Uma
conferência de Caetano Veloso e Antonio Cicero intitulada "A Mensagem do
Tropicalismo", sobre a influência de "Mensagem" de Fernando
Pessoa no movimento tropicalista, inaugura o ciclo "Livres
Pensadores" na Casa Fernando Pessoa, no próximo dia 4 de Dezembro, às 18h30.
Com esta série de conferências, de periodicidade mensal, a Casa Fernando Pessoa
pretende dar a ouvir algumas das mais luminosas e heterodoxas vozes do
pensamento e da criação contemporâneos, nas mais diversas áreas, contribuindo
assim para o desenvolvimento da liberdade de pensamento e do sentido crítico
que Fernando Pessoa tanto cultivou e de que Portugal tanto necessita. A
conferência de Caetano Veloso e Antonio Cicero assinala os 75 anos da
publicação de "Mensagem" de Fernando Pessoa.
Quinta-feira, 10 de Dezembro de 2009
Caetanear por aqui
Chegou, comeu, cantou, falou (para dois pisos a
transbordar de gente; a conferência de Caetano e Antonio Cicero foi
transmitida, em directo, do auditório para a recepção da Casa Fernando Pessoa),
e de novo partiu. Durante cerca de cinco dias, e outras tantas noites, Caetano
Veloso "caetaneou" por aqui.
domingo, 6 de dezembro de 2009
Caetano Veloso e António Cicero em Pessoa
Ana Vieira da Silva
No passado dia 4 de Dezembro,
sexta-feira, a Casa Fernando Pessoa, voltou a encher, por dentro e por fora.
Mais que um momento onde se
observaram modos de actuar e partilharam ideias “…A Mensagem do
Tropicalismo", sobre a influência de "Mensagem" de Fernando
Pessoa" no movimento tropicalista ...” foi uma espécie de tertúlia
Lisboeta, ao estilo do Grémio Literário, do Século passado.
Estes encontros espontâneos são os
melhores e os mais singelos. É o género de singularidade que acontece uma vez e
não tem réplicas.
Do “Tropicalismo” a “Agostinho da
Silva”, passando por Santo Amaro e regressando ao imaginário de Cachoeira,
recordei a Bahia dos Capitães na Areia, e escutei, com o coração, que não podem
haver adultos de oito anos, brancos ou pretos, mas Seres Humanos na sua
plenitude de direitos, em qualquer lugar do planeta.
Vi, António Cicero e Caetano Veloso,
em Pessoa, a falarem do mundo como se estivéssemos na Lua a contemplar o azul,
o verde e os castanhos da Terra.
Senti o valor da linguagem quando
está ao serviço da mensagem e se transforma em ideias singelas, tornando-a mais
emotiva com a revelação de pontos de vista corajosos, por vezes, provocadores,
que deveriam interrogar e mobilizar a sociedade.
Vi e ouvi, bem de perto, o sorriso
daquela força estranha, uma espécie de força interior que se esvazia em força
exterior e contagia até os mais blindados.
Baixinho ao ouvido, tocava-me um
olhar terno e sereno, e uma voz que não parava de repetir:
“… Caetano, venha ver o preto que
você gosta. Isso de dizer o preto, sorrindo ternamente como ela o fazia, o fez,
tinha, teve, tem, um sabor esquisito, que intensificava o encanto da arte e da
personalidade do moço no vídeo.
Era como isso se somasse àquilo que
eu via e ouvia, uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela
pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, adensasse sua beleza.
Eu sentia a alegria por Gil existir,
por ele ser preto, por ele ser ele, e por minha mãe saudar tudo isso de forma
tão directa e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a
aparição dessa pessoa, e minha mãe festejava comigo a descoberta. ...”.
Caetano Veloso em Lisboa para falar de cinema e Fernando Pessoa
O músico brasileiro Caetano Veloso vem a Portugal em Dezembro para
falar sobre a influência de Fernando Pessoa no movimento tropicalista e para
uma sessão de visionamento do seu filme Cinema
Falado na Cinemateca Portuguesa
A convite da Casa Fernando Pessoa (CFP), Caetano participará,
juntamente com o filósofo e poeta brasileiro António Cicero, numa conferência
intitulada A Mensagem
do Tropicalismo, sobre a influência de Mensagem, de
Fernando Pessoa, no movimento tropicalista.
