martes, 16 de noviembre de 2021

2021 - "OS BRASIS DE CAETANO VELOSO: UM ENSAIO SOBRE MEU COCO"

 


Escuta. Revista de política e cultura é um espaço voltado para a reflexão em tempos de gritaria. Em uma época onde a escuta é atividade secundária e apenas se quer berrar, aqui se pretende conversar, dialogar e ecoar – sem quaisquer pretensões de verdades absolutas – temas, debates e questões públicas candentes relacionadas à cultura e à política do Brasil e do mundo.



A revista é atualizada sempre às quintas, contando com a colaboração dos seus editores e de convidados.

Projeto Gráfico e Arte: Júlia Boaventura



*Jorge Chaloub é um dos editores da Escuta.


Os Brasis de Caetano Veloso: um ensaio sobre Meu Coco

Jorge Chaloub



Nove anos depois do fim da trilogia com a Banda Cê, em meio a um cenário de profunda crise política, Caetano Veloso lança um novo disco. Desde 2012, ano de Abraçaço, a sociedade brasileira rompeu com muitos dos aparentes consensos do mundo construído sobre os escombros da ditadura e viu a emergência de uma ultradireita, consagrada pela vitória eleitoral do atual presidente, disposta a destruir não apenas a ordem da Nova República brasileira, mas qualquer esboço das transformações políticas, estéticas e morais produzidas a partir dos anos 1960. Meu Coco é atravessado pelo desejo de intervir criticamente nessa nova conjuntura. 

O novo álbum retoma um esforço central na obra de Caetano: a construção de uma interpretação do Brasil. Este projeto diz muito do compositor baiano, mas também revela um traço geracional. Muitos dos compositores dos anos 1960 propuseram grandes narrativas sobre o país, desejosos não apenas de retomar questões do passado, mas sobretudo de imaginar futuros possíveis a partir do seu olhar para a tradição. Parte da sensibilidade e dos projetos intelectuais dos modernistas e dos intérpretes do país da década 1930 ressurge, sob outras formas, nos compositores identificados à sigla MPB, em movimento que atribui à música popular um novo lugar no cenário intelectual brasileiro. Os protagonistas dos dois momentos partem em busca das particularidades do país em meio a um cenário de fortes transformações sociais, sem deixar de lado o diálogo com as vanguardas internacionais. Há também uma explícita intenção de intervir na sociedade, de modo a modificar o próprio objeto de reflexão, ou seja, o Brasil. 

A busca por interpretar o país nos anos 1920 e 1930 não se reduz aos nomes mais citados – como Sérgio Buarque, Gilberto Freyre ou Caio Prado Junior –, mas diz algo do clima da época e alcança uma série de autores menos conhecidos, mas igualmente influenciados pelo estilo intelectual daquele momento. Algo semelhante se pode dizer em relação ao cenário musical dos anos 1960 e 1970. Se continuavam a surgir clássicos de interpretação sobre a formação social brasileira às vésperas dos anos 1960 – como é o caso dos livros de Antônio Cândido, Guerreiro Ramos, Celso Furtado e Raymundo Faoro – eles ganhavam um caráter mais disciplinar e dialogavam de forma mais direta com o mundo universitário, então em processo de estruturação. A geração da MPB, por outro lado, retomou de outro modo alguns dos motes das gerações de 1920 e 1930, mas com formulações diversas e aspirações, em certo sentido, até mesmo maiores. 

Parte das diferenças se deve à especificidade da produção musical. Se é inegável a promiscuidade entre literatura e ciências sociais nas reflexões dos autores dos anos 1920 e 1930, há nos principais clássicos do período certos compromissos com uma ideia de ciência, mesmo no campo das humanidades, e algumas marcas de estilo que os afastam do registro da arte, enquanto as reflexões a partir da produção musical cultivavam outros modos de produção do sentido. As maiores ambições dos compositores decorrem, por sua vez, das possibilidades de repercussão pública da música, que já acumulava um amplo público desde a popularização do rádio, na década de 1930. Personagens como Caetano, Chico Buarque, Gilberto Gil, Edu Lobo, Nara Leão e Paulinho da Viola tinham a possibilidade de expor suas visões de Brasil para um público muito mais amplo que os autores de décadas atrás, pelo momento do país e por seus meios de expressão, jamais imaginaram. Se a desigualdade social permanecia um limite para construção de um debate público, a linguagem musical, mesmo quando atravessada pelas marcas das vanguardas, falava para as massas de um modo cada vez mais influente na cena pública brasileira. As possibilidades de acesso às expressões musicais distinguiam, por exemplo, os horizontes de expectativa da MPB em relação aos do Cinema Novo, também animado por projetos semelhantes de interpretação do país. 

