jueves, 18 de febrero de 2021

1993 - ENTREVISTA

 



Uma entrevista com

Caetano Veloso


Concedida a Monique Deheinzelin em Salvador, em 18 de janeiro de 1993. Extraída de Trilha Educação, Construtivismo, de Monique Deheinzelin, Petrópolis/RJ: Vozes, 1996. 

Participou da entrevista a educadora baiana Maria Dolores Coni Campos.

 


Monique — Caetano, a idéia central desta proposta de educação infantil — tratada no livro “A fome com a vontade de comer” (1) — é que as transformações têm a chave do saber e que essas transformações se dão quando existe uma interação entre o que a pessoa é, o que ela sabe, os seus conhecimentos prévios, e aquilo que é ensinado a ela. Essa é a função da escola, ensinar algumas coisas para as pessoas, não é? Aqui no estado da Bahia a gente tem uma diversidade enorme de modos de vida e cultura, e essa diversidade está, me parece, mais fundada atualmente nas coisas de uma cultura popular que se mantém pela preservação das tradições, do que uma cultura popular que se transforma. Algumas pessoas acreditam que não se pode, ao mesmo tempo, ser um ouvinte de rock and roll e preservar a tradição dos ternos de Reis, por exemplo. Como é que você vê essa questão, dessa diversidade do estado em relação a essa questão da cultura popular e daquilo que pode ser trazido como contribuição pela educação? Eu fico pensando que educação é exatamente o lugar de acesso ao conhecimento, aos bens culturais que são daquele lugar, mas que também dão acesso às pessoas que são daquele lugar a qualquer outra coisa, de qualquer outro lugar do mundo. Como é que você vê essa questão?

CaetanoBom, até onde a minha cabeça pode chegar, eu concordo sobretudo com a sua conclusão, esta última parte do que você falou, o conhecimento local como meio de acesso para o conhecimento universal, não sendo uma defesa contra o contato com o conhecimento exterior àquela área, mas como na verdade uma instrumentação maior para você entrar em contato, para fazer conexões com os outros círculos de saber, eu concordo sobretudo com isso. Quando você menciona a posição de algumas pessoas que crêem que o fato de as pessoas ouvirem rock and roll impede que elas mantenham contato com tradições como um terno de Reis, ou um samba de roda, que essas coisas não podem conviver, eu tenho a experiência pessoal que essas coisas convivem. Agora, não sei por quanto tempo, nem em que termos, qual dessas duas expressões culturais, digamos o rock and roll e o samba de roda, vai ser dominante, ou estar mais ligada ao futuro das pessoas que participam dela e qual a que ficaria com apenas um resíduo do passado; se é assim que o rock and roll e o samba de roda se contrapõem em sociedades onde essas duas coisas podem conviver, ou se pelo contrário uma ou outra coisa vai nascer da audição de rock and roll por pessoas que cresceram praticando samba de roda e que não deixaram, por ouvir rock and roll, ou fox-trot, ou boleros mexicanos, ou tangos, não deixaram de praticar samba de roda. É o caso do Recôncavo da Bahia: em Santo Amaro, por exemplo, o samba de roda continua sendo uma prática normal, não uma prática assim programada por grupos de preservação do folclore: é uma prática normal. Quando tem uma festa na minha casa em Santo Amaro, tem samba de roda, e assim em muitas outras casas em Santo Amaro.

Monique — Pois é exatamente isso, e você eu acho que é um excelente exemplo que responde essa questão, porque você traz, conserva no sentido de guardar, todas essas tradições e ao mesmo tempo cria sempre novas coisas. Mas você foi uma pessoa que teve dentro de casa uma situação muito especial, de acesso a uma série de informações sobre o mundo. Quando você diz que lia a revista Senhor, ou que você tinha uma professora de português que te sugeriu a leitura de poemas de João Cabral de Melo Neto, isso deu a você possibilidades, que talvez você não tivesse, se permanecesse na situação estrita do samba de roda.

CaetanoÉ claro.

Monique — Então o que eu acho é que a escola é o lugar de acesso ao João Cabral, ao que é o existencialismo...

CaetanoÉ, eu acho.

Monique — Enfim, que a escola é o lugar...

CaetanoA escola é o lugar de acesso democrático ao conhecimento universal, quer dizer, que tem valor em qualquer lugar.Agora, eu não sei o que é que preocupa você propriamente nisso. Essa definição me parece muito boa, e a sua posição me parece boa e nesse exemplo do rock and roll com as coisas tradicionais eu pude falar alguma coisa. Em trechos da sua conversa eu poderia ter pensado em alguma outra coisa, mas não sei assim no todo o que é que preocupa você, o que é que une essas coisas todas.