Destinada a assinalar os 75 anos da publicação da Mensagem, a
conferência, que se realiza a 4 de Dezembro, pelas 18h30, na CFP, inaugura o
ciclo Livres
Pensadores, uma série de conferências de periodicidade mensal,
nas quais a CFP pretende «dar
a ouvir algumas das mais luminosas e heterodoxas vozes do pensamento e da
criação contemporâneos, nas mais diversas áreas».
O objectivo é - indica a CFP em comunicado - «contribuir para o desenvolvimento
da liberdade de pensamento e do sentido crítico que Fernando Pessoa tanto
cultivou e de que Portugal tanto necessita».
No dia seguinte, 5 de Dezembro, Caetano Veloso - cuja ligação ao
cinema é conhecida desde finais dos anos 1960, tendo não só uma extensa
filmografia como compositor, como também várias participações como actor -
rumará à Cinemateca Portuguesa, com António Cícero, para a exibição, às 19h, do
seu filme documental Cinema
Falado, com o qual se estreou na realização, em 1986.
Esta longa-metragem ainda pouco conhecida, embora o autor já a
tenha mostrado em Lisboa, em Fevereiro de 2000, encontra-se dividida em três
capítulos - literatura, música e pintura - e cerca de 30 segmentos, a maioria
dos quais filmados em plano-sequência, e foi rodada por Caetano na sua casa do
Rio de Janeiro, com a participação de um grupo de cúmplices, familiares e
amigos.
Lusa / SOL
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5/11/2010 |
05/11/2010
Caetano Veloso participa de
noite de autógrafos de livro da escritora Inês Pedrosa
Caetano Veloso apresentou o livro Os Íntimos de Inês Pedrosa,
directora da Casa Fernando Pessoa, esta semana na Livraria da Travessa, no
Rio de Janeiro.
Cristiane Costa, Inês Pedrosa e Caetano Veloso |
Imagem: RAPHAEL MESQUITA / PHOTO RIO NEWS |
EXPRESSO / Portugal
Gente
Caetano
Veloso: "A infância mete mais medo do que a velhice"
26/12/2009
Há quase meio século sob as luzes da ribalta, Caetano Veloso diz que não
tem talento especial para a música. O cantor em entrevista, durante a qual até
cantou para as entrevistadoras do Expresso.
Ana
Soromenho e Christiana Martins (www.expresso.pt)
O que é que anda o
"velho" Caetano a pensar? No Quinto Império e num Brasil de sucesso.
Mas também numa banda de rock. Enroscado no hábito de fazer música, continua a
sonhar com o cinema. Entre todos os músicos brasileiros da sua geração, Caetano
foi aquele que nunca perdeu a inquietude de acompanhar o seu tempo, nem a
tentação de pertencer à contemporaneidade. As confissões soltas mostram-nos um
homem atento ao seu envelhecimento e deliciado com o facto de estar vivo. Nesta
conversa assume que o "amorzinho" não o deslumbra. Como compositor, a
sua cena é a língua portuguesa. Foi isso mesmo que o trouxe a Portugal, para
participar num encontro na Casa Fernando Pessoa e festejar o cinquentenário da
primeira edição da "Mensagem". Nos dias em que passou por Lisboa,
voltou aos fados. Um ritual de que não abre mão. Desta vez não se ficou pelo
Sr. Vinho e pela voz de Maria da Fé. Quis conhecer Lula Pena, cantora que
descobriu na Internet. O Expresso foi ao encontro de um Caetano cheio de frio,
encolhido como qualquer carioca que revela todo o despreparo tropical para os
Invernos europeus. Apeteceu-nos saber o que realmente interessa a este
homem de 67 anos, passadas tantas músicas inesquecíveis. Descobrimos um senhor
que não consegue separar-se dos seus livros e que vive numa casa
"atafulhada" de coisas que não deita fora. Na mala para Lisboa,
trazia Fernando Pessoa. O filósofo, não o poeta.
Vamos começar esta conversa
com uma charada: Que pergunta faria Caetano a Caetano Veloso? Assim, de repente, não me ocorre nada. Quando venho para uma entrevista
não imagino antecipadamente o que me irão perguntar. Nunca sei a conversa que
vai acontecer.
Não nos dá essa chave? Precisava de ter pensado nisso antes. Interessam-me sempre muitas coisas,
mas para vos dar essa chave, era necessário estar num período da minha vida em
que tivesse uma preocupação do tipo: "Eu queria tanto dizer alguma coisa
na qual não se toca!"