Dentre os compositores mencionados, Caetano Veloso foi o que expôs de forma mais explícita esse desejo de fazer da música um meio de interpretar o país não apenas por meio de uma teoria, mas através de uma prática. Ótimos analistas da obra do baiano, como Guilherme Wisnik, Daniela Vieira e Fernando Perlatto[1], chamam a atenção, de modos diversos, para essa dimensão da sua obra. No seu caso, esse esforço é inseparável do seu diálogo com os debates da arte contemporânea, como a crítica à separação entre arte e vida e a consequente intenção de romper com a autonomia formal da obra artística, com a  inclusão de elementos supostamente exógenos em suas músicas. Os discursos de Caetano sobre as canções são alguns desses novos artefatos, intervenções constantes que a elas atribuem novos sentidos, do mesmo modo que as narrativas do autor são relevantes nas artes plásticas das últimas décadas[2]. A interpretação do país, nesse sentido, está tanto nas canções quanto na construção da sua persona a partir dessas narrativas públicas. 

Ao mesmo tempo em que questiona os limites da canção, Caetano reivindica pertencer à sua tradição e se coloca como alguém disposto a inventariá-la e renová-la. Em suas falas, João Gilberto surge constantemente como perfeita representação dessa composição entre vanguarda e tradição, que não apenas apontaria caminhos para o futuro, mas modificaria o modo de lermos o próprio passado. 

Seria possível organizar esse texto a partir das diversas ideias de Brasil de Caetano, que poderiam sugerir, até mesmo, um critério de periodização da sua obra. Não seguirei por aí. É importante, contudo, apontar como o momento entre 1989 e 2002 intensifica o esforço de interpretação do Brasil que, desde os primeiros discos, marcava a obra do compositor. De Estrangeiro, primeira faixa do disco homônimo, ao álbum com Jorge Mautner, destaca-se um Caetano em explícito diálogo com leituras sobre o país e desejoso de sugerir, de formas diversas, sua própria, que delineava um lugar atravessado tanto por transformações em sua história recente, com o fim da ditadura militar e a Constituição de 1988, quanto por sua relação com os novos tempos do mundo, marcados pela queda do Muro de Berlim e pelo novo lugar do imaginário comunista. Nesse momento, as citações se tornam mais explícitas em suas letras que, por vezes, até mesmo musicam clássicos da literatura nacional, como Joaquim Nabuco e Castro Alves. O compositor, em certas ocasiões, cede a vez para o escritor, que inicialmente intervém com ensaios, como Carmem Miranda da da e sua famosa Conferência no MAM[3], e depois escreve Verdade Tropical, um livro entre o estilo memorialístico e a biografia de um movimento musical, o tropicalismo, que constrói uma interpretação do Brasil a partir da primeira pessoa. As duas personas de Caetano estão, contudo, preocupadas com as mesmas questões, como fica claro no evidente diálogo do livro com três dos discos que o antecedem, Estrangeiro, Circulado e Tropicália 2, e dois que o sucedem, Livro e Noites do Norte. 

Em meio ao grande número de temas abordados, três estão fortemente presentes nos discos, nos ensaios e no livro: o lugar da cultura nacional no mundo, a questão racial no Brasil e o lugar da música na formação da brasilidade. Os dois primeiros são elementos quase obrigatórios das mais clássicas interpretações do Brasil, enquanto o terceiro diz algo da própria construção do lugar do discurso de Caetano. 

Foreign Sound, o álbum sobre o cancioneiro norte-americano, funciona como transição entre esse momento e o organizado em torno da Banda Cê, quando as reflexões sobre o Brasil passam ao fundo da cena. As interpretações personalíssimas de standards amplamente reinterpretados buscavam sugerir modos de contribuição da música brasileira para aquela que seria a mais pujante tradição de canção popular no mundo. Como bem sugerido na estrutura do show, que começava com Não tem tradução, de Noel Rosa, a pretensão estava mais próxima de expor as tensões, os desencontros potencialmente produtivos, do que da ideia de “versões” de standards já amplamente conhecidos. 

Inaugura-se um momento no qual Caetano dá centralidade ao projeto de fazer uma música com sotaque global a partir do Brasil, retomando uma linha que remete aos discos londrinos, como Transa, e continuaria com os alguns da trilogia da Cê. Se sua obra sempre se construiu como um diálogo entre a tradição da música brasileira e as vanguardas musicais globais, é possível apontar acentos diversos na composição entre essas inspirações, o que constituiu momentos com ênfases e aspectos diferentes. 

