sábado, 15 de mayo de 2021

1972 - BELO HORIZONTE

 

1972
Revista inTerValo 2000
Ano X – n° 476
Editora Abril









24/9/2020





*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total. É autor dos livros Favela High Tech (que em breve chega ao cinema), Clube dos Homens Bonitos e As Flores do Jardim da nossa Casa. As fotos desta matéria foram feitas em dezembro de 1978 e gentilmente cedidas pelo autor, Bernardo Magalhães, também conhecido como Nem de Tal






CAETANO ATACA


"A esquerda

me jogava bananas"

 

Recém-chegado do exílio em 1972, Caetano Veloso entra em confronto com a esquerda brasileira



Havia alguma coisa na obra de Caetano que escandalizava igualmente direita e esquerda - Fotos: Bernardo Magalhães [Nem de Tal]


Em Belo Horizonte, no começo dos anos 70, a contracultura hippie espalhava sua plumagem colorida e ocupava cada vez mais espaço nas ruas. Jovens casais de namorados se apropriaram da cidade e se beijavam por toda parte. Com beijos intermináveis nos bares, restaurantes ou em plena rua, paravam o trânsito para continuar beijando-se como se uma vida apenas não fosse suficiente para dar conta de tanto desejo.

Nessa época, os jornais anunciaram a primeira vinda de Caetano Veloso a Belo Horizonte para apresentações no Teatro Francisco Nunes, que fica dentro do Parque Municipal. Caetano acabava de retornar ao Brasil depois de três anos de exílio em Londres. Fora um exílio diferente dos demais por não ter sido causado pelos motivos, em geral políticos, que forçaram intelectuais e estudantes a deixarem o país. Havia alguma coisa na obra musical de Caetano Veloso – embora àquela altura não se soubesse ao certo do que se tratava – que escandalizava igualmente a direita e a esquerda. Mesmo já sendo cultuado em alguns círculos restritos, eu não gostava particularmente da música dele. Se a bossa nova me parecia bem-comportada demais pela ausência de guitarras, Caetano era excessivamente lento para meus ouvidos estremecidos pelas guitarras de Eric Clapton e Jimi Hendrix.

Nem planos fiz de ver o show. Na véspera da estreia, porém, meu amigo Sigfried Fuchs, fã apaixonado de Caetano, passou pelo Estado de Minas, o jornal onde eu começava minha carreira, e me convidou para ir com ele à entrevista coletiva que o compositor daria naquela noite no Hotel Amazonas, onde estava hospedado. Na condição de penetras, nos sentamos num canto da sala, escondidos atrás dos jornalistas da área de cultura que faziam a cobertura da entrevista. Caetano tinha uma garrafa de Coca-Cola ao seu lado, no chão, que ele sorvia aos poucos.

Num intervalo da coletiva, aproximou-se de nós e perguntou se éramos jornalistas. Sigfried respondeu que não, certo de que alguém logo pediria que nos retirássemos. Para nossa surpresa, a reação foi bem outra: “Então esperem a entrevista terminar para conversarmos um pouco”, disse o baiano com um sorriso de boas-vindas. Terminada a entrevista, jantamos com ele no hotel e saímos pelas ruas, ciceroneando nosso hóspede ilustre em sua primeira visita à cidade. Caetano ainda não era uma estrela, podia passear à vontade sem ser reconhecido por fãs. Caminhamos pelo Parque Municipal, passamos pela Praça 7 e seguimos de ônibus para o meu porão no Santo Antônio.

O mobiliário da casa se resumia a um colchonete estendido no chão, que me servia de cama, e duas cadeiras. Sigfried trouxe um violão e arriscou-se a apresentar algumas composições de sua autoria. Tomamos chá de camomila e comemos geleia de mocotó, os únicos petiscos de que eu dispunha naquela emergência.


