Caetano Veloso em 80 canções: poeta mais inventivo da música brasileira
completa 80 anos
Itatiaia seleciona 80 músicas marcantes do compositor que traduziu a dor e a delícia da ideia de ser brasileiro
07/08/2022
Enzo Menezes (*)
Confira as histórias e versos de 80 canções nos 80 anos de Caetano Veloso |
Inquieto, envolvente e utópico, Caetano Veloso completa 80 anos neste domingo (7/8) como um dos cantores mais celebrados do Brasil. Soube como poucos unir elementos eruditos e populares para erigir uma obra de arte singular e traduzir uma noção de ser brasileiro com todas as suas contradições.
O samba do Recôncavo baiano, João Gilberto, o estruturalismo francês, Gilberto Gil, guitarras elétricas, Glauber Rocha, Bob Dylan, Jorge Amado, o Carnaval de Salvador, os poetas modernos e concretos, o exílio após a perseguição dos militares... turbilhão de referências que não o impediram de ser exaltado pelo grande público e respeitado pela crítica (nem sempre) nas últimas cinco décadas.
Atento
à diversidade e ao desmoronamento da ordem, com simplicidade, lirismo e
sofisticação, ele não toca violão como Gilberto Gil e não tem a potência vocal
de Milton Nascimento: é somente Caetano, e envelhece melhor que o Brasil. Entre
631 composições registradas no Ecad, a reportagem da Itatiaia selecionou 80
canções marcantes de Caetano Emanoel Viana Teles Veloso e conta um pouco desta
história. Seja bem-vindo nesta viagem.
13 de Maio (2000)
Caetano lembra como o Dia da Abolição da Escravatura era celebrado em Santo Amaro. Elementos do refrão: Pindoba é uma palmeira, aluá é um refrigerante consumido na tradição do candomblé e maniçoba o famoso prato de origem indígena com mandioca. Em compasso 5/4, tem pandeiro, palmas e guitarra de axé com Davi Moraes.
A Luz de Tieta
(1996)
Samba-reggae com percussão à Olodum e guitarras de axé para a música-tema da personagem de Jorge Amado levada às telas por Cacá Diegues. Enquanto intelectuais criticavam a “pobreza” do refrão, Tieta se tornava uma das mais conhecidas de seu repertório. “Alguém em nós que brilha mais que um milhão de sóis": está pronta a metáfora de iluminação e esperança. Curiosidade absurdamente aleatória: o refrão virou jingle no lançamento da rede de TV venezuelana Telesur em 2005. Na ocasião, o jornal colombiano El Tiempo, em um delírio inexplicável, publicou que o verso ‘eta, eta, eta’ era uma apologia ao grupo terrorista ETA, que reivindicava a independência do País Basco.
A Tua Presença,
Morena (1975)
Poética de amor nada sutil. A presença da mulher “silencia os automóveis e as motocicletas / Se espalha no campo derrubando as cercas / É a coisa mais bonita em toda a natureza”.
Alegria, Alegria
(1967)
Canção seminal da Tropicália, movimento de vanguarda que reúne elementos da cultura popular a referências estrangeiras, criando uma brasilidade que inaugura o diálogo multicultural entre estética, política, manifestações artísticas e as experiências de um Brasil em transformação. Lançou Caetano no festival da canção. tem introdução apoteótica, evoca a liberdade (“eu vou, por que não?”), lembra Sartre (“nada no bolso ou nas mãos”) e admite que o sol nas bancas de revistas o enchem de alegria e preguiça. “Quem lê tanta notícia?”. Livre, insubmisso e pacifista: “sem fuzil”. Caetano já notou a semelhança de “Alegria, Alegria” com “A Banda”, de Chico: os três primeiros versos de uma podem ser cantados na melodia da outra; são heptassílabos e trazem personagens semelhantes (quem “estava à toa na vida” também está “caminhando contra o vento sem lenço, sem documento”).
Alguém Cantando
(1977)
Versão marcante no álbum Ofertório, de 2018, gravado com os filhos Moreno, Zeca e Tom. A utopia da canção que preenche o infinito e dá sentido à vida. Linda ideia: se a voz vem da pureza, vem de um lugar “em que não há pecado nem perdão”.
Araçá Azul (1973)
Caetano sonhou com um araçá azul quando morava no Solar da Fossa e decidiu compor. O Araçá é um tipo de goiaba, a fruta preferida de Caetano, mas só quando tirada no pé no ponto certo. O azul fica por conta do sonho, que embala a melodia estranha e a letra aparentemente desconexa. O “sonho-segredo” é o “nome mais belo do medo” ou “é brinquedo”?
Atrás do Trio
Elétrico? (1969)
Presente no “disco branco”, é uma ode ao Carnaval e aos primórdios dos trio elétricos na Salvador dos anos 1950. “O meu “Atrás do trio elétrico” quebrou o tabu. Composto em 68, esse quase-frevo foi um sucesso nas ruas de Salvador no Carnaval de 69 - e ficou conhecido no Brasil inteiro. Eu, no entanto, não tive a alegria de presenciar esse milagre: estava na cadeia. E nos dois outros Carnavais subsequentes, no exílio”, escreveu.
