“Fue el disco más hostilizado por la crítica, el más grande fracaso de ventas. Y eso que tiene Terra y Sampa. Si existe esa fama de que peleo mucho con la crítica, surgió en Muito. Me puse iracundo.”
[Caetano Veloso, 3/6/98]
“Meu disco mais pichado e o que menos vendeu. No entanto, é o disco que tem as canções Terra e Sampa, que foram tão tocadas e cantadas em todo canto. Li várias críticas dizendo que era péssimo, abaixo da crìtica, que o Caetano já era. Muito foi gravado com A Outra Banda da Terra, que me acompanhou, também, em Outras palavras, Cinema transcendental, Cores, Nomes e Uns.”
[depoimento de Caetano Veloso a Charles Gavin e
Luís Pimentel em TANTAS CANÇÕES (livro da Caixa TODO CAETANO 2002), pag.
51]
“… Aquela foto (do disco Muito, de Caetano, de 1978) foi em um show de Bethânia, no Rio. Eu fui para o camarim e ele entrou, se ajoelhou, e botou a cabeça no meu colo. O fotógrafo tirou o retrato. Até hoje, ele chega e bota a cabeça no meu colo", conta. Segundo Dona Canô, ele nem viu a hora em que o fotógrafo mirou. Quando o rapaz ligou para ele, acho que ele achou bonito”, conta ela.
[D. Canô Velloso, A Tarde, Salvador, 15/9/2007]
MUITO [Dentro da Estrela Azulada]
Phonogram / Philips LP 6349 382 / CD 836.012-2
Lado A
1. TERRA (Caetano Veloso)
2. TEMPO DE ESTIO (Caetano Veloso)
3. MUITO ROMÂNTICO (Caetano Veloso)
4. QUEM COCHICHA O RABO ESPICHA (Jorge Ben)
5. EU SEI QUE VOU TE AMAR (Tom Jobim/Vinícius de Moraes)
Lado B
1. MUITO (Caetano Veloso)
2. SAMPA (Caetano Veloso)
3. LOVE LOVE LOVE (Caetano Veloso)
4. CÁ JÁ (Caetano Veloso)
5. SÃO JOÃO, XANGÔ MENINO (Gilberto Gil/Caetano Veloso)
6. EU TE AMO (Caetano Veloso)
A.1. SAMPA (Caetano Veloso) 3:17
A.2. MUITO (Caetano Veloso) 3:23
B.1. TEMPO DE ESTIO (Caetano Veloso) 5:06
B.2. MUITO ROMÂNTICO (Caetano Veloso) 2:28
Extraído del LP Philips nº 6349.382
Philips EP nº 6245 091
O GLOBO
Domingo, 20/8/1978
Ana Maria Bahiana
NEM HERÓI NEM MÁRTIR: IMPREVISÍVEL, COMO SEMPRE
Em meados do ano passado parecia que a sempre tão
pranteada era dos festivais estava de volta: com o mesmo calor de dois anos
atrás, retomavam-se as mesmas polêmicas, as mesmas discussões, as mesmas
acusações. Músicos, compositores e críticos alinhavam-se de novo em fileiras
impressionantemente semelhantes, e as velhas armas eram sacadas: participação
política do artista versus alienação, defesa do patrimônio nacional de cultura
versus dominação estrangeira. E, no centro da comoção, mais uma vez, o mesmo
Caetano Veloso de sempre. Com a mesma nonchalance de sempre, o mesmo ar
meio entediado maio zangado meio divertido de quem ao mesmo tempo sabe e se
espanta de estar ali, na raiz mesma da polêmica. A trajetória era muito sua
conhecida: já antes, ele havia deixado de ser o rapaz simpático e tímido com
imensa cultura musical que ganhava todos os prêmios do 'Esta noite se
improvisa' para se transformar no participante incômodo, malcriado e
perturbador dos festivais & adjacências. Agora rompia-se o consenso unânime
que se formara a seu redor, desde a volta de Londres - de que era, não apenas
uma glória do nosso cancioneiro, mas um herói, quase um mártir, de proporções
míticas e inatacáveis. Talvez isso não o tenha perturbado: ninguém realmente
sabe o que oculta a mente oceânica e o brilho matreiro do olho de Caetano
Veloso. O que certamente o chateou - como chateia - foi verificar que seu
pelotão de fuzilamento ainda era o mesmo, portando tão velhos fuzis.
