martes, 11 de mayo de 2021

2021 - RETRATO


NOSSA UOL


Caetano Veloso revela bastidores de seu retrato clássico com Bob Wolfenson


10/05/2021

 

Qual a história de uma foto? Em texto exclusivo para Nossa, Caetano

Veloso fala sobre o icônico retrato feito por Bob Wolfenson em 1987.

 

 

Imagem: Bob Wolfenson (1987)


"Eu fazia essa careta desde menino. Tudo começou com a versão de "Sansão e Dalila", de Cecil B. DeMille, filme que me maravilhou quando o vi no Cine Roma, numa das minhas poucas idas a Salvador na infância. Amo esse filme até hoje. Mas, naquela altura, a canastrice de Victor Mature serviu à evolução de minha personalidade. Foi um herói masculino que me inspirou e que eu cultuava sozinho.

Me impressionava a mobilidade de suas sobrancelhas — e eu me sentia capaz de enfrentar leões, derrubar templos. Eu devia ter uns 7, no máximo 8 anos. Depois que cresci, a interpretação de Mature se mostrou um tanto cômica — embora a esperteza do diálogo do casal central da trama bíblica, mormente na cena em que ele vai roubar a tenda luxuosa que ela montou como uma armadilha para prendê-lo e destruí-lo, nada perdesse de sua mestria cinematográfica, fato exemplar do lugar central de Hollywood na formação do que chamamos cinema.

 

“Uma versão cômica das levantadas de sobrancelha do ator desenvolveu-se comigo. De vez em quando eu a faria na sala de aula do Teodoro Sampaio em Santo Amaro ou do Severino Vieira em Salvador. Ou na frente do espelho"

 

A casa onde nasci era cheia de mulheres. Meu pai era o único homem no meio de um grupo formado por três de suas irmãs (duas solteironas e uma viúva), três de suas sobrinhas, e três filhas, uma delas adotiva, além de minha mãe, claro, cuja idade era próxima a das sobrinhas de meu pai. Só aí nasceu o primeiro homem. E eu fui o terceiro que veio no gênero masculino.

 

“Meu pai tinha de responder por toda a masculinidade existente naquela casa aonde chegamos os três".

 

Lembro como fato curioso essa minha identificação com Sansão/Mature. A beleza de Hedy Lamarr me deslumbrava como deslumbrava a todos. Mas, crescendo num mundo de mulheres, eu a via com encantamento mas não com identificação. Essa reflexão só veio muito depois.

Mesmo na altura, no entanto, era para mim quase um segredo, de todo modo uma experiência solitária, a identificação com o herói macho. Meus irmãos e eu nunca escondemos a identificação feminina que nos parecia natural no ambiente em que crescemos.

 

“Essa minha macheza infantil desdobrou-se em destinos de vida e na careta que exagerei ano a ano".

 

Foi minha feminilidade que me fez perguntar a amigos num barzinho de Sampa, barzinho cujo nome repeti mil vezes ao longo da vida mas que, na idade em que estou, me foge, anos 70/80. 'Quem é aquele judeuzinho lindo?', ao ver o garoto de cabelos cacheados e olhos verde-azuis.

Bob Wolfenson, se bem me lembro, ficou um pouco surpreso por eu saber de antemão que ele era judeu. Gostei tanto dele que, caso ele fosse gay, talvez tivéssemos namorado. Mas ficamos amigos, sem que eu escondesse essa vaga suave malícia da primeira vista. O humor judaico do gatinho sempre enriqueceu nossos encontros.

“Bob é uma das pessoas de quem mais gosto nesse mundo, sempre verdadeiro e do bem"

Era fotógrafo. Ou estava virando fotógrafo. Tornou-se profissional de primeira e, conhecendo minha sobrancelha victormaturiana — até de uma fotografia colorida que saíra na capa da revista "Bondinho", mal eu voltara de Londres —, me pediu um dia para refazer a careta diante de sua câmera.