Autoacalanto
(2021)
Canção para o neto mais novo, Benjamin. Interpretação terna para letra delicada sobre o sono gostoso do bebê. Lançada em 2021, mostra Caetano afiado às vésperas dos 80 anos. “Fiz essa canção para o Benjamin porque ele canta pra se ninar (...) Maravilhado, fiz essa canção. Quando digo, no final da canção, que “eu nunca tinha visto nada assim”, é a pura verdade”.
Baby (1968)
Encomendada por Maria Bethânia, que sugeriu o título e o verso definitivo “Leia na minha camisa, baby, I love you”. A letra rompe com a tradição de encadear acontecimentos de modo linear, pontuando elementos enquanto os arranjos de Rogério Duprat criam um clima apoteótico no surgimento da tropicália. Acabou se tornando o primeiro sucesso de Gal Costa.
Beleza Pura (1979)
É uma saudação ao movimento negro, em Salvador, nos anos 1970. A cultura afro ocupava posições subalternas, afirma Caetano, e com a chegada de blocos como Ilê Ayê e Badauê houve uma “tomada” da cidade. A letra cita bairros históricos como Curuzu, Federação e Boca do Rio. Ritmo suingado e refrão crescente com o belo trava-língua “Toda a trama da trança a transa do cabelo”. Música costurada com “toda minúcia / toda delícia”.
Branquinha (1989)
Escrita para a atual mulher, Paula Lavigne. “Que é que tu vê, que é que tu quer / Tu que é tão rainha? / Branquinha / Carioca de luz própria, luz / Só minha”.
Cajuína (1979)
“Existirmos: a que será que se destina?”. A letra por si só é uma aula de sintaxe. Escrita para o amigo Torquato Neto, letrista do tropicalismo que se matou aos 28 anos. No Altas Horas, em 2014, Caetano afirmou: “Não chorei. Só que quando fui à Teresina, alguns anos depois, o pai de Torquato veio me procurar no hotel. Quando eu vi o pai dele, chorei muito. Eu fiquei chorando e ele ficou me consolando. Então ele me levou pra casa dele, onde estava sozinho porque sua mulher estava hospitalizada. Ficamos os dois naquela casa cheia de fotografias de Torquato em silêncio. Ele não dizia nada e só passava a mão na minha cabeça. Aí levantou e pegou uma cajuína, botou dois copos e serviu para nós. Continuamos bebendo em silêncio. Então ele foi até o jardim, colheu uma rosa menina e me trouxe. Cada coisa que ele fazia, eu chorava mais. Depois no hotel, eu compus a música”.
Canto do Povo de
Um Lugar (1975)
Interpretação marcante com os filhos em Ofertório (2018). Um violoncelo triste com a descrição do passar de um dia: manhã, tarde, noite, madrugada. “Todo dia o sol levanta / E a gente canta / Ao sol de todo dia”.
Cobre (2021)
Cobre é a cor do sino da igreja, o tom da pele da mulher, o amor descoberto na velhice dizendo que nunca é tarde para se impressionar. “Ter te visto tão de perto / E talvez voltar a ver / Prova que está tudo certo / Vale ter vivido / Vale estar vivendo aqui / Vale viver”.
Como Dois e Dois
(1971)
Caetano compôs “Como Dois e Dois” para Roberto Carlos quando voltou ao Brasil: “Li “Noites brancas” anos antes de escrever “Como dois e dois”, mas só vim a ler as “Notas do subsolo” bem depois. O “2+2=5” da minha música veio de George Orwell (mas, sinceramente, adorei quando li em Dostoiévski, pois nele a soma tem um sentido mais perto do que eu intuo na letra da minha música) embora ela fosse também de protesto contra a ditadura: Roberto me pediu uma canção e eu quis ouvir uma frase de protesto na voz dele": “Meu amor / Tudo em volta está deserto tudo certo / Tudo certo como dois e dois são cinco”.
Coração Vagabundo
(1967)
Uma das primeiras gravações de Caetano já indicava a potência do poeta. É uma de suas preferidas até hoje e ecoa Drummond: “mas muito ingênuo, muito abaixo de Drummond”, escreveu Caetano em 2009. Imagina João Gilberto gravar uma música que você escreveu aos 25 anos. “Meu coração não se cansa / De ter esperança / De um dia ser tudo o que quer (...) Meu coração vagabundo / Quer guardar o mundo / Em mim”.
Debaixo dos
Caracóis dos Seus Cabelos (1971)
Driblou a censura se passando por uma canção de amor. É uma homenagem de Roberto Carlos ao amigo. Preso e expulso do Brasil pelos militares, em 68, Caetano vivia melancólico em Londres. De passagem pela Inglaterra, Roberto quis visitá-lo, pegou um violão e tocou “As Curvas da Estrada de Santos”. Caetano chorou copiosamente, e no retorno ao Brasil, Roberto escreveu “Debaixo dos Caracóis” para consolá-lo. “Janelas e portas vão se abrir / Pra ver você chegar / E ao se sentir em casa / Sorrindo vai chorar / Debaixo dos caracóis dos seus cabelos / Uma história pra contar de um mundo tão distante / Debaixo dos caracóis dos seus cabelos / Um soluço e a vontade / De ficar mais um instante”.
Desde que o Samba
é Samba (1993)
Celebração do ritmo composta para ser gravada com Gilberto Gil. “Gosto muito da ideia de que o samba ainda não chegou, ainda vai nascer. Está em João Gilberto. Foi um grande presente na minha vida ele ter gravado”. Bonita ideia do samba ser o “pai do prazer”, o “filho da dor” e o “poder transformador” quando “a tristeza é senhora”.