Monique— É o seguinte: a chamada educação tradicional, que vem sendo revista e criticada, ela dava acesso aos bens culturais, não é? Então, quando você diz "para a escola pública eu ia, não só porque em casa não teríamos condições de ir a outra...

CaetanoPorque eram melhores, é.

Monique — ...mas porque era a melhor que tinha". A escola pública ensinava os objetos do conhecimento, os elementos da cultura. Houve, nos últimos 25 anos, um movimento de crítica à escola tradicional no que se refere ao comportamento, às normas, de ser uma escola muito restritiva, de propor uma aprendizagem mecânica, repetitiva. Essa crítica, me parece, tem sua razão de ser por aí. Mas foi uma crítica que fez com que muitos educadores passassem a descartar o ensino intencional dos objetos de conhecimento.Assim, a escola chamada nova, renovada,ela não tem a intenção de transmitir o conhecimento.Então, você tem crianças que podem ser muito espontâneas, muito criativas, muito alegres...

Caetano — ...e pouco informadas, é.

Monique — ...mas muito pouco informadas! E paralelamente a isso houve um movimento de recuperação da cultura local, uma intenção de trabalhar a partir das realidades dos sujeitos. Propõe-se então um trabalho gerado pelos interesses dos alunos, por temas geradores vinculados a determinados modos de vida e cultura das pessoas envolvidas. Essa forma de trabalho pedagógico é extremamente interessante, mas existe a idéia que só se pode trabalhar a partir desses elementos. Então, a rigor, aqui no estado da Bahia, o pessoal do Recôncavo só teria acesso à cultura local, o do sertão idem, e assim por diante. O que me preocupa é que dessa forma a escola não seja o lugar de acesso democrático ao conhecimento, que haja uma intenção, consciente ou não, de impedir esse acesso.

CaetanoÉ uma reação contra a verdadeira democratização do conhecimento, da educação, da própria alfabetização no Brasil. Agora, pelo que você está dizendo aí, essa reação se mostra como uma atitude mais ou menos consciente, em pessoas que nos querem preservar a injustiça social que é muito gritante no Brasil.Por outro lado,pessoas de muito boas intenções terminam contribuindo para isso também, não é, com a idéia de renovação da escola e de uma educação mais espontaneísta, isto é, com menos conhecimento do que seja disciplina. Eu tive uma experiência pessoal que talvez lhe sirva um pouco. Quando Moreno, meu filho mais velho foi se matricular numa escola do Rio, ele saiu de uma escola primária e foi para um ginásio. Então eu fui na reunião de pais e mestres, a primeira para a entrada dos alunos. Os professores explicando como era a escola, davam muita ênfase à diferença entre o que eles faziam nessa escola e o que as escolas tradicionais faziam. Eles demonstravam — o diretor e algumas professoras enfatizavam muito o fato de que eles faziam do aprendizado uma coisa muito agradável, divertida, que aquela idéia que estudar era uma coisa maçante, difícil, era ultrapassada, era uma idéia antiga. Eu acompanhava com simpatia aquilo, mas cresceu demais nessa direção e todos, os professores e os pais, pareciam concordar que a escola deveria ser algo agradável, divertida e atraente para a criança. Eu não discordava disso, mas comecei a temer que estivesse faltando ali uma noção de disciplina. Aí eu me levantei e disse assim: "eu fico um pouco preocupado porque tenho a impressão que vocês estão querendo negar que alguma coisa no ensino e no estudo, e tem que ser chata". Eles ficaram um pouco chocados e as pessoas também, alguns pais. Moreno ficou até meio duvidoso, ele estava com onze anos de idade, dez para onze anos, e veio falar comigo: "pai, algumas pessoas falaram que você foi careta na reunião", ... e eu contei a ele...

Monique — É muito difícil você procurar conhecer as coisas,custa muito esforço,não é? Não tem outro jeito e é bom que seja assim...