Enfim,
como ele é Caetano Veloso, fez o improvável: após o discutido, semifracassado e
aparentemente mal resolvido 'Bicho Baile
Show', com a Banda Black Rio,
saiu-se de repente com um espetáculo sereno, inteiro, resolvido com perícia e
sensibilidade e, numa palavra, inatacável.
Foi
no teatro Clara Nunes, na Gávea, no início do ano, assessorado por um time
brilhante de músicos: Tomás Improta
no piano, Sérgio Dias Batista na
guitarra, Vinícius Cantuária na
bateria, Arnaldo Brandão no baixo, Marcos Amma na percussão.
Os
mesmos que, com alguns adendos - Bolão
na percussão, Perna no piano - fazem
boa parte da força e da beleza de 'Muito',
o novo disco de Caetano, bastante diferente, em concepção e resultado, de 'Bicho'. Um álbum que, estranhamente,
está sendo ignorado, em termos de apreciação pública, tanto pelos adoradores
quanto pelo pelotão de fuzilamento. Caetano se importa?. Ele está tranquilo,
contente e imensamente satisfeito com este trabalho. Só não esperem dele um
auto-da-fé e o arrependimento público de seus 'pecados': suas opiniões, pontos
de vista, gostos e desgostos também continuam os mesmos. Ou seja:
imprevisíveis.
Entrevista:
AMB: Conversando com Macalé outro dia, ele
verbalizou bem o que é esse disco, 'Muito'. Ele disse: 'Já reparou como Caetano anda amoroso, ultimamente?' Isso é fato
mesmo, Caetano, isso se passa ou é só impressão de quem vê de fora?
CV: Bacana vocês dizerem isso.
Mas eu não
sei dizer se estou mais ou menos amoroso. O disco tem mais temas de amor... talvez
eu esteja, mesmo. E amor, mesmo, é o assunto. Na hora em que eu fiz não pensei,
mas depois do disco pronto eu achei que era mesmo amoroso. Quer dizer, o disco
'Amoroso' é aquele disco do João Gilberto. O meu não pode desejar ser do mesmo
nível. Mas é um disco amoroso, no fundo.
AMB: Inclusive a capa [onde Caetano aparece no colo
de sua mãe, Dona Canô] já é amorosíssima.
CV: Pois é, menina. Eu queria botar
uma fotografia, eu sabia tudo menos a fotografia exata. Eu sabia que era uma
coisa redonda, azul, já tinha explicado tudo ao Aldo (Aldo Luiz, chefe de arte
da Phonogram), mas eu queria uma fotografia minha com uma mulher, e obviamente
pensei em fazer com Dedé. Mas eu achava que não era Dedé. Todo mundo sabe que
Dedé é minha mulher, não é isso, talvez seja uma pessoa desconhecida, que fique
de costas, uma coisa mais simbólica. Mas eu não sabia bem o que eu queria. Era
uma mulher que ia aparecer simbolizada, mas eu não tinha pensado que era. Aí
Bethânia, num dos ensaios do show que estou fazendo com ela, chegou com essa
fotografia, que o Januário tinha tirado no camarim de um show dela do ano
passado, assim com flash. Aí eu
disse: 'É isso! Genial aquela fotografia, no fundo o que eu queria era aquela
foto. Só que eu nem sabia que a foto existia.
AMB: Na sua
maneira de ver, como esse disco é?
CV: Depois que o vi pronto gostei
muito do disco. Quando eu estava fazendo estava adorando, mas não pensei que
desse um produto tão bonito, eu pensei que era melhor pra gente que estava
fazendo do que pra fora. Mas depois que saiu eu vi assim de fora. Mas depois
que saiu e eu vi assim de fora e vi outras pessoas ouvindo, achei que ele é
lindo. Gosto até mais dele do que dos outros discos que tenho feito,
ultimamente, por causa de uma coisa que ele tem: a espontaneidade. Na verdade
eu sempre estive ligado numa coisa espontânea, uma coisa que seja o que for, o
que pintar... canções, vou pro palco cantar canções novas e velhas e o que
quiser. Sempre meus trabalhos são mais assim do que, por exemplo, o 'Bicho
Baile Show', onde havia um tema específico, era uma peça sobre um assunto:
dançar. Como se você tem uma peça sobre discos voadores, tem que ter efeitos
especiais, e sobre um bairro de Niterói, sei, lá, tem que ter esse bairro. O
'Bicho Baile Show' era sobre dança, então a banda tocava, eu cantava, a banda
tocava de novo... Mas a maior parte das minhas coisas são espontâneas, mesmo.