Divino Maravilhoso
(1968)
Feita para Gal. Melodia doce para letra alusiva a motins estudantis contra a ditadura e ao espírito da juventude que se crê imune a riscos. “Atenção para as janelas no alto / Atenção, ao pisar no asfalto, o mangue / Atenção para o sangue no chão” (...). “Tudo é perigoso, tudo é divino, maravilhoso”. O refrão é taxativo: "É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. "É muito política, do período das passeatas, da preparação para a luta clandestina. Foi feita com muita consciência. Muitos não entenderam, achavam que os tropicalistas eram alienados porque não fazíamos o papel do esquerdista convencional”, afirmou.
Um dos versos definitivos de Caetano Veloso é “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é". Ele explica: “Fiz para a Maria Creuza. Ela me pediu uma canção e eu fiz essa, respondendo, ponto por ponto, à canção “Pra que mentir”, de Noel Rosa. Gosto muito de “Dom de Iludir” por ter uma letra transfeminista”.
É proibido proibir
(1968)
O título era uma frase pichada nos muros de Paris por estudantes em 1968 (e que o cineasta Buñuel dizia ter sido criada pelos surrealistas). A apresentação de Caetano e Gil com os Mutantes causou alvoroço e foi recebida com vaias, tomates e pedaços de pau lançados no palco no festival da canção da TV Globo. Indignação pelo uso de guitarras elétricas, as roupas de plástico brilhante e uma dança provocativa de Caetano. Os Mutantes, em vez de parar, deram as costas para o público e continuaram tocando. A revolta motivou o discurso histórico do compositor: "É isto que é a juventude que diz querer tomar o poder? (...) Se vocês forem em política como somos em estética, estamos fritos. Vocês não estão entendendo absolutamente nada”.
Eclipse Oculto
(1983)
Em ‘Sobre as Letras”, Caetano confirma que “Eclipse Oculto” trata de uma relação sexual que não foi exatamente bem sucedida: “É muito engraçada. Fala de uma trepada que não deu certo. É totalmente documental”. Percebe-se: “E na hora da cama nada pintou direito (...) “demasiadas palavras, fraco impulso de vida (...) e o corpo não agia”. O tom otimista, como em “eu não soube te amar mas não deixo de querer conquistar uma coisa qualquer em você” mostra que nem tudo é tragédia. Acontece, Caetano.
Empty Boat (1969)
Surpreendentemente composta em São Paulo antes que Caetano cogitasse que um dia moraria no exterior, só foi lançada no exílio. Uma letra sincera sobre se sentir vazio e distante. “From the stern to the bow / Oh, my boat is empty / Oh, my mind is empty / From the who to the how”.
Enzo Gabriel
(2021)
Canção utópica sobre o futuro do Brasil tecida a partir do nome mais registrado em 2019. As etnias se encontram: “Um menino guenzo / Ou um gigante negro de olho azul / Ianomâmi, luso, banto: Sul”. Quando estes bebês crescerem, “Qual será seu papel na salvação do mundo?” e como “verás o que é nasceres no Brasil”?
Escândalo (1981)
"Ângela Ro Ro me pediu uma música, e como tinha havido uma briga entre ela e a namorada, que terminou na polícia e saiu nos jornais, fiz essa, aproveitando o escândalo em torno do nome dela”. Traz rimas sofisticadas escondidas entre os versos da briga de casal. Como em: “Agora nada de machado e sândalo/ Eu já estou sã da loucura que havia em sermos nós”. E, depois, ainda variações: “fã da lua”, “manhã da luz”, “vândalo”.
Força Estranha
(1978)
Camadas que potencializam a memória e a exaltação do canto que leva um homem comum a encontrar sua voz tamanha. O testemunho em “eu vi o menino correndo, eu vi o tempo”. “Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar / Por isso é que eu canto, não posso parar / Por isso essa voz tamanha”. Tem interpretações marcantes de Gal Costa e de Roberto Carlos.
Gente (1977)
"É uma letra ingênua”, diz Caetano. “Gente é uma música que eu fiz um pouco sobre o problema de justiça social. É uma letra louca, mal escrita, mas eu gosto, porque é sincera, porque tem uma coisa que eu sempre senti”. Exigência excessiva de quem escreveu “Vida / Doce mistério” e lembrou do povo na labuta. “Gente pobre arrancando / A vida com a mão / No coração da mata / Gente quer prosseguir / Quer durar, quer crescer / Gente quer luzir”.
Haiti (1993)
Ecoa na miséria brasileira a fome da nação mais pobre da América Latina. Ecoa no racismo de todo dia a violência do Estado, herdada da escravidão, que coloca pretos contra pretos. “A fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos e outros quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados”. Caetano explica. “Aqui aparece uma visão da sociedade brasileira como mera degradação da condição humana. Claro que essas cenas de pesadelo surgem em mim num contexto de permanente preocupação com a ideia de Brasil. Tenho repetido que gostaria que compositores e cineastas brasileiros precisassem cada vez menos tomar o Brasil como tema principal. Sempre que penso isso, as canções de letras mais pessimistas me parecem mais desculpáveis do que outras. Ela foi feita para ser cantada com Gil no disco Tropicália 2 e inspirada por situação vivida numa festa do Olodum no Pelourinho”.