CaetanoNão, eu disse o seguinte: "para vocês, disciplina tem um aspecto que tem que ser maçante? Em algum momento a escola dá idéia de disciplina? Estou falando assim até por ciúme, porque não quero que meu filho ache que a escola é mais divertida do que o parque de diversão e nem mais amorosa do que a minha casa. A escola é uma outra coisa na vida dele, não pode ser tão amorosa quanto os pais e tão divertida quanto o Tivoli Park! Eu acho que justamente na escola é que deve haver alguma coisa onde... em casa também se aprende isso, mas na escola sobretudo, onde se aprende mais que você tem que passar por coisas em princípio maçantes para chegar a ter capacidade de ter prazeres superiores". Eu disse assim, "até pra tocar pandeiro, que é uma coisa muito difícil", e ficaram aqueles professores me olhando, "tocar pandeiro é uma das coisas mais difíceis que existem? Então, você vê um cara tocando pandeiro, se divertindo na esquina, se ele está tocando bem, o que ele passou de maçada, para chegar àquela técnica mínima de tocar pandeiro, de treinamento, de autodisciplina, é incomensurável; é isso que vocês devem ensinar na escola, mais do que a criança ser espontânea ou a escola ser divertida". É claro que quanto mais divertida a escola puder ser, melhor, quanto mais atraente, mais amorosa, melhor, quanto menos repressiva precise ser, melhor. Porém, que não se perca de vista que a escola é que deve ensinar pessoas a aceitar o lado chato da vida, entendeu? É o lugar, de todos os lugares onde uma criança vai, freqüentemente, até crescer, onde mais se deve ensinar como enfrentar o chato, ou seja, ficar horas diante de um livro estudando, obedecer ordens, ter tarefas a cumprir, tarefas que são difíceis, que ele deve treinar para ser capaz de executar, isso de alguma forma, em algum momento é, ou tem que ser, ou parecer chato para a criança e a escola tem que reconhecer que é também o seu papel, não é? Então a escola tradicional que era repetitiva e repressiva, que tinha hipertrofiado, digamos assim, mas tinha isso, não é? A escola deve ensinar a estudar também, não apenas ensinar o que já é sabido. Eu acho que deve, eu estou dizendo isso como opinião de um pai que viu essa questão no processo de educação do filho, na minha história com Moreno nessa escola. Onde aliás ele se deu até bem, aprendeu até algumas coisas, mas era toda uma série de negações das repressões e da disciplina sem uma nova formulação da idéia de disciplina, entendeu? Agora, não sei se já é a sua segunda pergunta, mas saiu um pouco da primeira. Porque a primeira era mais essa questão da área cultural e acesso à cultura universal. Mas eu acho que você tem a resposta melhor. A formulação conclusiva da sua pergunta traz a melhor resposta a ela.Você ouça de novo gravada, você vai ver: eu concordo com aquilo, essa é minha opinião. A formulação conclusiva da sua pergunta traz a melhor resposta a sua pergunta.

Monique — Então, diante dessa questão que a gente não está nomeando, e que está no final da minha pergunta, a gente tem a seguinte situação: a educação infantil é uma profissão quase estritamente feminina: são raríssimos os homens que estão nesta profissão.

CaetanoÉ verdade, é engraçado isso não é?

Monique — Então, eu fico pensando o seguinte: as mulheres, ou esse aspecto mais feminino nelas, ele é maternal, tem como possibilidade uma tentativa de quase substituir a casa, e essa coisa que você falou que não queria ser substituído...

CaetanoÉ eu não quero mesmo.

Monique — ...no seu amor de pai.Tanto é assim, que as professoras de educação infantil são chamadas de tias, como se fossem não uma profissional, mas uma pessoa da família. Então você tem nessas profissionais uma coisa ao mesmo tempo de uma dedicação que às vezes é espantosa, isso que Dolores nos dizia de professoras que têm um amor a essa causa e a esse trabalho com as crianças, uma dedicação, um ânimo pra coisa que é extraordinário, sobretudo se você for pensar nas condições de trabalho, que são muito ruins.

CaetanoEu fico espantado como ainda há professores no Brasil. É um gosto mesmo, porque não há estímulo não é verdade?

Monique — Exatamente...

CaetanoEu fico apaixonado quando uma pessoa diz que é professora, ou professor, de escola primária, é inacreditável. Porque a pessoa deveria ser muito bem assistida. Deveria ter um bom salário, e muitas regalias na sociedade brasileira para estimular a educação, o ensino. Mas os professores não têm isso, ao contrário.

Dolores — A Monique coloca um exemplo que eu acho vital: a gente vai ao médico, a gente confia no médico, não pode dar palpite. Mas quando chega a hora das professoras, ela não pode fazer o que acredita, porque diretor, pai, mãe, todo mundo dá palpite. É aí que ela insiste na coisa de a gente poder se profissionalizar.

CaetanoÉ, eu acho. Olha, isso daí eu acho importante.

