nível.

O mérito, porém, de começar a implantar firmemente a literatura japonesa clássica (e algo da moderna) em nossa língua pertence exclusivamente a Haroldo de Campos que, concomitantemente à recriação de diversas tradições européias e da poesia bíblica, assumiu, se não em quantidade, seguramente em qualidade, a tarefa realizada em inglês por um Ezra Pound ou um Arthur Walley: abrir o português ao influxo poético do extremo Oriente. Sua maior realização é sem dúvida "hagoromo", uma peça atribuída a Zeami que, mesmo que não seja literalmente seu autor, não deixa de sê-lo, indiretamente, como criador supremo do gênero.

No drama, um pobre pescador, Hakuryô, encontra acidentalmente o manto de plumas que uma "tennin" ("anjo do céu budista, espécie de fada ou ninfa lunar" H.C.) deixara sobre o ramo de um pinheiro. Ela o pede de volta, pois só assim pode regressar a sua morada celeste, mas Hakuryô, que jamais vira nada de tão deslumbrante, recusa-se a devolvê-lo. Ela começa e fenecer e mesmo o duro pescador se apieda de sua sorte, concordando em restituí-lo caso ela lhe dance o seu bailado. Ela concorda e a peça se encerra com seu regresso às alturas de onde viera.

Simples assim, parece pouco, mas à parte toda a riqueza de conotações místico-religiosas e o restante que a erudição e a exegese podem desentranhar da trama, o texto se impõe, nessa tradução, por meio do que não há como não chamar de magia verbal. Parafraseando o que Eliot dissera a respeito de Pound autor de "Cathay", Haroldo revela-se o inventor brasileiro da poesia japonesa –e desta num momento seu de particular luminosidade.

Não contente em realizá-lo, para mostrar que tal resultado não é acidental, ele refaz criticamente, no mesmo volume, o percurso que, do original, levou-o à tradução acabada, numa aula teórico pragmática de transcriação literária. Patenteia-se nesta que uma solução como (a respeito do manto de plumas) "excelso/ dissolvido no céu do céu" ("heavenly sky" na melhor tradução inglesa, a de Kenneth Yasuda) não provém do capricho, mas de uma poética da leitura, da tradução e da criação longamente destilada, segundo a qual traduzir é revitalizar uma língua com o que há de melhor e mais estranho em outra. A consequência lógica do "Hagoromo" brasileiro é o "Yugen" haroldiano, ambos apontando para "plenilúnio/ plenitude/ perfeição": Nô.





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