If You Hold a Stone (1971)
Composta pensando na artista plástica Lygia Clark, com quem Caetano fez sessões de arte-terapia. Quadros abstratos e “um saco cheio de água com uma pedra em cima” - o abandono total da pintura pode enchê-lo de dúvidas. Aproveitando a melodia, Caetano gravou “Marinheiro Só" na mesma faixa. Nenhum inglês deve ter entendido, e nem precisava.
Irene (1969)
Composta por Caetano na cadeia, rememora a gargalhada da irmã Irene, então com 14 anos. A música ficaria guardada caso Gilberto Gil não tivesse insistido para seu lançamento. Falava da prisão, mas antecipou a tristeza da distância em Londres. “Eu quero ir, minha gente. Eu não sou daqui. Eu não tenho nada. Quero ver Irene rir, quero ver Irene dar sua risada”. “Irene ri”, no refrão, também é um palíndromo (pode ser lida de trás para frente).
It´s a Long Way (1972)
Mais um clássico de “Transa” que aborda a solidão no exílio e a consciência de não ser invencível. “Woke up this morning / Singing an old, old Beatles song / We’re not that strong, my Lord / You know we ain’t that strong”.
Lapa (2009)
“Pelourinho vezes Rio é a Lapa” é um verso simples que condensa o clima desses lugares até para quem nunca os visitou. Está em “Zii e Zie”. “No Rio, esse efeito se multiplica, é muito maior. Levei uma amiga americana lá, e ela ficou impressionada com a Lapa era vital, elegante e popular”.
Lindeza (1991)
Lírica, singela, autoexplicativa. “Eu botei “promessa de felicidade” em “Lindeza” porque adoro a frase de Stendhal”, afirma. “Coisa linda / É mais que uma ideia louca / Ver-te ao alcance da boca / Eu nem posso acreditar”.
Língua (1984)
Singela declaração de amor à língua portuguesa que mostra a que veio na primeira estrofe: “Gosto de sentir minha língua roçar a língua de Luís de Camões”. Particularidades do idioma: o ser e estar que o verbo to be não pode compreender. “Adoro nomes em ã, de coisas como rã e imã". A dicção de vários Brasis dedicados a “criar confusões de prosódias e uma profusão de paródias”.
Linha do Equador
(1992)
Declaração de amor solar: “Esse imenso, desmedido amor / Vai além que seja o que for / Vai além de onde eu vou / Do que sou, minha dor / Minha linha do equador / Mas é doce morrer nesse mar de lembrar / E nunca esquecer / Se eu tivesse mais alma pra dar / Eu daria, isso pra mim é viver”.
London, London
(1971)
Triste, singela, clássica: expulso do Brasil pelos militares, encontra na Inglaterra certa paz inexistente na terra natal, mas a distância dispara a saudade. Solitário em Londres, cruza as ruas sem medo, mas quem ama está longe. É possível viver uma paz melancólica. Um dos versos mais bonitos da música brasileira decifra as cores da grama, do céu e dos olhos dos moradores, e pontifica: “Deus abençoe a dor silenciosa e a felicidade”. (“Green grass, blue eyes, gray sky, God bless / Silent pain and happiness / I came around to say yes, and I say”).
Lost in the
Paradise
Escrita em São Paulo quando Caetano não pensava em morar no exterior. Descreve sua solidão enquanto brasileiro solto no mundo, e provoca a indústria cultural americana querendo “devolver ao mundo esse inglês mal aprendido” e que nos atinge em toda a indústria cultural, conforme escreveu no livro “Verdade Tropical”. “Don’t help me, my love / My brother, my girl / Just tell her name /Just let me say who am I”.
Lua de São Jorge
(1979)
O disco “Cinema Transcendental” tem uma sequência arrebatadora: ‘Lua de São Jorge’, Oração ao Tempo’, “Beleza Pura”, ‘Menino do Rio’ e, ainda, ‘Trilhos Urbanos’ e “Cajuína’. A primeira é uma ode à lua cheia, de um azul que de tão brilhante faz a noite parecer dia. “Lua de São Jorge, lua deslumbrante / Azul verdejante, cauda de pavão / Lua de São Jorge, cheia, branca e inteira / Oh, minha bandeira solta na amplidão”.
Lua e Estrela
(1981)
Letra de Vinícius Cantuária, que tocava com Caetano. Ele estava no Arpoador, às seis da manhã, depois de uma festa, quando trocou olhares com uma mulher na areia. Quando ela entrou no mar, viu que tinha um anel de lua e estrela. A letra é sobre querer saber quem ela é. “Menina do anel de lua e estrela / Raios de sol no céu da cidade / Brilho da lua oh oh oh, noite é bem tarde / Penso em você, fico com saudade / Manhã chegando / Luzes morrendo, nesse espelho / Que é nossa cidade / Quem é você, oh oh oh qual o seu nome / Conta pra mim, diz como eu te encontro / Mas deixa o destino, deixe ao acaso / Quem sabe eu te encontro / De noite no Baixo”.
Luz do Sol (1982)
O primeiro verso descreve um processo de.... fotossíntese! “Luz do sol, Que a folha traga e traduz, Em verde novo Em folha, em graça, em vida, em força, em luz...”. Descreve ainda a destruição do meio ambiente pelo homem: “finda por ferir com a mão essa delicadeza / A coisa mais bonita / A glória da vida”.