AMB: Mas muitas vezes me parece que houve um projeto anterior, pensado. A
Tropicália, por exemplo.
CV: A Tropicália, o movimento em
geral, era um projeto muito forte.
AMB: O 'Araçá Azul' também, me parece.
CV: O 'Araçá Azul' foi um disco muito
marcado para um lado, mas foi um disco sem planejamento. Eu fui pra São Paulo,
fiquei uma semana e fiz tudo no estúdio, as músicas, tudo. Não fiz nada antes,
nada. E ficou parecendo uma coisa tão... elaborada. Eu me lembro da crítica do
Tárik de Souza na 'Veja': 'É o disco mais elaborado de Caetano'. Eu ri à pampa,
puxa, eu fiz tudo em uma semana, não tive nem o menor senso crítico, não tive o
menor trabalho... E saiu mal feito, a produção, o som chapado, mil problemas. Mas
é bacana, porque é um negócio assim louco. E bonito, mas não foi elaborado. O 'Jóia' foi um pouco mais, mais do que o
'Araçá Azul', porque levou muito
mais tempo para ser gravado, mais para ficar fazendo devagar, até aparecer a
hora boa de sair a coisa bonita. Mais do que ficar burilando, endireitando. Eu
não tenho muita paciência para ficar fazendo, refazendo, endireitando...
AMB: E você acabou gostando mais do resultado final
de 'Muito' do que desses discos anteriores?
CV: Nesse disco há algumas coisas que
são as que mais me satisfizeram até hoje em termos de gravação. Desde 'Transa' e uma coisinha ali, outra
aqui. O 'Coração Vagabundo' no disco 'Domingo', muitas coisas em 'Transa', a
maioria, alguma coisa de 'Araçá Azul', alguns momentos de 'Jóia', sendo que aí
eu gosto do modo todo de ser do disco... mas tem coisas nesse disco,
conquistadas nessa gravação, que são as que mais me fazem a cabeça. 'Terra', por exemplo. Talvez seja uma
das minhas melhores gravações, e, num determinado sentido, é a minha melhor
gravação, porque aconteceu no estúdio com uma coisa de sentir junto... Bom, foi
tudo gravado direto, tocado e cantado direto e saiu daquela maneira. A gente
sentiu a emoção e, quando a gente foi ouvir, viu que havia passado para a
gravação. Não teve playback, não teve que botar voz depois, não teve emenda,
todo mundo tocando junto e saiu daquela maneira. Tem silêncios, uma hora todo
mundo para, fica só o violão, depois todo mundo entra... e a gente sem se ver
porque fica cada um num quadradinho isolado dentro do estúdio.
AMB: Eu gostaria que você falasse um pouco mais de
'Terra', da concepção da música. Porque é uma faixa forte, ela dá bem o tom do
disco, assim numa espécie de declaração de amor planetária, a primeira canção
de amor ao planeta Terra.
CV: Sabe aquele filme 'Guerra nas Estrelas'? Quando eu vejo filmes que tem
espaço... '2001', por exemplo, que eu nunca mais revi e acho lindo... mas
quando eu vejo aquele espaço enorme nos filmes me dá vertigem. Se eu deitar
assim e olhar o céu estrelado num lugar que eu não vejo mais nada, eu sinto que
eu posso desprender da Terra e voltar. Já conversei com outras pessoas e elas
também sentem isso. Eu sinto muito forte essa vertigem, e me dá uma angústia
terrível. E no 'Guerra nas Estrelas' me deu, um pouco, mas o filme é mais leve.
E esse filme tem uma coisa: o planeta Terra não é nem citado, nem aparece,
parece que não existe, é uma coisa bem longe da Terra. Então eu senti essa
impressão de saudade. Eu me lembro logo da primeira ou segunda semana que eu
estava na cadeia e o pessoal me levou revistas que tinham as primeiras
fotografias da Terra, tiradas de fora. E uma era uma coisa maravilhosa, tinha a
Terra inteira. Eu esperava ver os continentes, mas era tudo coberto de nuvens.