'O artista é louco, onipotente. O artista é o dono do universo'


Eram tempos românticos em que um artista como Caetano Veloso podia misturar-se ao seu público sem medo de se deixar parecer com ele, porque Caetano já era, naquela época, uma estrela com brilho próprio, e esse brilho, o tempo haveria de provar, era eterno. Inteiramente à vontade na companhia de dois garotos sonhadores, ele falou sobre cinema, literatura e música brasileira. Não era lá tão mais velho que nós, mas parecia, tal a importância do que representava. Conversamos sobre o show que aconteceria no dia seguinte, quando ele apresentaria as músicas do seu novo disco, Araçá azul, que se tornou famoso não tanto por seu valor estético, mas como um marco histórico de encalhe nas lojas. Para nós, no entanto, o disco se tornaria um divisor de águas na música brasileira.

Em cena, ao contrário dos que vieram antes dele, Caetano não usava a metade de baixo do corpo apenas para sustentar a metade de cima. Seu jogo de cintura arrepiava as garotas na plateia e lembrava aos garotos que também eles tinham um corpo mofando dentro das roupas. A garotada adotou sem hesitar os acessórios tropicalistas – tamancos, batas, colares – que Caetano introduziu na moda. Uma mãozinha de batom nos lábios dos meninos não fazia mal nenhum. Um toque de rímel realçava o olhar e até melhorava a visão masculina distorcida por séculos de machismo.

Caetano foi um sopro de luz, não apenas na música, mas nos costumes, sobretudo nos costumes, que deixou a ver navios tudo o que acontecera antes dele. Finalmente estava claro o motivo da sua expulsão do Brasil: Caetano Veloso era uma batata quente que não se conseguia engolir nem cuspir fora. Tanto no show como no disco ele anistiava canções e ritmos banidos pelas vanguardas esquerdistas da época, trazendo-os de volta ao repertório popular com nova roupagem. Foi o caso do bolero Tu me acostumbraste, ao qual deu uma interpretação que silenciou o teatro Francisco Nunes num momento de puro encantamento. Foi o caso também de Mano a mano, velho tango argentino cuja letra eu sabia de cor, pois era uma das canções preferidas do meu pai. Na noitada no porão, enquanto preparava o chá de camomila, cantarolei Mano a mano distraidamente ao fogão. Caetano surpreendeu-se que eu conhecesse a música e, na estreia do show, anunciou ao microfone do Francisco Nunes lotado: 'Essa é pra você, Marco Antônio'. Para um garoto de 18 anos, carente de todos os afetos, a dedicatória teve o impacto de uma revolução.

A noitada no porão do Santo Antônio seguiu a todo vapor madrugada adentro. A uma certa altura liguei o gravador e registrei uma entrevista de muitas horas que Sigfried e eu fizemos com ele. O resultado é Narciso, não em férias, mas em pleno exercício de suas prerrogativas. A entrevista foi revista e atualizada em encontros posteriores que tivemos quando, pressionado pela opinião pública, o regime militar começava a dar sinais de distensão. Caetano passou a ser atacado por pelotões de choque da esquerda, conhecidos como 'patrulhas ideológicas', que cobravam do compositor o engajamento político de sua arte. Apaixonado pelo debate de ideias e sem medo de tornar público o seu pensamento, Caetano contra-atacava:


A entrevista foi publicada no Jornal da Tarde, São Paulo, em 9/12/1978




"Acho tudo isso sinistro. Não ligo muito, mas às vezes fico com raiva. Não penso em concatenar uma guerra. Eu me sinto vitorioso. Essa gente me incomoda como mosquitos, minhocas. Não acredito que tenham força. O que eles poderiam fazer de pior? Criar um Estado totalitário de esquerda e mandar me prender ou me matar? Mas o que seria isso diante da minha música? Se me ameaçam, eu reajo. A imprensa está alastrada desse tipo de pensamento, um compromisso intelectual de esquerda antigo, uma coisa meio francesa de arte engajada, completamente superada, antiquada e careta, que a gente matou nos anos sessenta. Matou mesmo, e não adianta tentar ressuscitar. O que está acontecendo hoje em dia é uma repetição desmaiada de uma bobagem que se fazia antigamente. Eu ainda tenho mais medo da rádio-patrulha.

 

“Não vai ser agora,

aos 36 anos, que

eu vou engajar.”