Com o trio de guitarra, baixo e bateria da Banda, os três albuns (Cê, Zii e Zie, Abraçaço) são marcados por traços do indie rock, com marcas de experimentalismo na guitarra de Pedro Sá, e expõem apenas pontualmente alguns sinais de pertencimento à tradição da canção popular brasileira. Mesmo na releitura de clássicos da MPB, como Incompatibilidade de Gênios, os arranjos remetem a um estilo em marcas da tradição surgem particularmente sutis, como nos acentos do bumbo da bateria de Marcello Callado ou na rítmica da já mencionada guitarra de Pedro Sá. 

Depois de reler a tradição musical norte-americana de um modo que ressaltava as afinidades e distinções entre as culturas, ressaltava suas formas de influência na música brasileira e sugeria possíveis contribuições brasileiras a essa tradição, o compositor baiano produzia uma série de discos que se colocavam como contemporâneos da mais contemporânea produção musical do centro, o que não deixava de ser um tipo de afirmação sobre o momento social brasileiro. Sem sugerir uma relação direta entre contexto político e obra, é possível pensar que o imaginário de estabilidade que cercava a ordem política e social brasileira, sobretudo após 1994, talvez lhe tenha sugerido um país que perdia parte de seus tempos e lugares mais característicos, que, nas reflexões de Caetano, muitas vezes decorriam da grandeza entrevista em meio a crise e dos aspectos terríveis da nossa nacionalidade[4]. 

Meu Coco retoma a linha de Estrangeiro a Não Peço Desculpas, e tem em Noites do Norte seu exemplo mais explícito. Talvez Ofertório, disco no qual o Recôncavo é tema central, ocupe um papel de transição semelhante ao de Foreign Sound, dessa vez ao trazer a obra de Caetano de volta ao tom da década de 1990. A reflexão sobre o Brasil e suas expressões contemporâneas está no centro do novo álbum. A primeira faixa, de mesmo nome do disco, logo fala do “português dos Brasis”, que seria representado pela palavra “bunda”, afirma na primeira pessoa do plural a identidade étnica do brasileiro – “Somos mulatos híbridos e mamelucos e muito mais cafuzos do que tudo mais” – e traz, próximo a mote corrente em muitas das interpretações do Brasil, uma reflexão sobre as especificidades da própria cultura portuguesa e suas tensões com certa identidade europeia. Portugal é, aliás, tema do fado Você – Você, cantado por Caetano com sotaque lusitano ao lado de Carminho, no qual a reflexão sobre as afinidades e distâncias entre as culturas e imaginários nacionais atravessa a letra e a música; nesta por meio do bandolim de Hamilton de Holanda, que retoma o jogo de proximidade e distâncias do álbum a partir de uma interpretação que explora os terrenos comuns entre o instrumento e a guitarra portuguesa. 

As duas letras expõem uma marca dos discursos sobre o Brasil de Caetano: sua formulação a partir de uma marcada primeira pessoa. Ele não busca o lugar do narrador imparcial, que vê melhor pela distância, mas constrói o Brasil a partir das suas memórias e experiências, ou, o que é particularmente presente nesse disco, a partir da emulação de outras primeiras pessoas, que Caetano assume como intérprete e compositor. No caso de Meu Coco, o ponto é explicitamente sugerido pelo próprio título do disco e por suas imagens de ilustração e divulgação. A ideia de interpretação do Brasil não importa, aqui, a construção de um único projeto nacional, mas aponta para uma miríade de imagens de país, formadas a partir de colagens de diversos fragmentos de narrativas particulares. 

As primeiras pessoas são construídas a partir de certa imitação de posições sociais e culturais, mas nunca deixam de expor ao ouvinte o seu deslocamento. Não penso que sejam bem interpretadas como “alegorias”, que no clássico ensaio de Roberto Schwarz[5], na parte dedicada ao Tropicalismo, seriam opostas aos “símbolos” por seu caráter explicitamente desnaturalizado, já que se situam em uma região de penumbra entre o farsesco e o natural. As primeiras pessoas não são delineadas apenas pelo “conteúdo” das letras, mas também pelas performances do cantor e mesmo pela emulação de estilos musicais e formas de composição. Em Você-Você, Caetano canta como um fadista, com todas as marcas do gênero, mas o próprio contexto da composição já denuncia ao ouvinte uma estranheza, algo de deslocado. Do mesmo modo, Não Vou Deixar não apenas se apropria do funk melódico, já presente nos discos anteriores, como um ritmo, mas aponta para o vocabulário e as marcas de linguagem da composição na letra e no uso do falsete na interpretação de Caetano, típico do estilo. Aspectos semelhantes poderiam ser apontados na interpretação de Sem Samba não dá, que remete a um estilo algo próximo do Grupo Molejo, ou em outros momentos do disco. 