Tudo isso, depois que eu vi o filme, me deu uma impressão muito grande de que
havia uma tensão poética... e na época eu também achei. Eu pensava: 'Como é que
eu estou aqui, num espaço tão limitado que mal dá pra eu me mexer e ao mesmo
tempo eu estou vendo uma foto da Terra toda, tirada de um espaço tão
ilimitado'... achei que tinha uma tensão poética nesse lance e me lembrei
disso, tanto que comecei a música já citando essa coisa. É uma música
confessional, de explicação. Eu comecei a escrever essa música fazendo a letra,
primeiro, o que é uma coisa muito rara, ultimamente, porque muito raramente eu
faço letra antes da música: sai junto ou eu faço a música antes, quase todas.
Essa letra eu fiz antes, e era diferente da que veio a ser a letra da música,
mas a ideia básica era a mesma. Ela era mais nordestina, mais bem 'escrita',
entre aspas, mais João Cabral de Mello Neto. Depois que eu botei música ficou
mais desarrumada, e eu achei mais bonito, mais a ideia mesmo do que eu queria
dizer. Agora, 'Sampa' eu também acho
uma transa de amor muito forte. Você vê que não existem muitas expressões de amor
à cidade de São Paulo como a que há nessa música. E foi tudo casual, também
você sabe, eu estava fazendo um programa de televisão e me pediram um
depoimento sobre São Paulo e eu fiz, pensando em tudo o que era São Paulo pra
mim, e saiu uma canção joia, mesmo. Então eu adoro o disco, ele é cheio dessas
coisas. Acho que amor, mesmo, é o tema dele. Mas é um disco inteiramente sem
uma ideia anterior, porque na verdade ele nasceu daquele show do teatro Clara
Nunes, no início do ano, e aquele show não tinha nenhuma ideia preestabelecida.
Foi uma coisa muito solta. Nesse sentido ele é muito qualquer coisa. Mas é
lindo.
AMB: Na
entrevista que acompanha, para divulgação, o disco, você fala bastante da
transição entre o 'Bicho Baile Show' e o espetáculo do Clara Nunes, que
resultou no 'Muito'. E de como uma coisa não representava a negação da outra,
ou seja, de como 'Muito' não renegava o 'Bicho' nem o trabalho com a Banda
Black Rio.
CV: A passagem de uma coisa a outra foi inteiramente casual. Eu tinha um
plano, já de muito tempo, de ter um som assim mais transado, tanto para mim
quanto para os músicos, e isso foi tomando corpo com isso da gente tocar em
casa, com amigos, surgindo daí essa banda, a Outra Banda da Terra. E a gente acabou subindo num palco porque o
lance com a banda Black Rio na Concha Verde não deu certo, porque eles estavam
com problemas internos na banda, e não queriam fazer o show naquela época. Só
se fossem shows vendidos, porque aí eles tinham um dinheiro certo, e eles
tinham medo de não lotar a Concha Verde, mas eu sabia que ia superlotar. Era o
momento certo, a coisa tinha sido muito discutida, tinha sido sucesso em São
Paulo, era uma volta... mas o pessoal da Black Rio não tinha nenhuma maturidade
com relação a esse tipo de diálogo com as plateias. Porque o modo como o 'Bicho
Baile Show' transcorreu no Rio de Janeiro deu uma impressão muito negativa pra
eles e eles demonstraram uma certa fragilidade, mas para mim esse tipo de
reação era uma coisa conhecida. Quer dizer, eles esperavam, porque eu tinha
falado e tudo, sabiam que ia dar discussão, como eu achava que podia dar, mas
mesmo assim havia mais otimismo do que reconhecimento verdadeiro de que poderia
ser não uma mina de ouro mas um problema que a gente estava criando pra gente
mesmo. E foi um problema, mesmo. E nem todos os participantes da banda estavam
tão entusiasmados com o próprio tipo de música em que eles estavam oficialmente
interessados. Havia uma discussão interna, uma discussão riquíssima, pra mim
importante e boa. O tipo de música que a maioria deles podia curtir era uma
coisa mais ligada ao Bossa Rio, samba-jazz, mas o Oberdan e o Luís Cláudio
tinham a cabeça feita para soul music e queriam fazer uma coisa nesse sentido,
achando que era joia, mas nem todos pensavam assim, achavam que talvez fosse um
lance comercial da gravadora. Então a Banda Black Rio era, de certa forma,
fragilizada profissionalmente por esses problemas estéticos que são
fertilíssimos. E era uma banda de um nível musical muito elevado."