Em que pensa quando fica
acordado nas suas longas noites de insónia, que vai adormecendo e acordando,
tal como nos contou há pouco? Nessas noites eu leio. Leio muito. Às vezes, ligo
a televisão e procuro um filme que me interesse.
É então nas letras e nas
músicas que escreve que lhe vão surgindo as suas interrogações? E também nas conversas que tenho, nas entrevistas que dou, nas coisas
que faço... Mas, sim, as músicas vão dizendo coisas. Às vezes são encomendas de
cantores, outras sou eu que quero fazer um disco novo e penso que seria
interessante ter uma canção com este ou aquele cara, dizendo isso ou aquilo na
letra. O próprio fazer da canção acaba por nos levar para uma outra coisa que
ainda não tínhamos imaginado.
Como compositor, é sobretudo
um racional. Nunca poderíamos dizer que Caetano é um letrista romântico, pois
não? Não sou muito, não.
Porquê? Temperamento.
Mas as letras também são
feitas de emoções. E também é verdade que
as palavras se referem a coisas. Não faço jogos abstractos.
Fernando Pessoa dizia que as
cartas de amor eram ridículas. O "amorzinho", para si, não se
converte em poesia. É por achar ridículo? Não é justo dizer isso. Tenho até demasiadas canções de amor. 'Você É
Linda', 'Branquinha', 'Eu Te Amo', 'Meu Bem Meu Mal'...
É verdade, mas a mulher não
tem a mesma força como estímulo de inspiração como tem, por exemplo, o mundo ou
a urbanidade. A mulher e o homem são uma inspiração. O romance, nem tanto.Como é o seu processo de compor, começa
por construir letras criando imagens? São as palavras que se puxam umas às
outras? Certas letras suas são um verdadeiro transe com a linguagem e
com a sonoridade das palavras. (Longa pausa.) Palavras que se puxam umas às
outras, imagens que sugerem outras imagens e que também me vêm à cabeça... O
processo de trabalho depende de muita coisa e as canções nascem de muitas
formas. Nascem em períodos diferentes e também em dias diferentes. Algumas
nascem porque deliberadamente decidi fazê-las, outras acontecem porque começo
por pensar numa música e vou fazendo.
Nesta fase da sua vida, o que
o motiva no sentido de continuar a escrever? Já escreveu tantas letras... Penso muito nesta ideia: com tantas canções que existem neste mundo,
qualquer um se deveria perguntar porquê fazer mais uma canção? Porque é uma
loucura! Oiço muitas músicas antigas, mas a verdade é que também oiço muita
coisa nova. Continuo a ter curiosidade.
O que anda a ouvir agora? No Brasil estava a ouvir Arnaldo Antunes e uma banda de rock indy que
se chama Cidadão Instigado. Mas também a cantora espanhola Buika e a banda
americana Dirty Projectors, e Animal Colletive, TV on The Radio... Adoro a
música da Beyoncé 'All The Single Ladies'. Acho-a linda. E, claro, sempre João
Gilberto, Billie Holliday, Ray Charles, Ella Fitzgerald.
É o hábito. Sempre fiz. Não
vejo uma razão nítida para interromper. Seria até uma coisa um pouco bruta na
minha vida. No outro dia, aqui em Lisboa, estava a conversar com uma cineasta
que me dizia que se as pessoas parassem de escrever romances, ou de fazer artes
plásticas, não acontecia nada, mas se deixassem de fazer música o mundo
desabava. Curioso, não é? Santo Agostinho, por exemplo, sonhava libertar-se.
Sentia muita culpa no prazer que tinha em ouvir música, mesmo que fosse sacra.
É uma coisa estranha a relação que as pessoas têm com a música, que, no
entanto, é a arte mais racional de todas. Música é matemática.
Nesta passagem por Lisboa,
acabou por apresentar o seu filme "Cinema Falado" na Cinemateca. Foi
realizado em 1986. Desde então não voltou ao cinema, que foi um grande desejo
durante anos. É verdade. Um desejo
enorme!
O cinema continua na sua
cabeça? Pensamentos sobre cinema, quando estou sozinho, aparecem tantos quanto
a música, porque também tenho desejo de fazer filmes. Mas a música é o meu
trabalho. De repente estou ensaiando, fazendo tournée, existe a banda,
lembro-me do que é preciso corrigir, qual o arranjo que devo fazer... Ao longo
da minha vida esbocei projectos de cinema que abandonei. Mas de vez em quando o
desejo volta. Às vezes é intenso, outras fica amortecido. É complicado. Parece
que tenho mais vocação para a vida de músico do que para a de cineasta.
