Augusto de Campos abre nova
exposição e chama o momento atual do Brasil de “deplorável”
Célebre poeta e artista visual
inaugura mostra na galeria Luciana Brito e diz nunca ter visto tanta
“mediocridade junta, tanta gente feia, tanto retrocesso, nem mesmo na ditadura
militar”
Por Marcos Grinspum Ferraz
27 de março de 2019
“Mercado”, obra de 2002 que está na mostra. Foto:
Divulgação
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Sentindo-se deprimido por conta dos acontecimentos
políticos brasileiros dos últimos anos – desde o impeachment de Dilma Roussef
até a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro –, o poeta e artista visual
Augusto de Campos, hoje aos 88 anos, se encontrava “pouco animado a expor
qualquer coisa”, como ele mesmo conta. Após 70 anos de carreira, “estava sem
muita disposição e paciência com ‘artices’ e ‘artismos’”.
Quando veio o convite da Luciana Brito Galeria para
que realizasse uma mostra individual, titubeou, mas aceitou principalmente pela
“oportunidade de manifestar o meu inconformismo”. Para isso decidiu reunir em
uma mesma exposição trabalhos antigos e atuais que, em conjunto, sinalizam para
os paralelos entre os piores períodos da ditadura militar e os dias de hoje.
“Além da horrorosa guinada à direita, nunca vi
tanta mediocridade junta, tanta gente feia, tanto retrocesso, nem mesmo na
ditadura militar. É um pesadelo, em que tudo foi entortado e rebaixado, e uma
figura monstruosa como Trump aparece como ‘deus ex machina’, bajulado e
bafejado por nossos governantes na pior paródia que se poderia imaginar da
paródia histórica que foi a ditadura vintenária que nos assombrou”, dispara o
escritor.
Criador, ao lado de Haroldo de Campos e Décio
Pignatari nos anos 1950, do que ficou conhecido como poesia concreta e dono de
uma vasta obra “verbovicovisual” – termo que se refere às dimensões semânticas,
sonoras e visuais da palavra –, Augusto expõe agora, na mostra Poemas e Contrapoemas, desde
obras célebres como LUXO, de
1965, até inéditas como CLÁUSULA
PÉTREA. Aparentemente uma simples transcrição de um artigo da
Constituição brasileira, a poesia de 2018 se revela, no contexto atual, como
crítica contundente à “situação jurídico-política do país” e à prisão do
ex-presidente Lula.
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória”, diz o poema de Augusto, que além de
artista visual, poeta, escritor e tradutor é formado em direito e foi
procurador do Estado durante 40 anos. Mas o próprio Augusto ressalta que a
exposição não apresenta somente poemas de viés político. Obras com outras
temáticas e seu trabalho com diferentes materiais e suportes – em papel (serigrafia
e impressão), em tela e em vinil – estão presentes na Galeria Luciana Brito a
partir deste dia 30 de março.
Depois
de longa trajetória sendo reconhecido majoritariamente no campo das letras,
Augusto começa a ganhar mais espaço também no campo das artes, destacadamente a
partir da mostra retrospectiva REVER,
realizada em 2016 no Sesc Pompeia. Em 2017 – ano em que recebeu o Grande Prêmio
Janus Pannonius, espécie de Nobel da poesia – realizou sua primeira individual
em uma galeria de arte, também na Luciana Brito.
Por
e-mail, Augusto de Campos respondeu ao que seria uma curta entrevista enviada
pela ARTE!Brasileiros –
apenas quatro perguntas –, mas que se tornou um longo e contundente texto de um
pensador que nunca temeu tomar lado na história.
ARTE!Brasileiros
– A exposição Poemas e Contrapoemas reúne obras de diferentes
períodos, criadas desde os anos 1960 até hoje. Como se deu a escolha dos
trabalhos e como você enxerga estas obras quando colocadas em conjunto?
Augusto
de Campos –
Tudo começou com um convite que recebi da Galeria Luciana Britto. Eu, na
verdade, estava pouco animado a expor qualquer coisa, deprimido como me
encontro com a situação jurídico-política do país, sem muita disposição e
paciência com “artices” e “artismos”. Mas resolvi acolher a ideia quando
aceitaram que eu expusesse, além de trabalhos novos, alguns dos meus
“contrapoemas”, obras de contestação tanto à noção convencional de poesia
quanto ao momento político que atravessamos. No meu estado de espírito, era
difícil para mim, um poeta de vida longa, com 70 anos de atuação artística,
“sobrevivente” de várias gerações, pensar em voltar a exibir-me tão cedo.
Mas a proposta que me fizeram foi de uma mostra reduzida, com poucos trabalhos
em grande formato e em novos materiais, não todos inéditos. E a oportunidade de
manifestar o meu inconformismo, rara para mim, que pouco espaço tenho nas
mídias usuais, prevaleceu quando me ocorreu associar alguns novos experimentos
contestatários a um poema que nasceu de um momento análogo, LUXO, que publiquei em 1965 e que
agora volto a exibir de uma forma diferente. Há um arco, portanto, nessa curva
temporal, de mais de meio século, embutida na mostra.
ARTE!Brasileiros
– Você vê paralelos entre o Brasil de hoje e o de quando começou a produzir os “contrapoemas”?