 

Meu pensamento não tem linha. Essa é minha divergência mais profunda com essas pessoas. Elas têm uma ideia de linha, e eu não tenho linha. Esperam uma orientação ideológica do artista, e foi isso que o Tropicalismo matou nos anos sessenta. Nunca participei nem acreditei nisso.

Ao contrário, meu maior esforço sempre foi no sentido de destruir isso. Até me tornei famoso por isso. Foi exatamente assim que fiquei famoso, cantando Alegria, alegria. O Tropicalismo era isso, é isso: irracionalismo. Será que as pessoas esqueceram ou nunca compreenderam o que queríamos dizer? Nunca tive nada a ver com arte engajada. Sempre fui muito claro. Não sei por que é que as pessoas voltaram a falar nisso agora. Nunca fui confundido com músico de protesto nem com a esquerda. Ao contrário, a esquerda me vaiava, me jogava banana. Até o dia em que fui preso pelo Exército e expulso do país. Mas nem o Exército me confundiu com a esquerda. Minha expulsão, em 1970, estava ligada a razões estéticas e a uma possível violação de certos costumes e tradições do povo brasileiro. Eu e todo o movimento tropicalista representávamos uma nova maneira de sentimento do mundo e acabamos nos transformando numa peça que não tinha lugar no quebra-cabeça montado na época.

A época era de radicalismos de direita e esquerda. Foi o que eu pude concluir daqueles acontecimentos. Mas, repito, eu nunca fui engajado em nada. Aos 18 anos eu já achava essas coisas esquisitas. Meus colegas eram empolgados com política e eu achava aquilo estranho. Nunca pertenci sequer ao Diretório Acadêmico da minha universidade. E não vai ser agora que eu vou me engajar. Tudo o que fiz, o próprio Tropicalismo, foi para defender a minha música, minha poesia. E isso continua sendo o que pretendo defender: minha arte. É só o que realmente me interessa. O resto é papo furado. Mas os jornalistas vêm me entrevistar e não transcrevem o que eu falo. Deturpam o que eu digo e depois me cobram alinhamento. O que essa gente quer é controlar e orientar a MPB no sentido que eles acham que a história do homem deve ser no futuro. Eles estão tentando, mas não dá. É incontrolável. De Cartola a Rita Lee há uma gama de tendências musicais, cada uma expressando a vida de camadas sociais diferentes. A MPB, por si só, é uma expressão da democracia a que essa gente se refere. E essa força, essa multiplicidade de tendências, essa criatividade, não podem ser controladas por apenas um grupo. Então, a frustração de não poder controlar essa força que é a MPB leva essa gente a ter um ódio terrível dos criadores. E quanto mais criativos são os criadores, quanto mais livres eles são, mais são alvos de ódio.


O Pasquim ataca Gilberto Gil: ‘Wladimir Herzog não era tropicalista’


Depois que chegou ao Rio, há duas semanas, Gilberto Gil deu uma entrevista à imprensa carioca falando sobre o alto nível de desenvolvimento da mercadologia americana de música popular. Gostei muito da entrevista, achei saudável, uma entrevista de uma pessoa que está exercendo sua profissão, entendendo dela e querendo entender cada vez mais. Glauber Rocha me contou que o jornal O Pasquim criticou a entrevista do Gil, usando até um desenho mostrando uma descarga de privada na cabeça dele. O título da entrevista era “Wladimir Herzog não era tropicalista”. Os caras afirmam que Gilberto se vendeu ao imperialismo por achar que música se vende da mesma forma que sabão em pó. Alguém duvida disso? A fábrica que lança os meus discos é a mesma que vende as lâmpadas Philips. Para a fábrica, tudo não passa de uma conta. Tem um holandês que faz as contas, e nas contas dele tanto faz vender lâmpada como vender disco de Caetano Veloso ou de Chico Buarque. O importante é vender muito. Se acontecer de lâmpada ter mais saída do que disco de Chico, o holandês vai dar mais atenção às lâmpadas. O fato de a música estar na mesma prateleira onde ficam as lâmpadas é que gera a discussão.