Sempre referiu que a música
surgiu por ser mais fácil e não por ser o seu maior talento. É verdade quando digo que não tenho talento para a música. Tenho é
vocação para a situação de músico.
O que quer dizer? Tenho vocação para a vida de músico: conviver com outros músicos,
viajar, fazer a música sozinho no violão, ensaiar com amigos, apresentar,
gravar... Gosto disto tudo. Sei que tenho mais vocação para esta vida do que
para a vida de cineasta e que eu próprio vivenciei quando fiz o meu filme.
Teria medo de não ser no
cinema o grande Caetano que é na música? Não. Disso nunca tive medo. O que senti quando experimentei a vida de
cineasta foi um pouco de angústia, porque o ambiente do cinema me parecia muito
tenso. Para se fazer um filme é preciso dinheiro. Quando um cineasta tem uma
ideia, tem de convencer outras pessoas de que a sua ideia vale a pena, para
arranjar quem invista. Isto é um problema chato e que não existe com a música.
Você pode pegar no violão, fazer a sua música sozinho e acabou. Poderá depois
ter dificuldades em lançar-se e ser reconhecido. Mas isso já é outra história.
Explique melhor a questão do
seu talento, ou daquilo a que chama a sua falta de talento para a música. É muito simples. Tenho amigos que têm uma capacidade de percepção
harmónica inacreditável. Gilberto Gil, Djavan, Lenine, Edu Lobo, Dori Caymmi,
Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco... Todas estas pessoas que conheço de
perto têm um talento especial e uma facilidade enorme em lidar com a matéria
musical - percepção, harmonia, regularidade rítmica. Seria um crime não fazerem
música. Não tenho nem de longe o talento musical que qualquer um deles tem. E
não estou a ser modesto. É uma questão de observação. Sei que eles sabem que isto
é verdade e que também não discordariam de mim.Portanto, esforça-se. Faço algum
esforço. Também não chego, musicalmente, a lugares notáveis. Mas faço canções
relevantes. Existem as palavras. E no meu jeito de resolver as coisas, dentro
dos recursos limitados que tenho, vai sempre saindo alguma coisa.
No Brasil é um artista
polémico. Chico Buarque, por exemplo, reúne maior unanimidade. O Chico é muito discreto. Não é "falastrão" como eu, nem fez
um trabalho de enfrentamento como eu fiz. Porque o tropicalismo era um trabalho
de afrontamento! Era a oposição ao que havia. O que o Chico fez foi um
aprofundamento da tradição à luz da bossa nova. Ele criou uma pós-bossa nova,
altamente requintada, irrepreensível, mas feita por um sujeito que não tinha
nenhuma vontade de criar discussões. Acabou, porém, por ter uma perseguição por
parte da censura na ditadura militar que eu nunca tive. A minha música nunca
encontrou aquele nível de censura. Mas também ele não reúne unanimidade
absoluta.
Chico Buarque não provoca
tantas reacções como o Caetano. A si, criticam-no muito. Porque ele não vive dizendo coisas como eu digo. Mas não me incomodo.
Sou assim mesmo. Acho até estranho reunir a aprovação de todos. Só Estaline,
Mao e Hitler gostavam de ter a aprovação de todos. Não é bom.
Mas fora do Brasil será
provavelmente entre todos o mais popular. Fora do Brasil sou conhecido em circuitos minoritários, mais
intelectuais. Pode não ser assim em Portugal, mas nos outros países da Europa
é. Mesmo em Itália, onde há um número muito grande de pessoas que gostam de
mim, é sempre um nicho de mercado.
Ouve os seus discos antigos?
Não. Quando acabo de fazer um disco, deixo de ouvi-lo.