Monique — É exatamente minha segunda pergunta. Porque você tem uma profissão feminina que tem essa dedicação, tem esse desvelo, mas tem uma precariedade imensa de conhecimento de ofício: as pessoas são, no máximo, muito boas reprodutoras de procedimentos que já vêm de muitos e muitos anos, com aqueles mesmos textos: essas são as boas professoras. Mas a educação é um terreno, assim, maravilhoso de investigações. Se formos pensar como um ser humano aprende, por exemplo, só por aí você tem coisas extraordinárias; toda questão da arte, toda questão da constituição das linguagens. Raríssimos são os professores que têm acesso a essas coisas e que se preocupam com elas, que buscam se profissionalizar nesse sentido. Quero dizer que se perguntam: "que base científica eu preciso para exercer essa profissão, o que é que eu preciso saber?". Então, eu queria saber como é que você vê essa questão, eu pergunto, por ser uma profissão feminina é que existe na educação essa dificuldade de tomar o ofício mais a sério?

CaetanoEu não sei, eu não sei.Talvez o fato de ser predominantemente feminino o contingente de professores de crianças pequenas contribua, ou seja mesmo uma condição para que essa função seja exercida de uma maneira muito menos profissional, de uma maneira quase pessoal, familiar. Em vez de profissional, e sem muita tendência profissionalizante.Talvez seja porque junto com várias coisas arcaicas tem aí também a própria idéia de que a mulher não é, nem deve, nem precisa ser muito intelectualmente desenvolvida. Eu acho que está embutido aí, talvez, uma velha visão da mulher, também, talvez esteja. Eu vejo, quando você descreve essas questões...

Monique — Que visão da mulher você tem em relação a isso? Porque você é bem ambíguo, muitas vezes, assim, publicamente... 

CaetanoAh! Sou, sou, intimamente mais ambíguo ainda! Intimamente mais ambíguo ainda. Eu acho que evidentemente tem coisas boas nesse fato de ser sobretudo mulheres que ensinam as crianças, tem coisas boas no fato de as mulheres não serem muito boas profissionais também, não terem uma tendência, ou um convite da sociedade para que elas sejam intelectualmente muito responsáveis. Isso leva coisas boas também no trato das professoras de crianças na primeira fase. 

Monique — Que tipo de coisas? 

CaetanoEu não sei, talvez esse próprio calor personalizado, maternal, confundido com a família, tenha em si mesmo algumas vantagens que se a gente... 

Monique — Mas você disse na escola do Moreno que você não queria...

CaetanoNão queria e não quero... eu estou dizendo apenas que embora..., eu não quero, mas eu acho que deve ter coisas boas, que é o que mantém isso. Eu acho que deve ter, porque eu vejo que tem. Eu acho o seguinte: essas pessoas que se desvelam nessa profissão são pessoas maravilhosas e não é o fato de haver um equívoco dessa natureza em relação a isso que diminui aos meus olhos a beleza do perfil psicológico da professora da criança pequena, entendeu? Eu digo assim, a idéia geral que eu faço da moça que ensina as crianças na primeira fase é uma idéia benigna, em primeiro lugar, uma idéia boa. Essas características pouco profissionais devem conter alguma coisa de muito boa, eu acho, porque tudo isso, a mera existência de professoras já é uma coisa muito boa, entendeu, quando não há estímulo profissional para que haja professoras. Então eu queria apenas estar dizendo uma coisa carinhosa que elas merecem. O que não quer dizer que eu ache que as coisas devam permanecer assim, ao contrário: eu acho que quanto maior desenvolvimento intelectual e consciência do que elas estão fazendo por essas pessoas, sobretudo mulheres, puderem ganhar, melhor será para elas e para a profissão e melhor será para o ensino no Brasil. Até mesmo para aquela visão mais geral de que a gente estava falando sobre a necessidade de democratização do ensino público no Brasil... 

Monique — Exatamente.

CaetanoEntão, a minha posição é nitidamente favorável a uma superação de uma fase amadorística, embrionária do ensino para crianças pequenas. Mas, quando eu disse que deve haver coisas boas é porque eu suponho que há alguma coisa muito delicada, muito profunda nessa questão da ambição moderna de equiparar o homem à mulher nas suas potencialidades como sujeitos sociais, entendeu? Eu acho que esse é um assunto que me interessou desde a minha primeira infância, uma coisa que me interessa desde que eu era criança, que os assuntos que são assuntos do feminismo são assuntos meus...

Monique — A terceira pergunta é a seguinte: você, como pai do Zeca, se você pudesse fazer uma escola dos seus sonhos, o que você gostaria que a escola oferecesse?

