miércoles, 10 de julio de 2019

2019 - PORTUGAL / "SOU SEBASTIANISTA"




Concertos:
Coliseu do Porto. 1 de julho, segunda 22h.
Centro de Artes e Espetáculos, Figueira da Foz. 3 de julho, quarta 20h.
Coliseu dos Recreios, Lisboa. 5 de julho, sexta 22h.
Teatro Micaelense, Ponta Delgada. 7 e 8 de julho, domingo e segunda 21h30.
Teatro das Figuras, Faro. 10 de julho, quarta 21h30.




OBSERVADOR







Gonçalo Correia


Caetano Veloso: “Estive sempre certo que não teria filhos. Para ser sincero, nem gostava de crianças” / premium

29 Junho 2019

Mudou de opinião e após ser pai sentiu “que tinha vivido até ali sem saber de verdade o que era existir”. Volta agora a Portugal com os filhos para mais espetáculos. E quer gravar com Júlio Resende.

Como diriam os brasileiros, “demorou” até que Caetano Veloso sequer pensasse em cantar com os filhos em palco — como tem vindo a fazer desde outubro de 2017 e fará novamente na próxima semana, em cinco cidades portuguesas: Porto, Figueira da Foz, Lisboa, Ponta Delgada e Faro. Não foi só a relutância dos mais novos, Zeca (27 anos) e Tom (22 anos), que até há pouco tempo nem queriam ouvir falar na ideia. Foi também a relutância inicial de Caetano em ter filhos: durante muito tempo, um dos grandes mestres da canção brasileira, para alguns o mestre (Chico que nos perdoe), nem quis ouvir falar de crianças.

A confissão foi agora feita ao Observador, por e-mail, a propósito de um “pretenso desejo” de ser pai. “Sempre tive certo que nunca os teria”, começou por escrever, logo acrescentando: “E nisso tinha a total concordância de Dedé [Andréa Gadelha]”, sua primeira mulher e futura mãe do seu primeiro filho, Moreno Veloso (nascido em 1972, quando Caetano tinha 30 anos). Os dois eram, como o próprio músico e cantor brasileiro agora recorda, “um casal existencialista de Salvador”, que na “adolescência” decidiu, “como Sartre e Simone”, nunca ter filhos.


Caetano, Moreno, Tom e Zeca Veloso vão voltar a apresentar o espetáculo "Ofertório" em Portugal. 

Os anos anteriores a Caetano Veloso ser pai pela primeira vez também não andavam a ser propícios à paternidade. Em julho de 1969, quase a fazer 27 anos e já depois de ter ficado quase dois meses preso (com Gilberto Gil) por ordem da ditadura militar brasileira, Caetano partiu rumo a Londres, onde começou um exílio político.

O primeiro ano no Reino Unido (esteve lá dois anos e meio) não foi meigo para o músico, que se sentia “algo depressivo”. No ano seguinte, “as coisas melhoraram”: Caetano recebeu a visita de alguns compatriotas artistas, como Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa, que o ajudaram a gravar um dos seus álbuns mais emblemáticos em toda a carreira.

Intitulado Transa, o grande álbum do exílio britânico de Caetano Veloso foi editado logo no primeiro mês do ano que o músico considera hoje como um dos mais importantes da sua vida. Afinal, foi aquele em que viu nascer o primeiro filho. Enquanto gravava o disco, ainda no ano anterior, 1971 — já depois de ter tido autorização do regime brasileiro para uma visita breve ao país, para assistir à comemoração dos 40 anos de casamento dos pais, José Teles Veloso e Claudionor “Dona Canô” Veloso — o músico estava com outro estado de espírito. “Fiquei mais alegre, menos desgostoso com Londres” — começou até “a amar mais os bancos dos parques, a grama [relva], a calma…”, recorda agora ao Observador.