Quem acompanha a sua carreira
desde o início diz que raramente volta às músicas feitas em Londres, no final
dos anos 60, quando esteve exilado. São considerados, pelos seus fãs, dos
álbuns mais inovadores. Porque tem essa dificuldade? É engraçado porque esses discos voltaram a ser os discos preferidos dos
mais jovens. Sobretudo "Transa", que é sempre o disco preferido dos
amigos do meu filho de 17 anos. Acho isso maravilhoso. A primeira menção ao
reggae feita por um brasileiro é minha, nesse álbum. Nesses anos de exílio em
Londres Caetano Veloso foi obrigado a sair do Brasil, entre 1969 e 1972, durante
a ditadura militar, eu vivia em Notting Hill Gates, que naquela época não é o
que é hoje. Era um bairro muito barato, cheio de jamaicanos, muito misturado.
Era lá que acontecia o reggae. Nós, brasileiros, sentíamo-nos ali mais
à-vontade. O que aconteceu no "Transa", o que faz dele um disco tão
especial, meio fora do esquema, foi eu ter chamado músicos brasileiros e
juntado numa banda. Tudo aquilo tem uma atitude, que era uma coisa que vinha
directamente do tropicalismo. Também por isso ficou com aquele ar fora do
mundo. É como estou a fazer agora, que voltei a essa coisa da banda quando fiz
este meu último álbum, o "Zii, Zie".
Em 2010 volta a fazer uma
digressão mundial. Vai lançar um novo álbum? Como será? Sim. Estou a trabalhar com a banda Cê. Vou fazer um terceiro disco com
eles. Quero fazer, pelo menos, uma trilogia.
O que o inspira? Quando quer descobrir o que se anda a produzir de novo no mundo,
para onde olha? A vida é um encantamento. Há sempre muita coisa nova. Mas
sinto muita vitalidade no Brasil. Há ainda uma originalidade... Parece-me que o
Brasil tem uma tarefa a cumprir.
Que tarefa? É uma tarefa grande: salvar o mundo. É curioso, porque sinto isto desde
garoto. Quando, em 1986, fiz "Cinema Falado", o meu filho, que na
altura tinha 8 anos, aparecia a dizer: "O Brasil ainda não chegou ao
século XIX, mas vai ser o primeiro país do século XXI." Isso já era uma
coisa minha. Embora em muitos aspectos o Brasil seja um lugar horrendo, tem
agora uma oportunidade.
Mas o que tem o Brasil de tão
especial que lhe caiba a tarefa de "salvar o mundo"? Atribuo parte disto ao facto de o Brasil ser a América portuguesa.
Termos dimensões continentais, sermos os únicos a falar português no continente
americano, sermos uma população altamente miscigenada, o que é geralmente visto
como uma desvantagem. Mas, para mim, esse conjunto de desvantagens sempre foi
lido como uma bênção. O isolamento do Brasil no continente, este ensimesmamento...
Sempre senti isto desde que me comecei a entender por gente, como brasileiro.
Quando, com 17 anos, ouvi pela primeira vez João Gilberto cantar, percebi que
tínhamos de reconhecer que as nossas desvantagens nos apontavam para uma grande
originalidade criativa. E que isso era uma grande tarefa. Uma tarefa boa.
Como vai o Brasil cumprir esta
tarefa? Não sou um profeta. Não tenho
visões.
Mas quando escreveu 'Um Índio'
parecia fazer uma profecia... "Aquilo que nesse momento se revelará aos
povos/ surpreenderá a todos não por ser exótico/ mas pelo facto de poder ter
sempre estado oculto/ quando terá sido o óbvio"... Como será, eu não tenho
a menor ideia, mas tenho a certeza de que se for feito, vai mesmo parecer o
óbvio. A gente sabe o que quer e o que precisa.
Vê alguém para liderar essa
missão? A minha candidata à
Presidência da República, Marina Silva, é em parte índia. Veio de dentro da
floresta. Saiu da penúria extrema, do analfabetismo e tornou-se uma mulher que
escreve bem. Ela, simbolicamente, seria importante, porque representa uma vida
de superação. É mulher, alfabetizou-se aos 16 anos e é mestiça.
Que afinidades sente com
Portugal? Sempre senti afinidade e
sempre foi uma coisa muito concreta. Aos 9 anos, em Santo Amaro, eu cantava
fados. Comecei por ouvir Ester de Abreu, na Rádio Nacional, e depois foram os
discos da Amália Rodrigues. Foi o primeiro lugar a que eu vim fora do Brasil,
em 1968. Tinha uma grande emoção de conhecer a pátria da língua portuguesa.
