24/11/1990 - Gerald Thomas (E), Haroldo de Campos e Caetano Veloso em Hagoromo - Foto: R.T. Fasanello |
CAMPOS, Haroldo de. Hagoromo de Zeami - o charme sutil. Ilustrações
da capa e do miolo de Tomie Ohtake. São Paulo: Estação Liberdade, 1993. 103 páginas
São
Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
Haroldo de Campos traduz a magia verbal do teatro
Nô
NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Todo poeta tem uma ou mais obsessões. Haroldo de
Campos há décadas persegue –ou é perseguido por– um pequeno drama japonês, uma
peça Nô chamada "Hagoromo" (O Manto de Plumas). Essa obsessão levou-o
ao outro lado do mundo, onde escreveu um livro de poemas com temas (temas,
desculpem a redundância, não só temáticos como formais) japoneses,
"Yugen", já publicado em espanhol e prestes a sair em português.
"Yugen" (traduzível como "charme sutil") é um termo-chave
na estética do Nô. A palavra "Nô", que dá nome ao teatro tradicional
do Japão, quer dizer, segundo Donald Keene, "talent" (talento), e, de
acordo com Royall Tyler (e, salvo engano, Pound antes dele),
"accomplishment" (algo como: consumação, arte consumada, realização,
perfeição). Mais do que um programa de ação, tradutores, leitores, dramaturgos
e, sobretudo, poetas ocidentais do presente século têm visto nesse nome a
definição precisa de um resultado estético.
Resultado da convergência gradual e do encontro
provável de divertimento popular e rituais de culto religioso, o Nô
cristalizou-se na sua forma própria durante o século 14, principalmente devido
ao trabalho de Kan'ami Kiyotsugu (1333-84) e de seu filho, Zeami Motokiyo
(1363-1443), o maior teórico e praticante da arte em questão, um autor que,
quanto mais é conhecido deste lado do planeta, mais parece embrear com
Eurípides, Shakespeare, Racine ou Ibsen.
Como não poderia deixar de ser numa literatura cuja
admiração pela brevidade, pelo poder da sugestão concentrada que supera a
exposição minuciosa materializou-se por exemplo no haicai, as peças do
repertório Nô são curtíssimas e virtualmente despidas de trama. Altamente
formalizadas, elas revelam seu contexto aristocrático, dependentes que são de
referências a obras –o "Dito de Genji", o "Dito de Heike"–
que seus autores consideravam arquiconhecidas, além da tradição poética da corte
japonesa, da poesia chinesa clássica e das fontes budistas. Não bastasse isso,
o texto é apenas parte do conjunto, que consiste também de dança e coreografia,
música, canto, máscara etc. –tudo teorizado, codificado, discutido e aplicado
no sentido de levar ao palco o tipo de teatro total que os europeus buscam há
séculos.
Trata-se então de uma arte incompreensível para os
não iniciados, inacessível através da mera leitura de traduções?
Paradoxalmente, essa constatação (inevitável para quem, desavisado, já assistiu
a encenações na língua original) é falsa, ou pior, só parcialmente verdadeira.
Mesmo numa tradução convencional, uma peça Nô, que talvez não fizesse qualquer
sentido para um leitor "gaijin" há um século, coincide com muito do
que se espera da poesia moderna.
Apesar do que se pensa corriqueiramente, o alto
modernismo e seus desdobramentos não se resumiram numa aspiração desenfreada ao
eternamente novo mas, inspirados numa concepção que tanto derivou da, quanto
influiu na presente ciência antropológica, empenharam-se em resgatar e
incorporar as artes do passado mais remoto e das culturas mais distantes. (O
único povo oriental que aderiu a esse projeto eminentemente ocidental –no qual
um pobre ideólogo como Edward Said, autor de uma mistificação chamada
"Orientalismo", não consegue ver nada além de outra face do
imperialismo– foi, obviamente, o japonês). Assim, seja por influência, como é o
caso de dramaturgos euro-americanos que estudaram formas não ocidentais de
teatro, seja por convergência independente, o resultado prático é que o Nô se
oferece facilmente à leitura não-erudita em um número cada vez maior de
traduções para o inglês, o francês e outras línguas.
Entre estas, no entanto, o português quase não
figura, algo estranho por duas razões: em primeiro lugar, porque foram os
portugueses os primeiros europeus a travar contato sistemático, no século 16,
com a ilha de Cipango (que é como chamavam o país); em segundo porque a maior
comunidade nipônica fora do Japão fixou-se no Brasil. Embora o historiador Paul
Johnson afirme –temerariamente– que só a conquista, em 1580, de Portugal pela
Espanha frustrou as boas chances que os missionários lusitanos tinham de
cristianizar os japoneses, os únicos resultados palpáveis do primeiro contato
foram alguns acréscimos às línguas destes últimos. Os resultados mais férteis
do contato seguinte começam a surgir sob a forma de trabalhos críticos e
especializados de alto nível.
O mérito, porém, de começar a implantar firmemente
a literatura japonesa clássica (e algo da moderna) em nossa língua pertence
exclusivamente a Haroldo de Campos que, concomitantemente à recriação de
diversas tradições européias e da poesia bíblica, assumiu, se não em
quantidade, seguramente em qualidade, a tarefa realizada em inglês por um Ezra
Pound ou um Arthur Walley: abrir o português ao influxo poético do extremo
Oriente. Sua maior realização é sem dúvida "hagoromo", uma peça
atribuída a Zeami que, mesmo que não seja literalmente seu autor, não deixa de
sê-lo, indiretamente, como criador supremo do gênero.
No drama, um pobre pescador, Hakuryô, encontra
acidentalmente o manto de plumas que uma "tennin" ("anjo do céu
budista, espécie de fada ou ninfa lunar" H.C.) deixara sobre o ramo de um
pinheiro. Ela o pede de volta, pois só assim pode regressar a sua morada
celeste, mas Hakuryô, que jamais vira nada de tão deslumbrante, recusa-se a
devolvê-lo. Ela começa e fenecer e mesmo o duro pescador se apieda de sua
sorte, concordando em restituí-lo caso ela lhe dance o seu bailado. Ela
concorda e a peça se encerra com seu regresso às alturas de onde viera.
Simples assim, parece pouco, mas à parte toda a
riqueza de conotações místico-religiosas e o restante que a erudição e a
exegese podem desentranhar da trama, o texto se impõe, nessa tradução, por meio
do que não há como não chamar de magia verbal. Parafraseando o que Eliot
dissera a respeito de Pound autor de "Cathay", Haroldo revela-se o
inventor brasileiro da poesia japonesa –e desta num momento seu de particular
luminosidade.
Não contente em realizá-lo, para mostrar que tal
resultado não é acidental, ele refaz criticamente, no mesmo volume, o percurso
que, do original, levou-o à tradução acabada, numa aula teórico pragmática de
transcriação literária. Patenteia-se nesta que uma solução como (a respeito do
manto de plumas) "excelso/ dissolvido no céu do céu" ("heavenly
sky" na melhor tradução inglesa, a de Kenneth Yasuda) não provém do
capricho, mas de uma poética da leitura, da tradução e da criação longamente
destilada, segundo a qual traduzir é revitalizar uma língua com o que há de
melhor e mais estranho em outra. A consequência lógica do "Hagoromo"
brasileiro é o "Yugen" haroldiano, ambos apontando para
"plenilúnio/ plenitude/ perfeição": Nô.
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