Meia Lua Inteira
(1989)
Gravada por Caetano para a trilha da novela Tieta (e não do filme). Tem guitarras de axé com acompanhamento de pandeiro e percussão com toques de Olodum.
Menino Deus (1982)
“[Em Porto Alegre] o táxi parou porque tinha um sinal e eu vi uma placa que dizia: “Menino Deus/ Tristeza/ Ipanema”. Eu devia uma música À Cor do Som e eu disse: vou musicar essa placa porque é um poema: “Menino Deus. Tristeza. Ipanema”. Aí fui para o hotel e comecei… mas o resto da placa não veio. Fiz a música toda e é linda”.
Menino do Rio
(1979)
Baby do Brasil pediu para Caetano escrever uma letra inspirada em um amigo em comum, um surfista que ela achava lindo. Bastou uma conversa com ele na sala para ficar pronto um dos hinos com maior carga sexual da música popular. “Menino do Rio / Calor que provoca arrepio/ Dragão tatuado no braço / Calção corpo aberto no espaço / Coração, de eterno flerte / Adoro ver-te”.
Minhas Lágrimas
(2006)
Está entre as lentinhas de “Cê": “Eu estava no avião chegando em Los Angeles, vendo Los Angeles de cima, o avião descendo... E eu tive necessidade de escrever alguma coisa sobre aquilo, uma música sobre a visão daquilo. Tem coisas que são assim. Aquilo por acaso... Eu estava cansado no avião, vulnerável, sozinho e aí olhando assim pra baixo me deu uma emoção estranha que eu só poderia resolver se eu fizesse alguma música.” “Desolação de Los Angeles, / a Baixa Califórnia e uns desertos ilhados por / um Pacífico turvo / a asa do avião”.
Motriz (1983)
Motriz é a locomotiva que permitiu que a viagem de ida e volta entre Santo Amaro e Salvador fosse feita no mesmo dia. Caetano enumera imagens como se passassem na janela do trem: o relacionamento entre mãe e filha, a aparência do canavial, a luz da tarde. Gravada magistralmente por Bethânia, que descia na estação de Candeias para comprar doces. O movimento do trem sugere ainda relação do poeta com o tempo e o espaço. “Traçado em luz e em tudo a voz de minha mãe / E a minha voz na dela e a tarde dói de tão igual / A tarde que atravessa o corredor / Que paz! Que luz que faz! Que voz! Que dor!”.
Muito romântico
(1977)
Gravação no disco “Muito - Dentro da Estrela Azulada” não tem instrumentos, mas um coro marcando a harmonia enquanto Caetano se apresenta. Mais uma escrita para Roberto Carlos. “‘Roberto, essa é uma canção de protesto, um protesto nosso, dos românticos, contra os realistas-racionalistas”. É assim: “Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior / Com todo o mundo podendo brilhar num cântico / Canto somente o que não pode mais se calar / Noutras palavras sou muito romântico”.
Não Identificado?
(1969)
Traz versos suaves com guitarras de blues e refrão mais distorcido e lisérgico a cada repetição. Uma montanha-russa, um “anticomputador sentimental”. “Eu vou fazer uma canção pra ela” e essa paixão vai rodar o espaço sideral em um disco-voador e brilhar no céu do interior “como um objeto não identificado": um ovni romantico! Foi feita para uma menina de Santo Amaro de quem Caetano gostava.
Não Me Arrependo
(2006)
Inspirada na atual mulher, Paula Lavigne. É uma das baladas do celebrado disco “Cê: “Não, nada irá nesse mundo apagar o desenho que temos aqui. / Nem o maior dos seus erros, meus erros, remorsos / o farão sumir”.
Não Vou Deixar
(2021)
A teimosia do poeta em mais uma da série Caetano arredia: “Não vou deixar você esculachar / Com a nossa história / É muito amor, é muita luta, é muito gozo / É muita dor e muita glória”. No arranjo, um teclado etéreo, que chama uma batida de funk e desemboca no violoncelo de Jaques Morelenbaum. “Uma recusa de submissão à opressão: “O presidente que nós temos é o pior que poderíamos imaginar. Mas ele é parte da câimbra que nosso corpo histórico-social sofre. Não vou deixar é o que diz a voz de pessoas como Fernanda Montenegro”.
Nine Out of Ten
(1972)
Escrita em Londres, ajudou o disco “Transa” a virar um clássico. Flerta com o reggae, cita a influência dos imigrantes jamaicanos na Portobello Road, celebra a vida e admite que “nove em dez estrelas de cinema me fazem chorar”. Uma das favoritas de público e crítica da fase inglesa. Ganhou uma versão bem menos inspirada no disco Velô (1984).
Nosso Estranho
Amor (1980)
Feita a pedido de Marina Lima. Nos anos 1980, fala sobre uma relação aberta: “Deixa o ciúme chegar / Deixa o ciúme passar e sigamos juntos”.
Odara (1977)
Termo que significa paz e tranquilidade. “Voltando ao projeto de músicas doces e suingadas, apareceu a melodia de “Odara”, que é uma palavra que aprendi com o Waly Salomão. Quando comecei a gravar o disco, estava convencido de que “Odara” era a mais bonita das canções que eu tinha feito ultimamente”. “Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara. / Minha cara minha cuca ficar odara. / Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara. / Pra ficar tudo joia rara. / Qualquer coisa que se sonhara. / Canto e danço que dará".