Viu um Portugal muito
atrasado. Era triste. Mas eu
amei!Muitos brasileiros não gostam dessa relação com o passado. Não me
identifico com essas pessoas. Não é esse o ambiente da minha casa, nem a
tendência dominante de quem me cerca. Para mim, Portugal e Brasil são uma coisa
só. Adoro a "Mensagem", é um dos mais gloriosos poemas. Penso como os
sebastianistas. Portugal é este gesto de ter saído para o mar todo, ter criado
o globo terrestre e ter-se desdobrado em Brasil, Angola, Moçambique, Goa, Cabo
Verde... Considero uma grande interpretação da "Mensagem" o livro de
Agostinho da Silva. Ele também era um sebastianista, e escreveu-o no Brasil.
Termina o livro falando nas festas do Divino em Santa Catarina. É emocionante.
Conheci o professor Agostinho, na Bahia, e todas estas coisas influenciaram-me
muito porque, intuitivamente, tive sempre essa visão.
E quem vai cumprir o Quinto
Império, segundo o seu raciocínio, será o Brasil. O Brasil vai liderar a passagem do Quinto Império. É um sebastianismo
moreno e tropical.
O que sente quando chega a Portugal
e lhe dizem que fala "brasileiro"? Não me incomodo. Vai dar ao mesmo.
Falamos português. Já houve várias investidas nesse sentido, até no Brasil, e
só aprovo isso na letra de Noel Rosa, um samba divino que diz: "Tudo
aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro. Já passou de
português" (risos).
Aos 67 anos o que o
impressiona? Quase tudo.
Preocupa-se com o que ainda tem para fazer? Um pouquinho. Mas preocupa-me menos agora do que quando era moço. Ainda planeio um pouco, mas, se deixar no piloto automático, vai andando. Mas não tenho é o desejo de deixar no piloto automático.
Preocupa-se com o que ainda tem para fazer? Um pouquinho. Mas preocupa-me menos agora do que quando era moço. Ainda planeio um pouco, mas, se deixar no piloto automático, vai andando. Mas não tenho é o desejo de deixar no piloto automático.
O envelhecimento incomoda-o? Conta muito, como não? É uma coisa importante, mas também é normal e
inevitável. Se a pessoa não morre, envelhece. Nesta perspectiva, o
envelhecimento é uma das coisas boas que acontece a alguém que está vivo. É uma
tolice querer colocar tudo na conta da velhice. Posso ter 75 anos e estar mais
feliz do que quando tinha 32. Evidentemente que implica muitas coisas más, como
a decadência das capacidades físicas. É ruim, mas todo mundo aguenta. Sempre
houve velhos e não estão todos desesperados. A minha mãe tem 102 anos, é lúcida
e muito alegre.
Já foi casado duas vezes,
agora não partilha o seu apartamento do Leblon com ninguém. Assusta-o a possibilidade
de ficar sozinho? Não tenho medo disso,
não. É natural. Já estou velho. A infância mete mais medo do que a velhice. Um
menino de 7 mostra grande desprezo pelo de 4 e o de 11 pelo de 7. Todos querem
sair daquela coisa o mais rápido possível. A infância só é maravilhosa quando
temos autonomia e nos lembramos daquele tempo de irresponsabilidade, em que
tomavam conta de nós. Aí idealizamos a infância. Mas, na realidade, é horrível:
ter de comer, de deitar e fazer tudo na hora em que nos mandam! Acho a
adolescência o início da alegria. As angústias da adolescência são uma
maravilha! Os nossos filhos, adolescentes, passam então a receber com alegria
os nossos visitantes.
Viveu a sua adolescência como
uma grande festa? A minha, não. Foi bem
tímida e muito limitada. Estou a falar da adolescência de um modo geral, essa
mera sensação de estar no mundo, que vejo mais bem resolvida nos adolescentes
de agora.
Todos nós, em algum momento,
fomos tocados por uma canção sua. E eu tenho de lhe dizer isso: você esteve
presente na nossa vida inteira e na de muitos dos nossos amigos também. Tem
consciência desse lastro da sua presença? O que é que isso representa para si? A maior parte do tempo não me lembro. Mas, às vezes, ocorre-me de uma
maneira enviesada e outras até mais directamente, quando me perguntam, tal como
você está perguntando agora, e isso emociona-me. Mas não me sinto pressionado.
Quando penso nisso, reconheço que há uma responsabilidade, e aí sinto uma
espécie de amor pelas pessoas. Por terem conseguido chegar perto das coisas que
por mim foram feitas tão intimamente.
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