AMB: E essa discussão interna da banda, embora
fosse uma experiência rica para você, como observador - assim uma espécie de
resumo da história dos músicos do Rio de Janeiro - não prejudicava também a
força de seu próprio trabalho?
CV: Prejudicar, propriamente, não.
Era uma fragilização profissional que havia na minha própria coisa. Se eu
tivesse pegado uma banda completamente ligada naquilo que ela realmente quer
fazer.
AMB: E esses temas nos quais você estaria
interessado seriam corpo, dança?
CV: É, corpo, dança... uma coisa que
não foi pensada na época, porque eu não sabia o nome da banda, mas quando o
Oberdan me falou que era Black Rio, eu pensei, vai ter tanta, mas tanta
confusão com isso, vão dizer que eu estou querendo me meter em movimento de
Black Rio... e eu, nunca... eu li as reportagens que saíram, achei
interessante, mas não queria me manifestar necessariamente sobre isso. Mas no
fim das contas eu achei maravilhoso. Achei que tinha o assunto do negro naquela
coisa toda, que tem a ver com a dança e tudo. Mas esse aspecto não foi pensado,
embora, quando resultou, achei muito justo. Eu tinha ido à África, no disco 'Bicho' eu falava de Pelé, da África,
imitando música africana, falava na Nigéria, enfim eu estava naquela,
realmente. E quanto ao Black Rio eu vi várias pessoas de nome, inteligentes,
falarem, mas acho que eles estão por fora. Eu vi o Aldir Blanc falar, e o
Ferreira Gullar, e o Sérgio Cabral... todos estão por fora, na minha opinião.
Totalmente.
AMB: E como você vê o Black Rio?
CV: Eu nem vejo,
propriamente. Eu não gostaria nem muito de me exprimir assim tão
peremptoriamente sobre o assunto. Mas eu acho que é o seguinte: o preto é
preto, é uma coisa que é verdade, que é internacional em qualquer lugar do
mundo. Essa coisa de que o preto brasileiro tem de ser assim ou assado é uma
coisa totalmente injusta, porque, quando o samba é produto industrial de São
Paulo e nas áreas de escola de samba as pessoas se interessam por soul, e os pretos de Itapoã na Bahia soul music, não teria sido uma coisa
muito real. Quando eu combinei o trabalho com o Oberdã, eu nem sabia o nome da
banda, combinei porque ele falou o nome dos músicos, a gente ia fazer uns
arranjos, uma coisa assim de banda pesada. Mas eu tinha consciência naquela altura,
como tenho hoje, que eu não posso fazer o show do Tim Maia. Ele faz uma coisa
maravilhosa nessa linha, mas eu só queria estar perto disso. Então o que
aconteceu era o mais real possível, passou a informação mais limpa. Tinha que
ser uma coisa entre uma coisa e outra, com os conflitos internos. Para o meu
trabalho, foi certo.
AMB: E a reação negativa, aqui no Rio? Seria a
decepção das pessoas por encontrar você quase como crooner da banda, dividindo
o espetáculo com eles em vez de fazer um show só seu?
CV: Bom, isso, sem dúvida, era muito forte. Mas em São Paulo não houve
problema nenhum, de espécie alguma. Foi uma coisa inteira, as pessoas dançavam
muito, aplaudiam muito, gritavam, quiseram fazer uma passeata no primeiro dia,
porque acabou e não queriam ir embora do teatro, ficavam gritando, pulando e
cantando. Em Belo Horizonte foi mais discussão ainda do que no Rio, foi uma
loucura. Era estranho demais, assobiavam, gritavam coisas, me pegavam pelo
braço quando eu descia na plateia. Foi uma coisa muito cheia de conflito. Eu
não queria fazer assim. Não gostei. Assim não dá, não estou aqui pra criar
polêmica. Estou a fim que se veja e se transe e se tente perceber que eu estou
interessado em determinadas coisas, em determinados temas. Pode não encher a
casa nem me dar dinheiro, mas tem que saber disso. Mas não quero também criar
uma polêmica, ficar um ano discutindo se as pessoas devem ou não dançar, não
dá.