Caetano, que “para ser sincero, nem gostava de crianças”, de repente começou a ter vontade de ter um filho. “Dizem que esse sinal do relógio biológico só acontece com mulheres, mas foi exatamente assim que aconteceu comigo”, lembra, dizendo que passou “a amar até anúncios da Johnson&Johnson na TV"

Caetano, que “para ser sincero, nem gostava de crianças”, de repente começou a ter vontade de ter um filho. “Dizem que esse sinal do relógio biológico só acontece com mulheres, mas foi exatamente assim que aconteceu comigo”, lembra, dizendo que passou “a amar até anúncios da Johnson&Johnson [multinacional dona da linha de produtos Johnson’s Baby] na TV”.

Foi preciso convencer a mulher “Dedé” de que abandonar o modelo de relação inspirado em Sartre e Simone de Beauvoir era uma boa ideia, admite Caetano Veloso.
Conseguiu, porém, levar a sua avante — e quando Moreno Veloso nasceu, Caetano sentiu “que tinha vivido até ali sem saber de verdade o que era existir”. O filho mais velho, aponta, foi “o maior acontecimento de minha vida adulta”. Passados 20 anos, nascidos já não nos anos 70 mas nos anos 90 — e filhos já não de Dedé, mas da atriz, produtora e empresária Paula Lavigne — Tom e Zeca Veloso “vieram para confirmar” que afinal ser pai até é bom, pelo menos para ele. “À medida que eles crescem e amadurecem, fico mais certo que é assim”, refere.

Como Caetano convenceu os filhos a ir para os palcos com ele

Mais velho, Moreno Veloso é o único dos três filhos de Caetano com uma carreira consolidada na música, como compositor e cantor — já deu concertos em Portugal e lançou discos, o mais imprescindível dos quais Coisa Boa, de 2014 — e como produtor. É, também, o filho de Caetano com uma relação mais estreita com a obra do pai, para quem já compôs, com quem já cantou e com quem já trabalhou também enquanto produtor musical. Pelo filho mais velho, talvez o espetáculo “Ofertório” já tivesse acontecido há mais anos. Foram os seus irmãos mais novos, Zeca e Tom, que levaram mais tempo a aderir com entusiasmo à ideia de uma digressão familiar e íntima, que entretanto já deu origem a um disco ao vivo e a concertos esgotados no Brasil e em Portugal.

A experiência musical menos acentuada dos filhos mais novos não foi motivo único para que a ideia de Caetano ficasse algum tempo a marinar. Tom Veloso, por exemplo, não se juntou logo até por intervenção da mãe e ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne: “Ela recusou a ideia por o nosso filho Tom estar, àquela altura, começando os trabalhos com a banda Dônica”, que o “caçula” da família formou com “um grupo talentosíssimo de colegas dele”, refere Caetano Veloso, acrescentando que a ex-mulher “viu que não deveríamos atrapalhar o começo da vida dessa nova banda”. O pai percebeu a mensagem, “não voltei a falar no assunto”, mas a banda do filho mais novo lançou depois um recomendável primeiro álbum ainda (Continuidade dos Parques), apresentou-o ao vivo e Paula Lavigne disse ao antigo marido “que talvez já fosse possível tratar do assunto”.

Se dois terços dos “colaboradores” até poderiam estar já quase convencidos, faltava aferir da disponibilidade do terceiro, Zeca Veloso, mais velho que Tom (tem 27 anos) mas sem qualquer disco ou canção publicamente revelada — e por isso o convidado mais “sensível”. Tudo se complicou: “Ele recusou. Desisti. Nem falei com os outros dois”. Zeca levou “um bom tempo” a mudar a resposta de “não quero” para “admitia tentar fazer” — e só depois disso é que Caetano falou com os outros dois filhos, que “não apresentaram nenhum entrave” e “aceitaram com naturalidade”.