Aqui sobre minha bancada onde repousa meu computador neste momento, vejo uma gravura que reproduz essa foto: algum desenhista/fã me mandou e eu não sabia onde botá-la. É a síntese de tudo o que contei nos parágrafos acima"


Victor Mature e Hedy Lamarr

Sansão e Dalila [Cecil B. DeMille, 1949]



© Foto: Thereza Eugênia (1972) 





1972                                                               1997




26/6/2020


Arte e fotografia

Depois da tempestade

Acervo fotográfico de Bob Wolfenson, inundado em fevereiro deste ano, reemerge em livro

Paulo Werneck




Caetano Veloso / Bob Wolfenson




Em 10 de fevereiro de 2020, uma segunda-feira, Bob Wolfenson postou no Instagram uma foto aérea de um prédio alagado, com quatro carros mergulhados na água barrenta. “Estacionamento do meu estúdio. Não estamos conseguindo chegar lá pra saber o tamanho do estrago. Mas pelo volume de água, provavelmente perdi coisas do arquivo e equipamentos.”

Na madrugada, São Paulo havia sofrido a segunda maior chuva no mês de fevereiro em 77 anos. O rio Pinheiros atingiu o nível mais elevado desde que esse dado passou a ser medido, em 1967. A região da Lapa foi a que mais recebeu água da chuva, com 170 mm acumulados entre domingo e segunda. Além do estúdio de Bob Wolfenson, foram inundados na mesma região da cidade um depósito da Cinemateca Brasileira e a novíssima biblioteca do colégio Santa Cruz.

Quando a água baixou, no dia 11, foi possível entrar e começar a calcular o estrago. Sergio Burgi, coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles, especializado na conservação de acervos fotográficos, viu a postagem no Instagram do amigo e mobilizou uma equipe para ir a São Paulo e coordenar a operação de salvamento com um grupo de voluntários.

“Começou uma corrida contra o tempo”, conta Burgi. Eles tinham no máximo seis dias para salvar o que fosse possível; depois, o destino do material provavelmente seria o lixo. Duas frentes de trabalho foram abertas: a lavagem e secagem de reproduções em papel e o congelamento de lotes inteiros de imagens. Burgi explica que as gelatinas e outras substâncias utilizadas nas reproduções fotográficas se modificam com a água; para ganhar tempo, é preciso interromper a degradação transformando líquido em sólido.

Facilitou o fato de tudo estar em ordem: num trabalho em que cada hora conta, foi possível saber exatamente o que foi atingido e selecionar os lotes para higienização. “Sempre tive essa expectativa de que o acervo fosse uma coisa boa para o futuro. Um registro histórico, artístico, de uma época, de um período da minha vida”, diz Bob, que mantém um profissional contratado só para cuidar do acervo.

As fotos maiores receberam um banho de água limpa, depois de soluções de água deionizada, que favorece uma secagem mais uniforme, e foram penduradas no varal para secar. Na outra frente de trabalho, o conteúdo de gavetas recebia uma lavagem em lote, era embalado em plástico e transferido para dois freezers de grande porte. Burgi diz que a estabilidade obtida no congelamento “tem a ver com pandemia”: ela retarda o avanço do mal enquanto as “UTIs”— as bancadas e varais de lavagem e secagem — estão sobrecarregadas.


Retratos

Entre agosto e dezembro de 2018, um centro cultural no bairro do Bom Retiro, na região central de São Paulo, expôs uma seleção de duzentos retratos que narram as cinco décadas em que se formou um dos maiores artistas visuais do país. Com curadoria de Rodrigo Vilella, a exposição Retratos foi o olhar mais abrangente já dedicado à obra de Bob Wolfenson, fotógrafo que conhecíamos de longa data, mas sempre nas homeopáticas doses dos ensaios de moda, anúncios, retratos para jornais e revistas ou capas de discos.

A mostra e o livro que dela resultou deixaram evidente a importância de Bob como narrador da vida brasileira. Ao sabor incerto das encomendas, do ritmo aleatório da publicidade, das pautas jornalísticas e de eventos, formou-se um conjunto de impressionante coerência e unidade. A iconografia criada por Bob Wolfenson faz parte da educação sentimental de quem tenha se formado no Brasil urbano pós-redemocratização — de tão presente em nossa vida, talvez ainda não tivéssemos nos dado conta disso.