Ouvem soul e dançam soul no carnaval, dançam música de
Bob Marley, tocam Bob Marley em Itapuã, é impressionante... então é uma coisa
que está na cara., não é? Eu vi na televisão um sujeito dizer: 'Samba tá por
fora, quadra de escola de samba é lugar de quem espicha o cabelo'. Eu não sei
no que vai dar, não sei o que é, nem sou preto, já disse, sou mulato, meu filho
se chama Moreno, acho ótimo essa coisa de morenidade e tudo isso, mas não acho
que a gente tenha uma questão racial mal resolvida, aqui, e que todas as
expressões culturais que saíram disso já bastam e que isto não vai se
movimentar. Eu acho que você não admitir que isso se movimente é você ter muito
medo da realidade e querer tapar o sol com a peneira. As pessoas pretas são
pessoas, estão aí, não sei o que elas querem, não posso falar por elas mas
também não posso impedi-las de falar, de se manifestar. E se alguém impede acho
que está errado. Eu achei repressivo dizer que não pode, que está errado, que
tem que dançar samba. Eu acho que isso não pode ser decidido assim, que
história é essa? Em bom português: agradecemos muito aos senhores negros que já
deram um pouco de colorido, sal e pimenta à nossa cultura, e agora podem
morrer. Não, tá errado.
AMB: A maior parte das críticas ao seu trabalho no
'Bicho Baile Show' e no disco 'Bicho' eram justamente com relação a esses temas
que você escolheu. Dança, corpo, isso visto como uma coisa alienante.
CV: Isso foi uma coisa mais pessoal
com relação ao que eu estava fazendo. O que eles estavam querendo de mim era
que eu quisesse entrar nessa trip
politizante de abertura, não sei o quê. E eu não me sinto na obrigação de
entrar. Eu não acho que seja necessariamente a coisa menos alienante o que um
artista possa fazer, agora. Eu não me sinto nem um pouco inclinado a fazer
coisas assim como o show da Elis, ou como o disco 'Meus Caros Amigos', do Chico, enfim coisas assim que eu acho
maravilhosas, mas que eu não me acho na obrigação de fazer também. Eu não
curto. Entendo tudo isso, essa necessidade de se falar em redemocratização, em
liberdades, justiça social, distribuição da renda, eu acho certo, mas não é só
isso. Isso é muito complicado, politicamente, de repente uma coisa nem está
desempenhando o papel que deverias estar... mas mesmo assim eu não estou
interessado nisso. O Glauber, por exemplo. Ele fala muito, diz um monte de
coisas, e eu acho que ele é um artista e tem uma necessidade enorme de dar
opiniões políticas originais, tem uma coisa pra dizer, está discutindo, aí. Ele
tem interesse nessa área bem superior ao meu, e mesmo assim tem um tipo de
opinião diferente da que os outros artistas em geral têm quando se trata de
política. Quanto mais eu, que não estudo essas coisas, não fico ligado. E todo
esse pedido que vinha pra mim para que eu fizesse uma coisa que eu nunca fiz!
Nunca fiz! Sempre fiz o que eu faço: uma coisa que é o que vem de mim, que é o
que eu sinto das coisas, nunca foi nada disso, nunca fiz onda de política.
Essas pessoas que estão assim na minha classe, classe média, que compram disco,
que vão à universidade, que vêm filme, que falam de coisas, essa gente, nós,
dessa nossa área, estão sempre reclamando. Tanto que eu nem liguei muito, nem
quis discutir. Não deu pra ficar falando muito, já falei isso antes.
AMB: E os temas do 'Bicho' - dança, corpo - foram
adiados, cancelados, ou correm paralelos dentro desse trabalho, agora?
CV: Correm paralelos. É a mesma coisa. Com o grupo
com que eu estou, agora, dá pra ter isso incorporado. Você vê que o Arnaldo é
um bom baixista, muito funky, a
gravação de 'Odara' era dele. O disco 'Bicho' foi feito antes de eu encontrar a
Banda Black Rio, não dependeu da Banda Black Rio para eu ter esse interesse.
AMB: Mas, como um todo, os trabalhos de 'Bicho' e
de 'Muito' resultaram inteiramente diferentes.