O Estrangeiro
(1989)
Recheada de referências, a começar pelo título do livro de Albert Camus. Aqui cabem Gauguin, Stevie Wonder, Hermeto Paschoal. Qual outro compositor seria capaz cometer estes versos e fazer sentido? “O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara / Pareceu-lhe uma boca banguela / E eu, menos a conhecera, mais a amara? / Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela / O que é uma coisa bela?”
O Leãozinho (1977)
Essencial do repertório para “Caetanear o que há de bom”, não foi feita para um surfista louro entrando no mar, mas para “Dadi, que toca contrabaixo (era dos Novos Baianos), e é meu amigo, que é lindo. Eu adoro muito ele, que é de leão que nem eu”, conforme explicou Caetano. Dedilhado suave e progressão melódica de uma canção de ninar. Abaixo, uma versão acelerada gravada nos anos 80.
O Quereres (1984)
Traz uma estrutura de cordel e ecos de Bob Dylan. É sobre um desencontro e foi composta para a mesma vizinha, nos anos 80, que o inspirou a escrever “Você é Linda: “A vida é real e de viés / E vê só que cilada o amor me armou / Eu te quero (e não queres) como sou / Não te quero (e não queres) como és": As contradições, teimosias e incongruências da paixão. Aqui, a ‘bruta flor do querer’ desvela antíteses e provocações. “Onde queres o ato eu sou o espírito. Onde queres ternura, sou tesão”.
Oração ao Tempo
(1979)
Reflexão elegante sobre o tempo e o infinito: “Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos / Tempo, tempo, tempo, tempo / Num outro nível de vínculo”. Ao fim da vida, deixará de fazer sentido: “Quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo/ Tempo, tempo, tempo, tempo / Não serei nem terás sido” mas ganha nova dimensão na eternidade: “Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos / Tempo, tempo, tempo, tempo / Num outro nível de vínculo”. Arrebatadora.
Outras Palavras
(1981)
Uma miscelânea para Caetanear jogos de palavras, a lembrança dos parentes e amigos, a poesia. “Travo, trava mãe e papai, alma buena, dicha louca / Neca desse sono de nunca, “jamais” nem never more / Sim, dizer que sim pra Cilu, pra Dedé, pra Dadi e Dó / Crista do desejo, o destino deslinda-se em beleza”. Por fim, um experimento com a invenção de palavras que, no contexto, fazem sentido: “Para afins, gatins, alfa-luz, sexonhei la guerra-paz / Ouraxé, palávoras, driz, okê, crisexpacial / Projeitinho, imanso, ciumortevida, vidavid / Lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me Logun / Homenina nel paraís de felicidadania”, afinal são outras palavras.
Panis et Circenses
(1968)
Pão e circo: o povo interessado em diversões ignora questões políticas? Letra sofisticada de Caetano para a canção-manifesto-experimental da Tropicália lançada pelos Mutantes critica a acomodação da sociedade na ditadura (“As pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer”). A pretensão da juventude em levar o esclarecimento ao povo: “Eu quis cantar / Minha canção iluminada de Sol / Soltei os panos sobre os mastros no ar / Soltei os tigres e os leões nos quintais”.
Paula e Bebeto
(1975)
Letra de Caetano Veloso imortalizada na música de Milton Nascimento. Não deixa de ser uma canção de protesto: contra o fim do relacionamento de Paula e Bebeto, amigo de Milton. O casal rompeu pouco antes do casamento mas, sem a separação, talvez não houvesse uma das canções símbolo do Clube da Esquina. Refrão inesquecível: “Eles se amaram de qualquer maneira, à vera / Qualquer maneira de amor vale a pena / Qualquer maneira de amor vale amar”.
Podres Poderes (1984)
Crítica à ditadura que agonizava após lançar o Brasil no retrocesso por duas décadas. Não se pode banalizar a fome e esquecer das mazelas - e os grupos dominados tentam resistir. Como as religiões podem tolerar o autoritarismo que subjuga o povo e instrumentaliza sua fé? Caetano escancara a corrupção cotidiana do homem comum e lamenta sua condição de exaltar as classes privilegiadas que o exploram.
Qualquer Coisa
(1975)
“Eu comecei essa música em Santo Amaro. O Moreno era pequeno, ele viu um bezerrinho gritando (a gente foi num sítio que tinha perto de Santo Amaro) e falou: “Pai, ele está chamando mamãe!”. Aquilo ficou na minha cabeça e eu fiz a música”. “Berro por seu berro, pelo seu erro / Quero que você ganhe, que você me apanhe / Sou o seu bezerro gritando mamãe / Esse papo meu tá qualquer coisa e você tá pra lá de Teerã".
Queixa (1982)
Trata do fim do primeiro casamento, com Dedé. Caetano pediu para a Globo tirar a canção da novela “O Homem Proibido”, de 1982, conforme declarou em entrevista. “Era uma coisa muito íntima, pessoal do fim do meu primeiro casamento. Eu pedi encarecidamente pra tirarem, ficava tocando todo dia, aquela música, dizendo aquilo...”. Versos arrebatadores: “Dessa coisa que mete medo / Pela sua grandeza / Não sou o único culpado / Disso eu tenho certeza / Princesa, surpresa, você me arrasou”.