Ou há ingenuidade total, ou há um conflito. O que a gente chama de música popular já é meio sabão em pó. Tem muita gente por aí que protesta contra o imperialismo, mas quer mesmo é gravar um disco. São duas vontades loucas que se misturam confusamente numa mesma cabeça: gravar um disco e fazer uma revolução socialista.

 

“No Brasil, ser de

esquerda é uma

questão de status.”

 

É muito bom que haja abertura política. Agora, em vez de a expressão ficar nas mãos de um determinado grupo, que é o grupo que governa, várias camadas da população começam a pensar e se manifestar. Elis Regina, por exemplo, já está pronta para a abertura. Já pôs uma malha importada, muito brilhante, e está fazendo papel de operária. Vi Transversal do tempo, o show de Elis. Achei péssimo, uma porcaria. Ela canta Gente, uma música de minha autoria, rebolando feito um travesti na frente de um outdoor onde está escrito BEBA GENTE. Não entendi o significado, achei confuso. Elis está cantando cada vez melhor, mas o espetáculo é ilegível. Não dá para saber se ela é uma dona de casa reclamando porque as coisas andam confusas, ou se é uma cantora vinda da área de consumo (Elis foi lançada pela televisão) querendo ganhar status de gente de esquerda.

A abertura veio para melhorar as coisas, mas por enquanto só piorou a cabeça das pessoas. Estamos voltando a uma discussão que já tínhamos superado em 1967. A plateia que vai ao show de Elis é uma plateia burguesa que vai ao teatro para ganhar status de gente de oposição. O que é ridículo. Você vai ao teatro, paga 150 cruzeiros e vê um espetáculo. Só isso. Não dá mais para fingir aquele número de 1964, de ficar aplaudindo e gritando como se isso resolvesse todos os problemas. Isso acontece também na Ópera do malandro, aqui no Rio. As pessoas se sentem atuando na realidade pelo fato de aplaudirem determinadas falas da peça. O espetáculo é grande demais, o cenário muito pesado e feio. Tudo é muito caro. Uma peça de Chico Buarque não precisa desse fausto para ser boa. Com isso não quero dizer que Elis não possa falar de operários, por não ser uma operária. Nem que Chico deixe de falar de malandros pelo fato de ser um poeta lírico. As pessoas podem sonhar, colocar todos os seus mitos no palco, na tela, no vídeo, no disco. Mesmo que não tenham nada com isso. Mas esse gesto tem que ter alguma grandeza. O artista é louco, onipotente. O artista é o dono do universo."


‘Caetano é uma guinada na aventura humana.
Resolveu partir pra outra e mudou tudo’


Caetano foi embora com as primeiras luzes do dia, deixando em nós o gosto doce de um pequeno momento da maior importância. Sigfried e eu o levamos de volta, de ônibus, ao hotel. Àquela altura, o ídolo era meu também. Daquele dia em diante passei a acompanhar cada passo de sua trajetória, cada um dos seus discos e shows, sempre fascinado com sua habilidade de transformar experiência pessoal em canções – algumas das mais belas canções que conheço. Caetano representa uma dessas guinadas na aventura humana, quando uma mente original ou louca resolve partir pra outra e muda tudo. Passei a respeitar sua integridade como artista, por nunca ter emprestado sua arte à propaganda comercial, nem mesmo quando a Coca-Cola lhe ofereceu milhões para fazer uma campanha publicitária utilizando o trecho de Alegria, alegría em que a marca é citada: “Eu tomo uma Coca-Cola, ela pensa em casamento”. 

Passei a admirá-lo e a compreender sua relutância em se engajar em partidos e movimentos políticos. Muitos se ressentiram de sua postura e chegaram a considerá-la uma traição. Mas o simples fato de ter sido preso, torturado e exilado não o colocava na mesma vala comum da esquerda que gritava contra o regime militar. Caetano estava muitos passos à frente de suas plateias, traficando palavras de ordem numa linguagem de amor e desordem. Depois daquele encontro, minha coleção de discos de Roberto Carlos teve um longo e merecido descanso.

 






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