Finalmente, os três filhos estavam sintonizados com a vontade do pai em fazer uma digressão de concertos em família. Estava convencido Tom, que em criança “só se interessava por futebol” (jogou federado no Fluminense, embora “fosse e seja Flamengo doente”) e não gostava sequer que o pai cantasse para o por a dormir — mais tarde aprendeu guitarra com o músico brasileiro César Mendes e é hoje o que melhor a toca dos quatro, garante o pai. Estava convencido também Moreno, cuja relação com a música começou mais cedo mas que não a teve nunca como paixão única: “Gostava de matemática e é formado em física”, tendo inclusive participado “na elaboração do laboratório de pequenas partículas que existe hoje na Universidade Federal do Rio de Janeiro”. Estava também finalmente convencido Zeca, que “quis aproximar-se da música eletrónica na adolescência” e “antes de fazer 18 tocava em lugares, em mini raves, até em clubes noturnos, mentindo a idade” — mas que “só depois de adulto é que começou a fazer essas canções dele que vão direto ao coração da gente”, aponta Caetano.

"Quando ensaiávamos (e não ensaiámos muito), eu achava o show muito vulnerável e talvez incapaz de ter uma carreira profissional de fôlego médio, muito menos de longo alcance. Temi mesmo que pudesse causar estranhamento e talvez até alguma hostilidade", admite Caetano, sobre o espetáculo familiar

Os três começaram os ensaios, o que deliciou Caetano. “É algo muito físico e muito espiritual. Que eles tenham chegado perto de mim na música, é uma glória para minha alma”, diz Caetano Veloso. Durante algum tempo, porém, Caetano Veloso não imaginou que a digressão pudesse durar dois anos e resultasse em mais do que um concerto dado na mesma sala, como admite por e-mail: “Quando ensaiávamos (e não ensaiámos muito), eu achava o show muito vulnerável e talvez incapaz de ter uma carreira profissional de fôlego médio, muito menos de longo alcance. Temi mesmo que pudesse causar estranhamento e talvez até alguma hostilidade”.



O sucesso dos concertos em família e a revelação Zeca Veloso

O sucesso do espetáculo, mais simples que espetacular, mais íntimo que com grandes efeitos e artifícios, foi tão inesperado para Caetano Veloso quanto retumbante, como se percebe pelas reações aos espetáculos em Portugal no verão passado. “Para nossa surpresa, desde a noite de estreia, nosso espetáculo ganhou as plateias pelo que tem de sincero e particular. Vemos as cidades por onde já passámos a convidar-nos de volta e milhares de pessoas” a relatar a sua “emoção diante de nosso timbre e nosso repertório”, aponta Caetano Veloso.


Moreno, Zeca e Tom fizeram Caetano Veloso feliz

Depois do Porto, o músico brasileiro esteve no Coliseu de Lisboa com os três filhos. Sambaram, festejaram e ainda se ouviu "Amar pelos dois" e "Noite de Santo António" de Amália Rodrigues.

Por Catarina Gonçalves Pereira

O repertório inclui clássicos como “Leãozinho” — “os filhos de tanta gente pedem, os meus não deixaram de pedir”, disse Caetano Veloso logo na apresentação oficial da digressão —, canções como “Reconvexo”, que Caetano Veloso escreveu para a irmã Maria Bethânia e temas originais de cada um dos quatro elementos do clã Veloso, alguns dos quais nunca antes mostrados (inclusive composições inéditas de Caetano).

Curiosamente, talvez o maior êxito entre as canções novas apresentadas nesta digressão até se deve sobretudo àquele que até aqui não tinha nunca revelado uma canção sua publicamente: Zeca Veloso. “Todo Homem”, que Zeca canta com delicadeza, voz aguda e falsetto de rapaz sensível, tornou-se sucesso do Youtube (foi parar às “tendências”, em linguagem técnica, e lá ficou muito tempo), nas plataformas de streaming, nos concertos, no Brasil, em todo o lado. Caetano ficou surpreendido e não foi por duvidar da qualidade da canção, que lhe causou “forte impressão e emoção profunda” logo na primeira vez que a ouviu, “só com ele ao violão, em casa”.