Quero Ser Justo
(2012)
Do álbum “Abraçaço”, que fecha o ciclo com a banda Cê. É “uma balada de admiração pela beleza de outra pessoa": “Quero ser justo / Mesmo que não pudéssemos manter / A lua cheia acesa / (ou não ainda) / Nem no seu nem no meu coração / Eu vi você: Uma das coisas mais lindas da natureza / E da civilização”.
Rapte-me, Camaleoa
(1981)
“Eu fiz pra Regina Casé. Ela fazia um negócio numa peça do Asdrúbal (grupo teatral carioca) em que se chamava Camaleoa. Namorei ela nessa época rapidinho, um tempinho curto. Mas a adoro, sempre. É bem feitinha a letra. E tem de interessante o verso “rapte-me, adapte-me, capte-me, it’ s up to me”, que traz uma rima bilíngue”. Observação: um quasar pulsando loa é um coração palpitando admirado diante da mulher. “Pulsar” e “Quasar”, ainda, são poemas de Augusto de Campos.
Reconvexo (1989)
Composta na Itália para a irmã Bethânia, traz múltiplas referências à Bahia, e é uma crítica a quem torce o nariz para a cultura popular. As areias do Saara que realmente chegam até os carros em Roma podem ser a personalidade indomável de Bethânia. Roma Negra seria a miscigenação de Salvador, não entendida por quem não a respeitasse, daí “seu olho me olha mas não pode me alcançar": uma indireta ao crítico Paulo Francis, que de Nova York criticava a arte popular brasileira. Nos últimos versos, a Bahia se apresenta na novena de sua mãe, Dona Canô, na elegância sutil de Bobô e no caminhar do cego Joãozinho Beija-Flor. Um jogo de espelhos na física: quem não entende o recôncavo baiano nunca será reconvexo.
Linda
versão com a banda Cê abaixo:
Rocks (2006)
“Cê" é um disco de rock de garagem. Os arranjos crus, os riffs de guitarras distorcidas, a bateria seca e o baixo marcado ajudaram a abrir caminho para uma nova geração conhecer Caetano. “Rocks” sintetiza tudo isso com os jovens e excelentes músicos Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado. A letra começa com um jogo de palavras com som de X. “Tatuou um Ganesh na coxa / Chegou com a boca roxa de botox / Exigindo rocks”. Essa mulher, no pré-refrão e no refrão, vai enganar o homem experiente. “Tu é gênia, gata, etc / Mas ‘cê foi mesmo rata demais / Meu grito inimigo é / Você foi mó rata comigo (...) Você foi concreta e simplesmente / Rata comigo demais”.
Sampa (1978)
Alguma coisa aconteceu no coração do baiano assustado com o primeiro contato com a metrópole e “a dura poesia concreta de tuas esquinas”. A realidade se impõe ao sonho: “E foste um difícil começo / Afasto o que não conheço / E quem vende outro sonho feliz de cidade / Aprende depressa a chamar-te de realidade / Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”. O hino afetivo de São Paulo, cru e sincero, imortaliza a esquina das avenidas Ipiranga e São João.
Sozinho (1998)
Gravação marcante para canção de Peninha. Com 50 milhões de views é, de longe, a música mais tocada de Caetano no Spotify . “Às vezes no silêncio da noite eu fico imaginando nós dois / Eu fico ali sonhando acordado, juntando / O antes, o agora e o depois...”
Terra
“Acontece de eu ser gente / E gente é outra alegria / Diferente das estrelas”. “Terra” foi composta na Bahia, anos depois da prisão na ditadura e do exílio em Londres. O primeiro verso descreve as impressões diante de um um fato histórico: na cadeia, Caetano recebeu da mulher, Dedé, um exemplar da revista Manchete com as primeiras fotografias da Terra tiradas por astronautas do espaço. O planeta nunca tinha sido observado daquela forma: finalmente se materializava o globo gigante no sistema solar, e não mais apenas uma dedução de equações matemáticas. A realidade traduzida em poesia virou “Quando eu me encontrava preso / Na cela de uma cadeia / Foi que eu vi pela primeira vez / As tais fotografias / Em que apareces inteira / Porém lá não estavas nua / E sim, coberta de nuvens”.
Tigresa (1977)
Tigresa é Sônia Braga e Zezé Motta, as dançarinas da boate Dancin Days e do musical Hair. Mulheres insubmissas e interessadas “em política em 1966”, quando a ditadura brutalizava e exigia outros papeis da figura feminina. Enquanto isso, o inquieto Caetano sugeria a revolução sexual à espreita nos versos de duplo sentido; como na tigresa que não se rende aos interesses do leão.
Todo Homem (2018)
Música do filho Zeca com execução magistral de Caetano e filhos na turnê Ofertório. “Eu sou cordão umbilical / Pra mim nunca ‘tá bom (...). Todo homem precisa de uma mãe / Todo homem precisa de uma mãe”. Vocal agudo marcante.
Trem das Cores
(1982)
Mais uma escrita para Sônia Braga. As cores se sucedem na janela do vagão: a encosta laranja, o mel dos olhos, a serra verde, a prata do trem, a lua turquesa, as crianças cor de romã, nuvem chumbo, a seda azul do papel que envolve a maçã. As casas verde, rosa e azul, num azul que "é pura memória de algum lugar”. Então chega Sônia Braga: “Teu cabelo preto / Explícito objeto / Castanhos lábios / Ou pra ser exato / Lábios cor de açaí. / E aqui trem das cores / Sábios projetos / Tocar na central / E o céu de um azul / Celeste celestial”.