Augusto
de Campos –
Sim, vejo paralelos. Compus LUXO,
em 1965, em plena vigência do golpe militar imposto no ano anterior, e o poema
me foi sugerido por um incidente que ocorreu em dezembro de 1964, na exposição
dos Popcretos que fiz com Waldemar Cordeiro, na Galeria Atrium em São Paulo.
Quando fomos retirar as obras, terminada a mostra, todas elas tinham sido
danificadas com ofensas inscritas em esferográfica. Numa das minhas obras, que
tinham claro viés antiditadura, haviam escrito a palavra “lixo”. O anúncio de
apartamentos de alto luxo, publicado no ano seguinte, com fototipos
kitsch-decorativos, associou-se em minha mente à palavra com que tentaram
vandalizar aquele meu trabalho e me levou à concepção do poema, que buscava
satirizar a classe média e alta, que, em sua maioria, apoiava o golpe de então.
LUXO foi publicado como
poema-objeto e como encarte em revistas, livros e vídeos, aqui e no exterior.
Na ocasião, tinha-me ocorrido fazer uma versão diferente, em formato redondo,
como uma requintada tampa de lixo, que acabou descartada por falta de fundos e
de tecnologia. Tentamos, agora, uma aproximação dessa ideia com a melhor
técnica disponível. O poema LUXO
é a ponta do arco que começa nos anos 60, sob a égide do lema de Maiakóvski —
“sem forma revolucionária não há arte revolucionária” — e continua nos
“contrapoemas”, concreto-conceituais, compostos mais recentemente. Destaco
entre eles CLAUSULA PÉTREA,
que nada mais é do que um ready
made. Trata-se da transcrição do inciso LVII do artigo 5º da nossa
Constituição, preceito que só pode ser alterado, ampliado ou atenuado por uma
nova Constituinte, e que proíbe que um cidadão seja considerado culpado antes
de condenado em última instância, e não apenas em segundo julgamento, e preso
como ocorreu com o ex-presidente Lula, em evidente desrespeito à Lei Maior.
Como essa matéria será, ao que se anuncia, em breve rediscutida pelo Supremo
Tribunal Federal, o poema vem a calhar, e insisto em compartilhá-lo, na
esperança de que o egrégio tribunal, Supremo entre os Poderes, desta feita não
se atemorize diante das pressões de haters,
extremistas de direita e militares radicais e faça prevalecer a norma
fundamental da Carta Magna, que consagra a presunção de inocência e assegura os
nossos direitos individuais. A prevalecer a atual decisão, que divide a Alta
Corte, e contraria também o princípio curial “in dubio pro reo”, teremos
prisões prematuras, escassas de provas, e que induzem as instâncias superiores
a manter os julgados, ainda que injustos ou carentes de suporte probatório,
diante do dano irreparável a que se submete quem tiver sido privado de sua
liberdade e desmoralizado em um processo judicial a meio do caminho. Pois como
indenizar um prisioneiro afinal inocentado? Não. Que os juízes trabalhem. Para
os casos de periculosidade evidente, há o remédio da prisão cautelar. Prisões
políticas não se justificam.
ARTE!Brasileiros
– Como enxerga o atual momento político e a ascensão da extrema direita?
Augusto
de Campos –
Quanto à situação política atual, acho-a simplesmente deplorável. Além da
horrorosa guinada à direita, nunca vi tanta mediocridade junta, tanta gente
feia, tanto retrocesso, nem mesmo na ditadura militar. É um pesadelo, em que
tudo foi entortado e rebaixado, e uma figura monstruosa como Trump aparece como
‘‘deus ex machina”, bajulado e bafejado por nossos governantes na pior paródia
que se poderia imaginar da paródia histórica que foi a ditadura vintenária que
nos assombrou.
ARTE!Brasileiros
– O conteúdo dos trabalhos nunca está dissociado das formas, dos materiais, das
cores, dos modos de expor. Gostaria que você falasse um pouco sobre como se deu
essa parte da pesquisa e produção da nova exposição.
Augusto
de Campos –
A mostra não é constituída apenas de poemas de viés político. Há ainda poemas
de outra natureza, menos disfóricos, alguns conhecidos, mas apresentados de
forma e suportes diferenciados, e que tentam compactar-se num recorte que eu
diria ideogrâmico, buscando constituir um conjunto formalmente coerente.
Troquei muitas ideias com os organizadores, que compartilharam dúvidas e
soluções comigo. Dada a relação entre as dimensões dos trabalhos e o espaço
disponível da galeria, não podíamos contar com grande número de obras. Por
outro lado, havia limitações gráficas para a expansão das dimensões originais,
já que a maior parte das obras foi produzida para formatos menores, nem todos
suscetíveis de vetorização suficiente para que pudessem ser ampliados sem perda
de qualidade, produzidos que foram por mim, quase todos, com programação
digital. Cada caso foi analisado e resultou de uma pesquisa própria de escolha
de material compatível, com vistas à tônica geral da mostra, na qual as obras
são idealmente abraçadas pelo poema CIDADECITYCITÉ,
de 1963, numa versão especialmente concebida para o espaço da galeria.
1982-1993 - Sol de Maiakóvski |
2010 - Occhiocanto |
2018 - Cláusula Pétrea |
2017 - O Inesperado |
Poemas e
Contrapoemas
Luciana
Brito Galeria – av. Nove de Julho, 5162
De
30/3 a 1/6/2019
Entrada
gratuita
16/5/2019 |
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