Ao Observador, o pai explica a surpresa com o sucesso de “Todo Homem”: “Fico maravilhado ao ver que milhões de pessoas que não conheciam o Zeca tenham captado o essencial do que ele é. A canção é tão ele, que pensei que só alguém que o conhecia tão bem como eu a poderia entender. Tom foi a primeira pessoa a ouvi-la: eu estava dormindo e Zeca, tendo acabado de a compor, sentiu necessidade de mostrar e foi à praia, onde sabia que Tom estaria, e finalmente a cantou para o irmão. Este ouviu calado e disse: meu pai vai gostar. Acho que Tom tampouco sabia que as pessoas que não conheciam Zeca como eu iriam ficar tomadas por essa composição e pelo jeito como Zeca a canta”.

Com Resende e Sobral na Eurovisão: “Fiquei nervoso e não creio ter ajudado muito”

Caetano Veloso está habituado “à doçura do público português” — diz o próprio —, Moreno também porque “já fez espetáculos em Portugal”, Zeca e Tom poderão ter ficado mais surpreendidos com as palmas nos concertos e com a receção fora das salas de espetáculo. Num voo de Barcelona para o Porto, por exemplo, um grupo de portugueses decidiu homenagear Caetano — que estava sentado com os filhos no avião — cantando um tema seu. “Pessoalmente, fiquei surpreso. Nem imaginava que aquelas pessoas que estavam voltando de um casamento me tivessem visto ou lembrado de me haver visto [antes de embarcar] no aeroporto de Barcelona”, diz agora.

Uma prova maior da ligação de Caetano Veloso e do seu filho mais velho, Moreno Veloso, a Portugal foi a interpretação deste último do tema “Noite de Santo António”, nos concertos do último verão em Lisboa e Porto. Perguntámos a Caetano Veloso de onde veio a ideia e se é para repetir, ele respondeu: “Acho irresistível ouvir Moreno cantar ‘Noites de Santo António’. Há outras marchinhas que ele e eu conhecemos e que talvez ele prefira cantar, para variar. Mas, por meu gosto, ele repetiria aquela, que tanto me comove. Ele aliás passou a noite de Santo António em Alfama, este ano”. Já o pai estava “na Bahia, cantando os cânticos tradicionais da Trezena, junto a nossos familiares”.

"Amo o piano de Júlio [Resende]. Ainda hei-de gravar alguma(s) coisa(s) com ele", diz Caetano. Também gosta de Carminho, Mariza, António Zambujo, Salvador Sobral, Sérgio Godinho, Rui Veloso, Maria da Fé, Capicua e "muito do que há de angolano e cabo-verdiano desenvolvendo-se em Portugal”

No verão passado, na única vez que vieram a Portugal para espetáculos familiares, os elementos do clã Veloso conviveram com alguns músicos portugueses como Carminho, António Zambujo, Salvador Sobral e Júlio Resende. Caetano diz que gostou “sempre” de música portuguesa e foi “amante do fado na infância e adolescência”, continuando “a sê-lo” hoje. Por causa disso, ouve “Marizas e Carminhos — além de Camanés e Zambujos — há décadas. Maria da Fé é citada em minha ‘Língua’, coisa de que muito me orgulho”. O gosto pela música portuguesa, contudo, não se restringe ou fado: Caetano cita Sérgio Godinho e Rui Veloso, “o rap de Capicua”, o “caso único que é Salvador Sobral” e “muito do que há de angolano e cabo-verdiano desenvolvendo-se em Portugal” como alvo de apreço.