CV: É, completamente diferentes. Mas você
entende bem que de uma certa forma tanto o 'Bicho' como o 'Bicho Baile Show'
eram mais uma referência ao assunto dançar do que a produção da melhor música
para dançar. Eu acho que a maioria das pessoas que fazem coisas dançantes no
Brasil fazem melhor do que eu. E eu não pensava dar o melhor produto no gênero
dançante: eu pensava em me referir à coisa, fazer coisas vinculadas a isso. Eu
não vou fazer músicas de discotheque, não vou me treinar para isso, nem
pretendo. Eu nem gosto muito de discotheque. Só gostava do 'Dancing Days' da
Gávea, porque era um lugar onde eu me sentia à vontade, me sentia entre as
pessoas que eram iguais a mim. O novo eu nem vi direito, não sei. Mas as
outras, eu não gosto de nenhuma.
AMB: E da música de discotheque?
CV: Eu gosto muito da música, muitas coisas. Eu não gosto muito de Donna
Summer, essa coisa alemã, com uma mulher de voz fraquinha, eu não gosto. Mas
essa coisa tribal, de ritmo batido, tudo o que é soul... Barry White, por exemplo, eu acho maravilhoso.
AMB: Música de discotheque não lhe parece uma
coisa exclusivamente industrializada?
CV: É uma coisa industrializada, mas é também
uma coisa tribalizada. Tem um lado que já fica baixo astral, o de ser uma coisa
feita só pra dar grana, mas o acontecimento em si... que não é novo,
discotheque já era muito sucesso em 68, com ritmos parecidos. Soul music e tudo, no final dos
Beatles a discotheque já era uma coisa da moda, no Brasil. Só que agora ficou
de massa, discotheques maiores, mas baratas, proliferou. E eu acho que é uma
coisa boa, um modo mais tribal de ser, uma vontade expressa pelos produtos
humanos das sociedades industriais em geral de retribalizar-se. Isso já
apareceu no rock, não é por acaso de Mick Jagger adora e imita música de
discotheque. Aliás, os Rolling Stones tembém não fazem uma boa música de
discotheque, mas não se incomodam de imitar. Numa certa medida o que eu faço é
isso também, num outro nível inteiramente diferente, porque é Brasil, porque
sinto que a gente é outro lance, de moda, uma produção em série.
E é industrializada, mas acontece que desde a
década de 60 a gente já desbaratinou esse problema do produto industrial. Hoje
em dia ou você supera a situação industrial ou você já topa. Não se fica mais
pensando em arte nobre e arte industrial, tudo isso dançou nos anos 60. E, pra
mim, dançou mesmo, eu sou assim superrefinado, quero a coisa superrefinada, mas
num lance de quem já topou a arte industrial, já passou por esse lance todo. Às
vezes é um conjunto de fatores dessa coisa industrial que vai resultar em algo
joia, que não foi ninguém que criou. Como foi em alguns momentos o cinema de
Hollywood, como hoje é, em alguns momentos, a televisão. Eu sou contra o baixo
astral das relações econômicas, esse baixo astral de dominação, exploração,
engano, mentira, isso que as relações econômicas produzem e significam, no
estágio em que estão. Mas eu acho que o que interessa pode vir de qualquer
lugar. Mesmo porque o comércio e a moda se movimentam de acordo com as
necessidades das pessoas, no caso, dançar, ter uma coisa espontânea, menos
pensada... eu acho uma coisa boa. O que não sei resolver é o baixo astral de
dominação humana, do poder do homem, como isso pode se exercer de uma forma
luminosa, bela, e não de um modo injusto... isso eu não sei como é. Mas eu
procuro e acho que todo mundo deve procurar. Eu penso essas coisas, mas na
verdade, na verdade mesmo, eu faço música e vivo disso. Isso é uma coisa de que
eu me lembro sempre, e é uma coisa muito forte em si, que define muito o que sou.
Por mais que eu pense sobre o mundo, não posso realmente decidir os destinos do
mundo. Posso falar um monte de coisas, como falei agora, quer a gente deve se
libertar para uma coisa maior. Mas, principalmente, eu faço música e vivo
disso."
Seu blog é demais! Muito obrigada =)
ResponderEliminarObrigada a você.
ResponderEliminarUma pérola, grato!
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