"Às vezes, fico atraído por uma palavra e tenho vontade de cantar, acho que ela deve ser ouvida, declamada, e aí ela puxa uma canção. Às vezes, não só uma palavra, mas um arranjo de palavras. Outro dia, eu estava voltando de São Paulo, de trem, estava olhando o céu, era de manhãzinha, estava tão bonito, límpido, que pensei: “o céu está azul celeste, celestial”. Fiquei pensando nisso e me veio uma música que termina exatamente como essa frase”, explicou.
Trilhos Urbanos
(1979
Cita lembranças de Santo Amaro como o cais de Araújo Pinho, as ruas da Matriz e do Conde, os tamarindeiros onde o imperador Dom Pedro II teria parado para fazer necessidades. A emoção ao ver Gal cantando Balancê. Reminiscências distantes mas sempre por perto. “O melhor o tempo esconde / Longe, muito longe / Mas bem dentro aqui” (...) No cais de Araújo Pinho / Tamarindeirinho / Nunca me esqueci / Onde o imperador fez xixi”.
Tropicália (1968)
Tudo já foi falado sobre a música que definiu o movimento artístico e antecipou as incontáveis facetas que a música de Caetano ganharia ao longo das décadas. Ele pontuou, no livro “Verdade Tropical”, que queria “colocar lado a lado imagens reveladoras da tragicomédia Brasil, da aventura a um tempo frustrada e reluzente de ser brasileiro (...) Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”.
Um Índio (1976)
Os povos originários voltarão em uma estrela após o extermínio da última tribo do hemisfério sul. Chamados de primitivos, concentram nas estrelas e nas fontes de água límpida as tecnologias mais avançadas do mundo. Em átomos e palavras, mostrarão a bondade e o conhecimento. O índio vai surpreender não por ser exótico, mas por sempre ter estado presente e ser o óbvio enquanto parecia oculto simplesmente porque o homem branco não o enxergava. Peri, personagem de José de Alencar, o lutador Muhhamed Ali, os filhos de Gandhi: o sincretismo religioso e a diversidade cultural. “Um Índio” ganhou interpretação memorável de Milton Nascimento.
Vaca Profana
(1984)
Gal Costa pediu uma canção quando Caetano estava na Espanha, o que explica as referência à Península Ibérica. Trata da insubmissão feminina, que “põe seus cornos acima da manada” e dos padrões esperados. O encanto de Caetano por Picasso e Gaudi, pela Movida madrilenha (movimento contracultural que contou com Almodóvar) a Andauzia e a miscelânea que chega ao jazzista Thelonious Monk. Os caretas estão por toda parte, inclusive em lugares cosmopolitas como Nova York e Paris, até que Caetano também se reconhece como tal e se despe da arrogância dos julgamentos. O leite bom pode chegar a todos.
Você é Linda
(1983)
“Você é Linda eu fiz para Cristina, uma menina de quem gostei muito intensamente na Bahia, nos anos 80 e que morava defronte à minha casa, em Ondina”. Uma balada que caiu nas graças do público. “O Quereres” também foi escrita para Cristina. “A sua coisa é toda tão certa / Beleza esperta / Você me deixa a rua deserta / Quando atravessa / E não olha pra trás / Linda / E sabe viver / Você me faz feliz / Esta canção é só pra dizer e diz”.
Você Não Entende
Nada (1970)
Mais uma da safra “Caetano arredio”. O personagem, irritado, não aguenta mais ficar onde está. “Eu me sento, eu fumo, eu como, eu não aguento / Você está tão curtida / Eu quero tocar fogo neste apartamento / Você não acredita”. Ele a convida a fugir. “Tem que saber que eu quero é correr mundo, correr perigo / Eu quero é ir-me embora / Eu quero dar o fora / E quero que você venha comigo”. Também critica o cotidiano repetitivo (ou não, se considerado o jogo de palavras): “Bota a sobremesa, eu como / Eu como, eu como, eu como, eu como / Você".
Você Não Me
Ensinou a Te Esquecer (2003)
Canção de 1977, de autoria de Fernando Mendes e José Wilson, que ficou esquecida até Caetano gravá-la para a trilha do filme “Lisbela e o Prisioneiro”, em 2003, combinando violoncelo com batidas eletrônicas. Tornou-se um de seus maiores sucessos, a ponto de muita gente não saber que Caetano não é o autor do refrão “Agora, que faço eu da vida sem você? / Você não me ensinou a te esquecer”.
You Don´t Know Me (1972)
Balada essencial do disco “Transa”. Até que ponto
alguém pode se dar a conhecer? “Bet you’ll never get to know me / You don’t know me at all / Feel so
lonely / The world is spinning round slowly / There’s nothing you can show me
from behind the wall / Show me from behind the wall (...) / Nasci lá na Bahia,
de mucama com feitor / O meu pai dormia em cama / Minha mãe no pisador / Laia,
ladaia, sabatana, Ave Maria”.
(*) Enzo Menezes é chefe de
reportagem do portal da Itatiaia. Formado em jornalismo pela Fumec, tem
pós-graduação em Poder Legislativo e Políticas Públicas pela Escola do Legislativo
da ALMG. Foi produtor e coordenador de produção da Record e repórter do R7 e de
O Tempo
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