Quem também mereceu palavras elogiosas do autor de discos como Bicho (1977), Cinema Transcendetal (1979) e Circuladô (1991) foi Júlio Resende. O cantor e compositor brasileiro partilhou palco com o pianista português e com Salvador Sobral na final do Festival Eurovisão da Canção de 2018, em Lisboa, dando origem a um dos momentos mais marcantes da noite e dos últimos anos de festival. Garantindo ter ficado “honrado com o convite” e ter adorado ouvir Sobral “cantando aquela música singela e forte, em meio dos fogos de artifício da Eurovisão”, revelou vontade de gravar com Júlio Resende: “Amo o piano de Júlio. Ainda hei-de gravar alguma(s) coisa(s) com ele”. Modesto, diz que o seu contributo para aquela versão de “Amar Pelos Dois” foi parco: “Fiquei nervoso e não creio ter ajudado muito meus admirados colegas. Mas foi uma realização de monta para mim estar ali”.

Também parco é o comentário que faz ao estado atual da política brasileira, que descreve apenas como “lastimável”, contrariamente ao esforço coletivo que diz ver no “povo” brasileiro para “crescer — não crescer como a China ou os Estados Unidos, mas crescer em humanidade, enfrentar o desafio que é ser o único país de língua portuguesa das Américas, altamente miscigenerado e com dimensões continentais”.

Sem um álbum a solo de originais desde que editou o bem-recebido Abraçaço, em 2012, Caetano Veloso não está com pressa para editar um novo disco, mas já tem na mira o momento de se dedicar a compô-lo. Ao Observador, revela que tem andado “mergulhado e apaixonadamente envolvido” nesta digressão familiar, tendo apenas feito recentemente canções para a irmã Maria Bethânia (“De Santo Amaro a Xerém”, um “samba-de-roda bem simples” que esta canta com Zeca Pagodinho) e para a cantora e compositora, também brasileira, Céu (“Pardo”). Mas um novo álbum virá mesmo: “Depois de quase dois anos de ‘Ofertório’, comecei a desejar compor e a ser assediado por ideias de letras, melodias, sons. Suponho que, se o tempo der, farei algumas canções e gravações até ao fim deste ano. Se não, [será] no começo do [ano] que vem”.

Até pelo menos à ponta final de 2019, Caetano só pensará em estar e tocar com os filhos. Se as bandas tantas vezes se dissolvem porque o baixista se farta do vocalista, o teclista embirra com o guitarrista, o baterista não suporta ninguém, neste agrupamento familiar também poderá haver discórdias (alguma família é imune?) mas a longevidade é prova de boa saúde. “Fiquei perto dos meus filhos tanto quanto pude, desde que cada um nasceu minha vontade era estar todo o tempo com eles”, diz Caetano, que admite que esta digressão também existe devido ao desejo “de tê-los por perto”, porque “os meninos crescem e não querem ficar tanto tempo assim com os pais”. Com “Ofertório”, pelo menos “durante hora e meia de show, mais meia hora de soundcheck, alguma mais em aeroportos e em transportes, posso os estar vendo e ouvindo”. Felizmente, não é o único.





Caetano Veloso: "Sou sebastianista"

O músico brasileiro que hoje tem concerto marcado com os filhos no Coliseu de Lisboa esteve num debate sobre o documentário Netflix Democracia em Vertigem, de Petra Costa. Caetano Veloso revelou ao DN a sua vertigem cinéfila...

Rui Pedro Tendinha

05 Julho 2019

Caetano Veloso - © Pedro Granadeiro / Global Imagens

"O cinema foi a minha primeira paixão", conta ao DN Caetano Veloso, convidado de uma sessão especial de Democracia em Vertigem, um filme de Petra Costa, num Cinema Ideal a abarrotar. O filme que está em streaming na Netflix passou em Lisboa numa iniciativa do centro comunitário Casa Mídia Ninja Lisboa, site criado para dar voz ao povo brasileiro.


Um documentário que narra o historial da queda de Dilma Rousseff até à chegada de Bolsonaro. Cinema de denúncia com uma ideia marcante de narração na primeira pessoa - o efeito da crise democrática do Brasil é como um trauma pessoal para Petra Costa, filha de pais revolucionários nos tempos da ditadura militar.