“Essa assertividade em criar imagens que não podem ser esquecidas confere a ele um lugar único na fotografia brasileira”, diz Vilella, o curador da exposição. “Seu impressionante acervo retrata de forma muito plural a crônica de costumes dos últimos quarenta anos no país. Aos retratos somam-se ainda trabalhos em moda, publicidade, nus e sua obra autoral, o que faz dele o fotógrafo mais profícuo e um dos mais representativos do Brasil.”

De fato, está todo mundo lá, de Caetano a Gugu Liberato, artistas, políticos, esportistas, jornalistas, publicitários, modelos, gente, gente, gente. Gente brilhando e não morrendo de fome.

Ao ser indagado sobre quem faltou fotografar, Bob se lembra com dificuldade de apenas dois nomes. Marisa Monte e Mano Brown são as únicas lacunas, embora ele afirme também que “fotografaria até o presidente da República, por quem não tenho nenhuma admiração...”— e aqui a voz começa a hesitar. “... zero, ao contrário. Tenho repulsa.”

Não, ele está enganado: ele não poderia fotografar Jair Bolsonaro, pois Jair Bolsonaro não cabe num retrato de Bob Wolfenson, cuja obra compõe um imenso retrato da cultura e da sociedade brasileira em toda a sua grandeza. Crítico, contundente, sempre belo, o conjunto exala o otimismo e um certo hedonismo que deram o tom no país dos estertores da ditadura até 2013. Foi otimista até quando clicou a figura cafona e sombria de Paulo Maluf, em alto contraste com a luminosidade de todo o resto. Seria possível editar uma enciclopédia da cultura brasileira usando só as fotos do acervo de Bob Wolfenson.

Não é possível pensar na inundação do acervo do fotógrafo sem fazer uma analogia com o Brasil que está retratado nele. Entre as muitas piadas de mau gosto que somos obrigados a aturar, esta traz uma simbologia especialmente perversa.

Quarentena

A pandemia de Covid-19 interrompeu a operação de salvamento poucas semanas depois, mas a tempo de salvaguardar o acervo estragado antes que toda a equipe, inclusive Bob, se isolassem em quarentena. Uma nova fase da empreitada se inaugura: a elaboração de um projeto de recuperação, que deverá ter um custo de pelo menos 250 mil reais, que o fotógrafo pretende realizar com patrocínio. O Instituto Moreira Salles vai acompanhar o processo e fornecer assessoria técnica.

Quando a estrutura de recuperação estiver montada, será possível retirar seletivamente as imagens dos congeladores — pois elas foram congeladas na mesma ordem impecável em que Bob organizou o acervo — e planejar o trabalho no tempo ideal. A secagem, agora, já não é por evaporação, como no varal: com banhos químicos, busca-se a sublimação, isto é, o processo, muito utilizado na indústria alimentícia, que permite a passagem do gelo ao vapor, sem passar pelo danoso e instável estado líquido.

O que foi feito até agora, segundo Burgi, trouxe todo o material comprometido ao ponto de “fruição, exame e edição”, ainda que em temperatura abaixo de zero e precisando de muito trabalho para poder voltar às gavetas. Ou seja, Bob e sua equipe já estão em condições de trabalhar no material, buscar determinada imagem, priorizar os lotes para recuperação — e editá-lo, como foi feito no livro Sub/emerso.



Wolfenson, Bob
Sub/emerso

Ipsis • 48 pp




2020
Revista Quatro cinco um
a revista dos livros
Ano quatro, número 35, julho de dois mil e vinte


Redação Quatro cinco um

01 julho 2020

 

O acervo inundado de Bob Wolfenson

O retrato de Caetano Veloso que estampa a capa da edição de julho foi criado pelo fotógrafo e transformado pela água


Um retrato de Caetano Veloso clicado por Bob Wolfenson nos anos 1980 e transformado pelo capricho das águas sujas do Pinheiros, que invadiram o estúdio do fotógrafo em fevereiro deste ano, estampa a capa de julho da Quatro cinco um






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