Além da própria justaposição de canções no álbum, que por si só sugerem o deslocamento, há momentos de súbita quebra rítmica e estilística dentro das próprias músicas, o que reforça a heterogeneidade do material e do discurso. O solo de violoncelo em Não Vou Deixar, o arranjo de metais próximo dos discos de Guinga, feito por Thiago Amud em Meu Coco, e o forró em Anjos Tronchos são bons exemplos dessas súbitas quebras, que expõem o caráter acidentado da obra. 

Não estamos diante do projeto moderno, presente em Mário de Andrade e Villas Lobos, de tomar o popular como tema a ser desenvolvida pela forma erudita, mas da reconstrução de expressões e lugares que, pelo próprio modo como são retomados justapostos a outras construções, ganham novos sentidos. Trata-se de um recurso recorrente no compositor que já afirmou, em título de música, “Eu sou neguinha”, mas que em Meu Coco serve a construção de um amplo painel do Brasil contemporâneo. 

Como em outros momentos da obra de Caetano, esse painel concilia pessimismo e potência, em um nacionalismo particular, que vê o país como “cú do mundo” e nele vislumbra, todavia, não apenas um futuro repleto de grandezas, mas também um passado rico que ainda não se esgotou. Compostas em meio ao claro movimento de avanço autoritário no Brasil, que já mereceu duras críticas públicas de Caetano[6], as músicas apontam mais para as possíveis saídas, que se fazem a partir do retorno de mitos atualizados sobre o país, do que para o diagnóstico sobre os contornos da crise, mais presentes em outras obras do compositor. Mesmo as canções com tom mais crítico, como Anjos Tronchos, Não Vou Deixar e Enzo Gabriel, deixam entrevistos horizontes de resistência. 

Tais perspectivas passam, como em outros momentos, pela reivindicação de certa tradição da música popular, argumento que remete às reflexões sobre a “linha evolutiva”[7] da canção brasileira que o acompanham desde a década de 1960. O grande número de menções a artistas, de distintas épocas, no disco é um modo de explicitar sua interpretação dessa tradição. Há a referência já corriqueira a João Gilberto e Carmem Miranda, essa por meio da menção a sua cidade natal, Canavese, a aposta na felicidade do mundo a partir das “Naras, Bethânias e Elis”, e mesmo uma canção, GilGal, que reconstrói a tradição da música brasileira a partir de nomes como Pixinguinha, Jorge Ben, Djavan, Os Tincoãs e Milton Nascimento. O sugestivo título, com a justaposição do nome dos seus dois mais próximos parceiros musicais, e o uso da primeira pessoa do plural, em “Nossas almas irmãs”, sugere o próprio Caetano como parte dessa trajetória. 

A superação das crises em Caetano não passa, entretanto, pela negação do conflito, mas pela sua afirmação. A ideia dos contrastes constitutivos como marca da brasilidade é mais uma das continuidades do seu discurso público desde a década de 1960, por mais que, ao longo do tempo, esses contrastes tenham sido retomados de formas diversas em sua obra. O pessimismo impede, contudo, que haja uma saída conformista ante esses conflitos. Há uma tensão constitutiva em sua obra que passa por um aspecto destacado por Nuno Ramos[8] em Verifique se o mesmo: Caetano seria atravessado por movimentos contraditórios entre a busca de uma repercussão pública da arte e um certo movimento de interiorização, que aponta para a lógica interna da obra, não para seus desdobramentos no mundo[9]. Em nota crítica a Schwarz, Nuno Ramos também sugere que essa interiorização teria despontado, em parte, como uma reação a prisão pela Ditadura Militar, a qual teria mudado o sentido de parte do seu projeto anterior. A tese parece explicitar aspectos relevantes da produção de Caetano no período, mas ao enfatizar o ponto perde um aspecto interessante: a capacidade de compreender a obra em análise como atravessada por esse constante conflito, que muda a partir de ênfases diversas, mas não se apaga. Haveria no compositor baiano uma relação mimética entre sua leitura do país, como terra de contrastes, e os tipos de registro e expressão presentes em sua obra. 