O debate em torno do filme colocou lado a lado a realizadora e Caetano, fã do filme que começou a sua intervenção no palco do Ideal a dizer que já o viu duas vezes e que ainda vai ver uma outra. Uma hora depois, numa mesa do bar do cinema garante ao microfone do Diário de Notícias que acredita realmente em Democracia em Vertigem: "O cinema ainda pode ser uma arma. O filme de Petra é uma prova disso. Este filme está a causar um grande impacto! É um filme forte, capaz de ensinar o Brasil aos brasileiros e a quem não é brasileiro. Quem não está por dentro do problema atual que veja este filme!"

Caetano está também convencido de que se trata de uma obra que incomoda: "O problema é que poderia incomodar muito mais a opinião pública no Brasil se a grande imprensa não olhasse de lado, mas claro que depende... Quando os filmes têm uma presença grande internacionalmente não há como não noticiar... Neste momento, a imprensa no Brasil está a ter que enfrentar a inimizade que o governo está a criar depois das eleições, mesmo os grandes jornais e a emissora que pertence às grandes famílias ou, mais recentemente, a uma igreja evangélica".

E é de cinema que Caetano fala com um sorriso que traz ternura. "Sabe que eu nos anos 1960 escrevi crítica de cinema?", pergunta a rir. Vem também à conversa Cinema Falado, filme-ensaio que realizou em 1986: "nossa! Isso já foi há tanto tempo! Continuo a gostar muito de ver cinema! E o cinema brasileiro está a reagir muito bem a este período negro. Democracia em Vertigem já bastaria, mas a Petra não é a única cineasta a fazer este tipo de cinema. Diria que Democracia em Vertigem é quase um complemento a O Processo, de Maria Augusta Ramos, embora o da Petra seja um processo mais íntimo e detalhado".

Uns minutos antes, na sala e para o público, Caetano falava de como a influência da colonização portuguesa formava vícios anti-democráticos nas famílias que mandam no Brasil e lembrava que os seus apelidos são portugueses... Sobre este tema é o próprio músico que admite a possibilidade dos recorrentes equívocos: "Quando se fala da colonização portuguesa no Brasil há sempre mal-entendidos e esses mal-entendidos são normais num país tão mal resolvido como o nosso. Mas o que incomoda? Gosto muito do livro da Alexandra Lucas Coelho, Deus-dará. Ali está tudo o que acho ser importante saber desse tema. Seja como for, sou suspeito: de certa maneira sou sebastianista... De uma certa mirada, é uma benção termos sido colonizados pelos portugueses. A expansão da Europa com as colonizações é brutal! E o facto de termos herdado a língua portuguesa é óptimo para nós. Dou graças ao facto de o português não ter tanta expressão na América".

Apesar de ter admitido que chorou a ver Democracia em Vertigem, Caetano contou ao público do Ideal que sentiu que é possível ainda ter esperança numa utopia de mudança: "Temos que olhar para a eleição de Bolsonaro como um percalço de um caminho. Se não aparecem percalços, não há caminho. Enfim, um percalço tão evidente é mesmo prova de caminho e exigência de ação! Mas a ação tem de ser feita de uma maneira muito cuidadosa". E também a realizadora Petra acredita que é preciso acreditar numa mudança: "sei que a História tem sempre mais imaginação do que nós. O Chris Marker já dizia isso num filme seu. É claro que estou surpreendida de forma traumática com a realidade mas tenho mesmo essa fé que a História tenha imaginação para dar a volta".

Os aplausos comovidos foram de uma plateia maioritariamente brasileira mas também foram notadas presenças de figuras das artes portuguesas como Maria de Medeiros; Tomás Wallestein, dos Capitão Fausto; Sérgio Godinho; Carminho ou o produtor Luís Urbano.




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