CaetanoOlha, uma escola dos meus sonhos não teria dificuldade de ser posta em funcionamento, é muito simples: uma escola que ensinasse, fosse limpa, organizada... Não achei basicamente muito difícil educar o meu primeiro filho em escolas, aquela questão que eu enfrentei, eu a descrevi, mais não cheguei a ter grandes dificuldades, nem quando ele foi para uma escola muito careta, ele chegou a ter dificuldades, serviu para ele de complementação, de experiência, de aprendizado também de como as coisas são. Então, não posso dizer que eu particularmente tenha tido dificuldades com escolas, e não penso que venha a ter com o Zeca, necessariamente, porque eu acho, se não houver problemas sérios, as escolas são basicamente fáceis em me satisfazer. É verdade, é fácil para uma escola me satisfazer como pai, porque para mim basta que haja um nível razoável de informação, que os professores se comportem bem, ensinem. Eu não tenho uma idéia muito criativa de como uma escola deve ser, nem preciso ter como pai. O que me preocupa mais é a possibilidade de muitas outras crianças, que nasceram nessa mesma altura que o Zeca nasceu, poderem ter acesso a um ensino razoável, a algum ensino, não é? O maior problema de Zeca para mim não está nem com ele, nem na escola que ele poderá encontrar, eu acho que está mais no número imenso de companheiros de geração dele que não chegarão a nenhuma escola, ou chegarão apenas a freqüentar uma sub-escola por um ano e meio ou dois, e depois terem que sair, ou terminarem saindo. Eu acho que esse é que vai ser o maior problema para Zeca, porque a escola em si, para uma pessoa com os meus meios, no Brasil, eu acho que dificilmente chega propriamente a ser um problema: eu não senti isso com meu primeiro filho e não vejo que eu venha a sentir com o segundo. Eu ouço muito dizer entre pessoas da minha área, quer dizer, até entre pessoas da classe artística, mas sobretudo entre pessoas de alto poder aquisitivo no Brasil, ouço dizer, e tenho visto eles se decidirem por isso, que preferem botar os filhos para estudar em escolas estrangeiras. Então uns estudam em escolas alemãs, outros na americana, outros na escola inglesa. Eu não tenho desejo nenhum de fazer isso, eu até reajo um pouco contra isso. Primeiro porque não sinto problema — como se houvesse uma deficiência nas escolas em que meu filho mais velho estudou — , e depois porque eu tenho um pouco de desconfiança, e até de repulsa mesmo por essa atitude. É mais um agravante da disparidade social brasileira e econômica, esses atos das pessoas de alto poder aquisitivo no Brasil, praticamente só usarem o Brasil para sugar o dinheiro dele, para sugar posses, para poder gastar em outros países e ainda por cima botar os filhos em escolas de outros países. Então, parece que o Brasil como país não existe, gradativamente vai se tornando apenas um lugar que algumas pessoas, muito poucas, sugam de onde as pessoas retiram tudo para gastar em outros lugares. Então eu tenho esse problema; mas a escola, é claro que eu quero, por exemplo, que o Zeca tenha uma escola não muito repressiva, com uma capacidade de permitir que ele desenvolva a individualidade dele, que expresse a personalidade individual dele, mas não acho que isso seja muito difícil de encontrar hoje em dia. Eu gostei das escolas que eu freqüentei. Sei que houve uma queda muito grande na questão da qualidade de ensino e de manutenção de escolas públicas no Brasil — o que eu acho uma tragédia — , e porque eu estudei em escolas públicas, se pudesse haver uma reversão desse quadro eu adoraria; se Zeca já pudesse se beneficiar disso, para mim isso sim seria um sonho.

Monique — Eu tenho até um sonho...

CaetanoMas eu espero até que você tenha, porque é da sua profissão. Eu estou falando com você porque eu adoro esse assunto e para estimular seu próprio pensamento. É por isso que eu estou falando, para você também, eu acho que vale a pena. Mas eu acho que eu próprio não posso contribuir com idéia nenhuma para essas coisas. Eu acho que talvez a nossa conversa sirva a você, mas eu não posso trazer idéias novas a uma atividade à qual eu não estou ligado.

Monique — Assim como eu não poderia trazer idéias novas para uma canção sua...

CaetanoÉ, talvez. Mas você sabe que eu queria ser professor, eu queria ser professor. Eu já lhe disse isso, não é? Se eu não fosse artista, eu ia ser professor. Está bom?

Monique — Está ótimo!

 

 

 

(1) Petrópolis, Editora Vozes, 1994.


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