O modo pelo qual Caetano trata a questão da desigualdade racial é exemplar nesse sentido. Tema de enorme espaço em seus discos da década de 1990, com destaque para canções como Haiti e para o álbum Noites do Norte, esse é um ótimo exemplo do modo como o compositor aborda o conflito em sua obra. Caetano não compartilha das críticas ao conceito de miscigenação construídas a partir de importantes intelectuais do movimento negro, como Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento, e hegemônicas após a redemocratização. Aliás, em chave diversa, ele frequentemente mobiliza o conceito de mulato e constrói elogios ao potencial cultural da mestiçagem, que, na própria canção Meu Coco, ele afirma como parte central de quem somos, da nossa identidade: “Somos mulatos, híbridos e mamelucos e muito mais cafuzos do que tudo o mais”. 

Essa questão, aliás, foi um dos temas clássicos de interpretação do país que também se fez presente na trilogia da Banda Cê, por meio da canção O Herói, na qual o eu lírico inicialmente afirma querer fomentar o “ódio racial”, integrar uma “legião de ex-mulatos” e “ser negro 100%, americano sul-africano, tudo menos o santo que a brisa do Brasil, briga e balança”; mas ao fim da canção abraça, em meio a dança, o personagem que olhava com “desdém” e assume sua vocação para “homem cordial” e para a “democracia racial”. O tom da letra sugere, todavia, mais uma perspectiva crítica de duas posições tomadas como extremas e com pouco nuances, do que uma adesão a tal imaginário. 

Entre Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, Caetano Veloso se aproxima mais do olhar para os contrários do pai de Chico do que para o “equilíbrio de antagonismos”, para citar a bela interpretação de Ricardo Benzaquen, do pernambucano. Os antagonismos em sua obra não possuem um equilíbrio, mesmo que instável, mas se constroem a partir de conflitos que transformam as partes envolvidas em sua existência. O “mulato”, nesse sentido, não aparece como síntese, como em algumas formulações de Freyre, mas como uma identidade que carrega em si a diversidade. Alguns versos da canção Pardo são bons exemplos: “Sou pardo e não tardo a sentir-me crescer o pretume”. 

Quando o conflito se aproxima da atual conjuntura, Caetano assume um lado em diversos momentos do disco. Seja ao retratar os líderes globais da ultradireita como “palhaços líderes”, ou ao afirmar “não vou deixar”, o compositor baiano volta seus ataques de forma explícita contra os protagonistas da ultradireita que hoje grassa “no império e nos seus vastos quintais”. Sem reduzir a importância desse grito em tempos tão duros, arrisco dizer que a maior contribuição de Meu Coco talvez não esteja aí, mas na sua capacidade de mostrar horizontes, retomando passados que podem produzir outros futuros, em meio a um cenário tão trágico.


Notas

[1] WISNIK, Guilherme. Caetano Veloso. Publifolha, 2005. SANTOS, Daniela Vieira. A formalização da derrota: sobre “Eles” e “A voz do morto”, de Caetano Veloso. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 61, p. 56-81, ago. 2015. “Uma trilha moderna para o Brasil: a vertigem visionária de Caetano Veloso” In Maro Lara Martins; Marcelo Fetz; Davidson Diniz. (Org.). Sociedade & cultura: experiências intelectuais na modernidade.

[2] O famoso ensaio de Silviano Santiago sobre Caetano sugere caminhos semelhantes: SANTIAGO, Silviano. Caetano Veloso como superastro. In Uma literatura nos trópicos. Companhia das Letras, 2019

[3] Ambos disponíveis no livro O Mundo não é chato, organizado por Eucanaã Ferraz.

[4] Em alguns momentos Caetano apontou a existência de uma profunda semelhança entre o PSDB e o PT, como em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0709200607.htm

[5] SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política (1964-1969): alguns esquemas. In O Pai de Família. Paz e Terra, 1978. João Camillo Penna faz ótima análise da leitura de Schwarz sobre o Tropicalismo em “O Tropo Tropicalista”.

[6] Um bom exemplo de manifestação pública nesse sentido está no texto “Um Voto”, publicado na Revista Fevereiro em 2016 e disponível neste link: http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=11

[7] NAPOLITANO, Marcos. A sincope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. Fundação Perseu Abramo, 2007.

[8] Fernando Perlatto fez uma ótima resenha do livro nessa mesma revista: https://revistaescuta.wordpress.com/2018/02/08/a-literatura-de-esquerda-de-nuno-ramos/

[9] Segundo o ensaísta, essa segunda cara marcaria não apenas sua Caetano, mas constituiria um traço do mundo artístico brasileiro entre o final do século 19 e o século 20, em lógica que o autor, inspirado em considerações de Rodrigo Naves sobre a forma nas artes plásticas brasileiras, chama de “Palácio de Moebius”.

 


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